quarta-feira, 27 de março de 2013

Dia Mundial do Teatro


Mário Viegas em "À Espera de Godot "
de Samuel Beckett

“Os governantes já não se preocupam em controlar quem os cita com ironia e sarcasmo, uma vez que os actores não têm espaços nem públicos que os veja.”

Dario Fo, encenador e actor italiano

Parece que o que é bom para a economia, é mau para a vida das pessoas. Há nisto algo de nebuloso, de charlatanesco. Seria melhor que se deixassem de parolagens pseudocientíficas e apontassem claramente o que parece ser o grande ideal moderno do capitalismo: ficarem sozinhos nas empresas rodeados de máquinas e de dois ou três guarda-costas.”
Fernanda Alves, actriz.

A partir de um texto de Tiago Bartolomeu Costa hoje no Público.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Fazer versos Dói

Pregar um prego, lavar pratos, cortar a erva
custa. Mas nunca nada me custou tanto que
carregar um verso das coisas mais difíceis. A fazer
do outro lado da literatura os nós do mundo.
E a desfazê-los. Para os refazer simples
andei por missas, por mares e por selvas -
fossem as puras florestas do desejo ou caves de prédios [muitos altos.

Nunca rezei por vós nem por mim porque Deus não estava,
mas em todos os sítios encontrei poesia
e dei-me a fazer versos e a fazer amor como quem se imola
e não se amola com a melancolia dos vizinhos
a ver-me apanhar o autocarro ou a chegar
da vida burocratizada que é a profissão
de organizar processos de velhice
para os que vão morrer daqui a pouco.

Pregar um prego custa, se custa! E mais deve custar
oito horas diárias de cadência bruta nas fábricas da loucura:
(eu te digo isto, operário por quem não choro nem rezo e
nem te desprezo ao ponto de cantar as glórias do teu amanhã que não há.
porque sei que tu sabes ser a Obra tua).

Mas apalpar o verso disso também custa. A mim,
não é tanto a dor explorativa que dói mas o verso que explode
dolorosamente por trás e pela frente e em diagonal
no poema. Agora que começo a escrever a minha morte,
sabem-me os versos aos verões da infância que não houve
sabem à humidade das mesas frias onde vi
os poetas outonais que não conheço fingir que choravam
e recebiam das damas, através dum lenço
a noticia rendilhada da sua condenação à morte.
É certo: tudo aborrece quando já não há canções
iludindo a aspereza da voz que primeiro as cantou
quando se morre como o Ruy Belo de fazer versos.
Venham-me com cantigas!
Digam-me ainda o «mar» é «português»
o Senhor aguarda os «corações» que se elevam ao «alto»
as selvas servem de pulmões do mundo e não há buracos
nos lugares onde deixei bombas e me mataram
e via «morte com um sorriso nos lábios»!
Há um frio real nestes dedos e o verso de Fevereiro não os
aquece.

J.H.Santos Barros - Natural de Angra do Heroísmo.I.Terceira (1946-1983)

quarta-feira, 20 de março de 2013

Coragem


Cartaz do filme "Má Raça" de 1986


“Mas acho por bem encarar cada filme como o primeiro e último. Talvez seja preciso ter coragem para isso, mas coragem temos todos muito pouca, o que me preocupa. E aqui não estou só a falar de cinema, mas de coragem física. De coragem civil. De coragem lírica. Devíamos ter aulas de coragem na escola. O certo é que o mundo virtual não ajuda a criar coragem. Aquilo a que chamamos redes não são redes de resistência, mas sim redes de cumplicidade. As pessoas sentem-se muito bem, assim escondidas, mas na verdade são muito pequeninas.”





Leo Carrax, in Ìpslon, Público.

Três Sacrilégios no Peter

1.“Senor, is this Horta, is this Peter Island?” Não percebe nada de mar e veio aqui dar à costa, este inglesinho que, de certeza certa, fugiu à escola para brincar aos barquinhos. “And Faial Island, if you don´t mind”, digo eu. Não sossegou e acredito bem porquê: estou na catedral dos iatistas e pediu a Mr. Peter Azevedo uma coca-cola com muito gelo. Estava cometido o primeiro sacrilégio.
2.Sentado a uma bela e ossuda mesa de castanho roseira, ia deixando que o fresco gin me aquecesse a garganta “Lembras-te, José” – perguntava já meio tonto ao José que sou eu – “do Peter velho aqui ao lado com o velho Peter todo branquinho naquela cabeça a preparar gins porreirinhos às escondidas para ninguém saber o truque? Lembras-te, José, da tua primeira vez? Foi uma, foram duas, foram três e à quarta, pifaste! Tão novinho e pifaste José!.. Pifei, José!” – respondo eu ao José  que sou eu. Um puto em idade colegial e em férias pascais, entornar de uma só vez quatro torneiradas de gin-tónico, é cá um pifo e tantas. Sonhar com o que foi bom no passado, também é um sacrilégio. Este é o segundo da crónica.
3.Decididamente, não gosto dos “Cruzeiros”. Dói-me na alma olhar ali para a acrobática “Espalamaca” e vê-la na bancada, como menina trapezista de circo arrumada na prateleira. Sentado no muro em frente ao “Peter” e olhando defronte o Pico, falta-me as “lanchas” e os mestres e os marinheiros e os cestos de duas asas chegarem carregados de ameixas vermelhas e de homens e mulheres de chapéu-abeiro. E falta-me também aquelas testas tisnadas de mar do pessoal das “lanchas”. Nesta nostalgia, o terceiro sortilégio agora é meu: É pecado estar de costas seja para que altar for. É que eu já não sei se hei-de olhar para o Pico, ou vê-lo reflectido numa vigia do “Peter-Café Sport”.

José Daniel Macide, Junho de 1989, in Crónicas da Portugália 

terça-feira, 19 de março de 2013

Capitalomania



Num multibanco citadino junto de uma sumptuosa catedral vemos o Doutor Mara carregando pequenos envelopes usados e acabados de comprar, ainda que de sandálias, toalha e calções de banho. Vemos, no entanto, que está com um semblante deveras pesado e apreensivo, o que não é seu timbre. Será que todo este clima geral de apreensão e sufoco económico que nos encontramos a viver já chegou aos digníssimos aposentos de Doutor Mara? Se assim for, podemos afirmar que estamos perante uma catástrofe, uma calamidade nacional, concorda?

Doutor Mara: Com corda ou sem corda, não sei que vos diga, não sei. Sinceramente, começo a ficar preocupado. São muito bonitas essas ideias do regresso ao campo mas o dinheiro que possuo não dá nem para comprar um pequeno curral para lá meter uma vaca a pastar e, mesmo que quisesse viajar como aconselham, somente podia ir para países onde ainda se pode beber água da torneira dada a minha secura constante e intermitente. E, sabe-se,  que é cada vez mais raro encontrar água potável de qualidade. Aproveito para vos dizer, meus caríssimos amigos e, com o devido respeito por quem tem familiares que são profissionais nestas instituições bancárias e financeiras, que irei retirar durantes estes dias iniciais primaveris todo o meu dinheiro ganho à custa do meu trabalho e das poupanças  que fui efectuando ao longo da minha existência.

DM: Por alguma razão em concreto, Doutor?
Doutor Mara: Todas e nenhumas ao mesmo tempo. Faço isto antes que o exército de impostos e as brigadas financeiras que tomaram o poder mundial e que nunca construíram qualquer ponte, viaduto ou rotunda, vivendo exclusivamente da especulação financeira e do espremer da bolha económica, qualquer dia se apoderem das parcas poupanças que me restam. Por outro lado, arranjei uma almofada/travesseiro com lã de ovelha merino com uma bolsinha muito em conta e que consegue aguentar cerca de dez mil euros bem acolchoados e eficazmente protegidos. Fonte segura comunicou-me que, em caso de incêndio ou explosão, liberta um gás que faz com que a bolsa encete de imediato um voo género zeppelin e procure num raio de trinta metros pessoas vestidas com lã para que assim efectuar um curioso ricochete. Se estiver por perto, não perderei nada, como devem calcular.

DM: Doutor, nunca poderíamos pensar que o dinheiro tivesse capital importância para a sua existência. Chegamos mesmo a pensar que estávamos na presença de um bom samaritano ou mesmo de um franciscano. Muito sinceramente, caríssimo Doutor Mara, é a queda de um mito. Como é que isto foi possível?
Doutor Mara: Nos dias que correm só acredita em mitos quem quer. Sabem, tenho uns pequenos luxos que não abdico, alguns são de sobremaneira conhecidos e que não posso nem quero prescindir deles, mesmo em períodos de crise. Por exemplo, uma boa dose diária de frutos secos (sabemos o que cada saca custa, os olhos da cara, posso mesmo afirmar que estão pela hora da morte). Não consigo deixar de ir pelo menos duas vezes ao cinema por semana e ir a um concerto musical, ou de comprar um jornal português e estrangeiro ao domingo, ou ainda beber um “mosquito” (pequena dose de medronho) no fim de jantar ou mesmo de fumar a minha cigarrilha Monte Cristo todas as sextas-feiras à meia-noite invariavelmente, mais minuto menos minuto. São coisas sem importância mas que fazem toda a diferença...

DM: Pequenos luxos, portanto, doutor Mara. O que vai de encontro a essa célebre frase de  Oscar Wilde (1854-1900) que podemos ler na sua t-shirt bem estival: “Quando era jovem, pensava que o dinheiro era a coisa mais importante do mundo. Hoje tenho a certeza”. Acredita mesmo nisso, Doutor Mara?
Doutor Mara: Tem dias, tal como o chocolate. Mas estou convicto que é melhor acreditar que sim pois estamos perante uma máquina mundial e, por que não nacional, de produção de pobres e de pobreza que parece nunca ter fim. Há, inclusive, agora uns sábios engravatados, sem vergonha e sem escrúpulos que, no cúmulo da indecência, andam a tentar convencer-nos que já fomos pobres e bastante felizes ou que acreditam mesmo que é assim que devemos ficar…

DM: Era no tempo da côdea de pão e da meia sardinha…
Doutor Mara: E com muita ordem e respeitinho nas ruas! Sinceramente, não vejo problema algum em se comer meia sardinha por dia nem tão pouco comer um bife por semana. Ninguém morre por causa disso, pois claro. Mas isso podia ser uma escolha e não uma imposição, não é assim? Não há mal nenhum em fazer uma alimentação sustentada em soja, leite, ovos e cereais. Bem pelo contrário, uma parte considerável dos restaurantes vegetarianos estariam cheios de gente e poupava-se na carne animal.

DM: Uma das consequências de só se falar de dinheiro na nossa sociedade é que se deixou de ter orgulho nas profissões que valorizam as mãos, os mais novos já não vestem fatos lindos ao domingo ou  cantam canções tradicionais, uma nação inteira que deixou de investir na aprendizagem e na curiosidade. Parece que o dinheiro tomou conta de tudo e de todos, o que é horrível. Será assim, caríssimo Doutor Mara?
Doutor Mara: Não exageremos, não exageremos. É verdade que não há pasquim, programa de televisão ou roda de conversa e de amigos onde não se fale de taxas, impostos, créditos e débitos, dívidas, bolsas, subsídios, descontos…no fundo, dinheirito a mais ou a menos. É o centro de todas as conversas, vive-se para o ter, para o dividir e multiplicar e é motivo de encontro, heranças e discórdias entre as famílias. Bem, desisto do meu mergulho primaveril. Vou imediatamente para casa para ver um filme que ando há anos para o ver e só agora me enviaram o dvd – “Dinheiro” de Marcel L'Herbier, um filme mudo de mais de três horas. Uma sessão difícil, portanto.
DM: Boa sessão, Doutor Mara. Até um dia destes.    

segunda-feira, 18 de março de 2013

A Terra Vista do Mar


"Tinha cinco anos. Era a primeira vez que nadava sozinho dentro dele. Eu. Dentro do mar. E ele. O mar: acolhia-me. Um abraço quente. E carinhoso. Estava tão contente eu. Tinha cinco anos. E depois. Eu mijei dentro do mar. Com todo o meu ser mijei dentro dele. Tudo estava tranquilo. À minha volta. Dentro de mim...que já perdi tantas memórias. Demasiadas. Mas ainda me lembro de quando tinha cinco anos. Eu. Estava a nadar pela primeira vez  sozinho dentro do abraço quente do mar em agosto. E mijei dentro dele, eu. Enquanto ele, o mar, nunca me pediu nada em troca, nem perguntou porquê, só o seu murmúrio sedutor e leve, as ondas delicadas, às vezes suspensas às vezes rebentadas, que murmuravam languidamente ao meu ouvido de miúdo: mija...mija…mija"

in "A Terra Vista do Mar", Davide Enia, tradução de Letízia Russo.

domingo, 17 de março de 2013

És Amor

E és urgência da manhã
que morde e que mata.
Na distância que se desvenda

és tão cedo quanto o  esquecimento
e és amor nas formas
em que te formas e transformas.

Sendo silêncio e sendo ausência
és amor.

in "1" de Tiago Rodrigues.

sábado, 16 de março de 2013

Marujo


"Triste vida a do marujo
Qual delas a mais cansada
Por mor da triste soldada
Às tempestades! Às tempestades!
Dão, Dão."
(...)

in Cantar Na M´Incomoda, de Carlinhos Medeiros, 1998.

sexta-feira, 15 de março de 2013

quinta-feira, 14 de março de 2013

Enomatria

   Algumas semanas depois da invernia ter começado, eis o Doutor Mara num tugúrio citadino mal-afamado, ainda por cima com uma bandeira nacional sobre os ombros e, acreditamos dizê-lo sem qualquer tipo de ofensa ou má criação, que o digníssimo se encontra encharcado em vinho tinto da cooperativa. Debaixo do braço do doutor Mara, o livro de Willy Helpach, “Geopsiché – l´ame humaine sous l´influence du temps, du climat, du sol et du paysage”, numa tradução francesa muito velhinha da editora Payot, de Paris. Doutor Mara, sem querer imiscuir-nos na sua vida pessoal, celebra-se alguma coisa por estes lados nesta noite chuvosa?
Doutor Mara: O fim do tinto. Tenho saudades do tempo em que se bebia bom vinho tinto e barato. A sério. A sociedade actual é baseada na trapaça da garrafa, o enfeitiçamento do invólucro, mas olhem, meus caros amigos, isto nem sempre foi assim. Hoje é impossível beber um bom vinho sem a garantia da garrafa e do nome do enólogo/a estampado nas traseiras do rótulo. Sou ainda do tempo em que as tascas, tabernas e casas de pasto deste país se orgulhavam de ter o melhor vinho produzido na cooperativa das suas regiões demarcadas. E muito baratinho, por sinal. Não sou saudosista, mas tenho francas saudades de um tinto digno desse nome servido em qualquer botequim citadino por alguém que sabia o que estava a dar aos seus clientes.
DM: Há alguma razão para trazer a bandeira portuguesa aos ombros, Doutor Mara?
Doutor Mara:  Alguma lata e algum descaramento, pois claro.  Mais concretamente a bandeira serve para eu me poder encostar com segurança ao balcão. Aqui o taberneiro, o meu amigo, Gonçalo Pratas, um homem de armas como vocês podem ver, não pode ver nada sujo e está sempre a deitar detergente e líxivia para cima do balcão. Com esta sua atitude, já me deu cabo de umas quantas camisas de cor compradas nas melhores boutiques de ocasião. Já se sabe, a bandeira protege das nódoas e esta foi comprada por alturas do Europeu e já está um pouco desbotada…as manchas não ofendem a pátria, pelo menos não tanto como aqueles que andam agora com um pin na lapela.
DM: Doutor Mara, há muita gente que gostaria de transmitir respostas e anseios ou então apenas devaneios chamados de torrente de ideias sobre o que vão lendo das suas charlas quotidianas. Tem noção do impacto que cada charla do Doutor Mara tem na nossa sociedade?
Doutor Mara: Deixem-se de bajulices, já vos tenho dito, qualquer dia deixo de conversar convosco e então será o fim do mundo. Pensar, reflectir e escrever são partes de um processo longo e do qual não tenho feito outra coisa ao longo da vida. O importante seria que cada cidadão pensasse e agisse por si próprio, que fosse aquilo que a sociedade ilustrada do século das luzes sempre sonhou: um cidadão atento, activo e participante nas decisões da polis. O meu grande amigo George Orwell tinha uma posição mais crítica sobre o que se publica por aí, pois este dizia que “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique” e que “o resto é publicidade”.
DM: Constatamos também que o Doutor Mara não consegue viver, para além do tinto, da palavra escrita, isto é, sem escrever nem ler, parece-nos. De onde vem este seu gosto pelas palavras?
Doutor Mara: As palavras ajudam-nos a definir e a organizar o mundo em que vivemos ao mesmo tempo que nos ajudam a situar e a perspectivar o lugar de onde queremos vê-lo. O mundo está permanentemente a ser recriado pelas palavras, pois são estas que permitem novas significações. As grandes ditaduras e as sociedades capitalistas usam diferentes formas de manipulação das opiniões públicas, mas tocam-se no essencial: a propaganda e a publicidade. Podia ter sido pescador, mas fiquei em terra, a tecer redes de palavras...
DM: A conversa já vai longa. O que é que gostaria de transmitir aos portugueses, Doutor Mara.
Doutor Mara: Em primeiro lugar, que bebam vinho de qualidade. Que sejam exigentes e que leiam sobre os novos vinhos que tem vindo a ser feitos nas diferentes regiões vitivinícolas. Depois, não devem ter medo de oferecer às  namoradas/os, amigos e amigas  caixas de vinho ou mesmo garrafões de cinco litros de vinho, desde que sejam de qualidade, claro. Pode ser que, entretanto, baixem o preço das garrafas. Haja saúde.

Acreditar

Acreditar na perpetuidade colorida do sangue.

Cézanne



terça-feira, 12 de março de 2013

Hitchcock


Noite para ver Hitchcock de Sasha Gervasi no Centro Cultural e de Congressos. Oportunidade para ver este filme que se baseia num dos clássicos sobre Hitchcock (Alfred Hitchcock and the Making of Psicho,de Stephen Rebello) e ainda rever em acção dois grandes actores: Anthony Hopkins e Helen Mirren, esta no papel de Alma Reville, a  esposa do “mestre do suspense”. O filme de Sasha Gervasi é a narrativa cinematográfica da rodagem de Psico numa viagem ao universo de Alfred, os seus sonhos, irritações e fantasias. Na altura de “Psico”, Hitchcock tinha 61 anos de idade e uma carreira gloriosa após vinte anos de sucessos desde que rumou para Hollywood. Neste filme ficamos ainda a saber que a Paramount não o quis produzir e quanto este ficou magoado quando um jornalista lhe fez a seguinte pergunta: “É o mais famoso realizador da história do cinema, mas já tem 60 anos. Não devia retirar-se agora que está na crista da onda?”, para lá de nos darmos conta do seu controle e manipulação de tudo que está em seu redor e ainda uma obsessão por mulheres loiras. O filme é eficaz na transmissão da ideia de que Alma, a sua paciente e determinada esposa, ter tido um papel preponderante na colocação de música na cena do chuveiro em Psico assim como uma colaboração intensa na carreira de Alfred. Certo é que jamais alguém se esquecerá dos violinos da composição de Bernard Herrmann, nessa cena tétrica e inesquecível.
      Uma última nota para referir que o filme termina com um dejá vu pois assistimos desde tenra idade à  série de televisão Alfred Hitchcock Presents assim como à passagem de algumas das suas obras mais conhecidas nos cineclubes “Vertigo”, “Intriga Internacional”, “Janela Indiscreta” e “Psico”, o que torna a cena final bem familiar. Por último, acrescentar que nos tempos que correm pagar dois euros pelo bilhete de um filme numa sala de cinema bem equipada com dolby surround e ambiente propício à fruição cinematográfica, é, sem qualquer dúvida, um luxo, mesmo que o filme seja ligeiro e funcione como puro divertimento.

sexta-feira, 8 de março de 2013

quinta-feira, 7 de março de 2013

Chalandra



José Gonçalves de Sousa, o “Chalandra”, boné de marinheiro, grossa camisola de lã, botas de cano alto, e o inseparável cachimbo, protótipo do velho lobo do mar, a surgir-nos em qualquer porto das setes partidas do mundo.
Nascido a 2 de Abril de 1892 na Rua do Armador, no pitoresco bairro do Corpo Santo dominando e perscrutando do cimo da Rocha, a vastidão oceânica, e onde desde há muito se aglomerou os mais díspares misteres correlativos da faina marítima.
Mourejou longos anos na América do Norte, mais precisamente em New Bedford, centro piscatório onde se radicaram muitos pescadores portugueses, mormente açorianos, entregando-se à pesca da lagosta.
De visita a esta ilha em 1918, receberia a medalha de prata do Instituto de Socorros a Náufragos, por ter salvo a 31 de Março do referido ano, sob forte temporal que por essa altura assolou a nossa ilha, os tripulantes de dois frágeis barquinhos de pesca.
Regressado definitivamente, e como jamais se adaptasse aos modos rudimentares da pesca artesanal, dedicou-se ao transporte de passageiros dos navios que então escalavam o nosso porto.
Os seus barcos a motor, as gasolinas, Angra, Humberta, Vouga e Porto de Pipas, eram dum asseio inexcedível, sendo o próprio “Chalandra” quem orientava a manutenção, incluindo a dos motores.
A 23 de Janeiro de 1929, arrostando com um violento vendaval, subindo com o seu barco “Angra” às cristas das alterosas vagas, ousou salvar os tripulantes do lugre “Amphitrite I”, numa épica odisseia, a esmaltar as páginas da História Marítima dos Açores, senão de Portugal.
Dois louvores lhe foram atribuídos pela Capitania do Porto de Angra, a atestarem o apreço das autoridades marítimas pelas suas qualidades de abnegada coragem e altruísmo.
                O primeiro refere-se à sua preciosa actividade de recuperação da âncora do contratorpedeiro “Vouga”, e o segundo na cooperação prestada nas buscas marítimas, no local onde caiu um avião da Base Aérea 4.
                Desembarcado nesta ilha o primeiro contingente inglês, aquando do último conflito que avassalou o mundo, logo o “Chalandra” se tornaria elemento imprescindível, quer como intérprete, quer como elemento de ligação nas operações portuárias.
                A ilustrar eloquentemente a sua acção durante os três anos de permanência das forças britânicas nesta ilha, demonstra-o o facto de ter sido galardoado com a “Medalha do Rei Jorge VI”, imposta pelo vice-Marechal do Ar, Geoffrey Bromet, com o devido cerimonial no forte de São Sebastião (Castelinho), passando então a ser incluído na lista de convidados a todas as celebrações realizadas pelos ingleses.
                Mas se tais honrarias são atributos a enriquecer o “curriculum” dum velho lobo do mar que pautou a sua vida pelo amor devotado à família e ao mar, não menos significativo terá sido o facto de a ele se referir o escritor dinamarquês Knud Andersen, no seu livro Med Sejleren til Azorern, bem como inspirar Victorino Nemésio, o imortal autor de Mau tempo no Canal, honra de literatura açoriana, a ombrear com os gigantes da literatura universal.
Dir-se-ia que, por ironia do destino, encontrando-se o autor destas linhas no dia 30 de Agosto do ano em curso, sentado com o seu colega Adelmar Toste, na explanada do largo Prior do Crato, o acaso permitiu que entabulássemos conversação com dois jovens casais de estrangeiros.
Tratava-se de quatro dos onze tripulantes do iate de recreio NANA fundeado na nossa baía, cujos nomes são Kristian Sondergaard (Capitão), Marianne Rasmussen e o seu filho Buller, Torben Schipper, Anne Nielsen, Bent Madsen, Lisbeth Noblerod, Iben Haar, Per Farlow, Henrik Meind e Morten.
Sendo-lhes lidos os períodos referentes ao escritor seu conterrâneo, mostraram-se deveras interessados, pois que o livro Med Sejleren til Azorern foi o único trabalho escrito em dinamarquês sobre os Açores, encontrado nas bibliotecas daquele país, permitindo-lhes seguir a mesma rota que o seu autor seguira há trinta e cinco anos.
E como demonstraram interesse em ler a dedicatória com o autor obsequiara o nosso biografado, fui a casa com rapidez que me permitem as minhas 62 respeitáveis primaveras, e não menos respeitáveis cem quilos, em busca do exemplar que há poucos dias me havia emprestado a D. Humberta de Sousa, viúva de José Gonçalves de Sousa, “O Chalandra”, a quem a dedicatória é extensiva.
                E foi com muito interesse e carinho que os quatro jovens dinamarqueses leram as palavras desvanecedoras que o notável homem de letras escandinavo dedicou à família Chalandra a vincar a proverbial hospitalidade terceirense.

in páginas 192 e 193, do livro Filósofos de Rua, de Augusto Gomes, acabado de imprimir nas Sanjoaninas do ano de 1984. 

quarta-feira, 6 de março de 2013

Pela Boca Vão-me ao Bolso

Não é costume sair da farmácia zangado ou em vias de ficar doente, sem a mínima réstia de esperança no mundo e na humanidade, mas foi isso o que me acabou de acontecer. Passados tantos anos a usar a pasta dentífrica Couto (não tantos como a existência desta, está no mercado desde 1932) não consigo ainda compreender o que é que se passou com o seu preço de custo ao consumidor. Há cerca de três semanas comprei uma caixa desta pasta dentífrica que custou 1 euro e 45 cêntimos. Um preço excelente dada a qualidade da fórmula, ainda nas mãos do último herdeiro da família Couto, acessível em qualquer farmácia da região açoriana ou do continente. Ora bem, esta pasta dentífrica que tem o “objectivo de limitar o fenómeno crescente de retracção das gengivas” passou em tão curto espaço de tempo a custar 2 euros e dez cêntimos. Na realidade, são mais cinquenta e cinco cêntimos, o preço de um café em algumas pastelarias e cento e dez escudos na antiga economia. Como é que isto foi possível? Deram com a “Troika” nos dentes e nas gengivas??? Durante anos acreditei que a “Couto” era sinal de um país secreto que sabia ser resiliente, sinal de uma marca familiar que se mantinha pela persistência, pelo gosto e pela paixão de existir – lembram-se da publicidade da “Couto” na televisão? – que mesmo assim podíamos comprá-la a qualquer hora em qualquer farmácia de serviço por um preço amigo e com a posologia em diferentes línguas: italiano, espanhol, francês e alemão, para além do português, claro. Cheguei a usar muitas vezes o seu folheto para incentivar a aprendizagem do português a estrangeiros, tendo alguns passado a usá-la por curiosidade. O que está a acontecer é muito triste, mais triste será ter que deixar de lavar os dentes.

Notas para um ensaio sobre açorianidade



“Há tempos já me tentou o estudo dessas relações e o seu resultado. (…) Nesta ordem de ideias procurei fixar aquilo que se me afigurou mais característico do meio açoriano – o vulcanismo, a presença constante do mar, a insularidade, ou isolamento do resto do mundo, a nebulosidade do céu, a temperatura oscilante entre estreitos limites, a pressão atmosférica, os vendavais e tempestades, a diferença entre as ilhas e o continente pelo que respeita às condições geográficas e da paisagem, verificar ao mesmo tempo quais as qualidades morais comuns a todos os ilhéus, a sua religiosidade profunda, espírito de submissão, indolência, imaginação criadora, sentido de perfeição e de pormenor, espírito satírico, certo grau de saudosismo. Infelizmente, porém, quando colhia elementos para o meu estudo compreendi, a breve trecho, que era cedo demais para levar a cabo. Falta ainda recolher e estudar muita coisa que é indispensável.”

Luís Ribeiro, in Correio dos Açores, nº4768, 25 de Outubro de 1936 ( citação a partir do artigo “O meio escolar açoriano. Aspecto Geopsíquico” de Emanuel Félix Borges da Silva, publicado na revista Atlântida de Novembro-Dezembro de 1964.

terça-feira, 5 de março de 2013

Mineral Esperança


Daquele dia em diante nada havia de ser igual. Era um azul marinho que se me avizinhava sempre de cada vez que me aproximava da janela. No entanto, estava escrito no céu que eu podia repousar os pés na calçada da vetusta e patrimonial cidade. Sopram os primeiros ventos de outono e com eles deixarei esta terra carregada de sal e de memória. Não olharei para trás. Senti-me gasto, dormente. Os dias deixariam para trás essa secreta claridade estival. Reforçavam a miserável capa do manto cinzento que recaía sobre aquela dupla árvore em braços estendida. E nada voltou a ser como alguma vez tinha sido, o céu permanecia escondido e assim haveria de permanecer, cobrindo um memória carregada e triste. Talvez nos tivéssemos gasto, é verdade. Talvez fosse a altura certa de nos retemperarmos e abrirmos ao sal envolvente até que dentro de nós saísse uma alma com fogo, em chamas, renascida. Não olhemos mais para trás, não há certeza de que a dormência se instale, nem que aquilo que nos invada possa equivaler ao vazio das conversas e da vida. Há um horizonte pela frente para avistar. O vento amansa em vontade mineral e o salitre invade por instantes a minha alma carregada de memórias. Eu sei agora, talvez eu tivesse sabido sempre que amanhã a minha vida, as nossas vidas, encarregar-se-ão de ser completamente diferentes. Haja esperança.

PS-Com o mote inicial dado pelo E.C, digno representante da Old School.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Alexandre O´Neill por António Tabuchi

Fotografia de Alexandre Delgado O´Neill


          "Quando conheci o Alexandre na Rua da Saudade em sua casa, ele ia jantar. Eu reparei que ele tinha posto a mesa com tudo elegante para si próprio. Ele tinha preparado um jantar com uma lata de sardinhas dentro do prato. Levantou-se, cumprimentou-me e disse-me: “Sente-se, quer comer umas sardinhas decapitadas?”. Às vezes com uma primeira fase pode-se perceber uma pessoa. Eu e o Alexandre ficámos amigos a partir daquela frase. O que eu gostava no Alexandre era a extrema liberdade intelectual que ele tinha. Liberdade intelectual e humana. E o gosto de viver. O amor pela vida, pela vida nas suas várias manifestações. E também uma grande capacidade de defender, digamos assim, este seu amor pela vida, com uma aparente ferocidade que, por vezes, traduzia-se naquele tom de escárnio que, aliás, faz o sal da poesia dele mas que no fundo é mais uma defesa do que realmente uma excelência. Quer dizer o Alexandre, no fundo, era uma pessoa extremamente sentimental, até muito sentimental, que defendia a sua sentimentalidade com uma carapaça que ele próprio e a vida lhe tinha ensinado a elaborar."

sexta-feira, 1 de março de 2013

Anarquistas

          Miguel M. é meu amigo por natureza e é anarquista por profissão. Por mais brilharetes que as chefias possam fazer, com ele nunca lucram nada. Se, por exemplo, chove, ele treme por um bronzeador que o ponha sãozinho que um pêro e maduro como uma amora. Está céu aberto e ei-lo a barafustar que as culturas vão ao ar, que os pássaros não encontram charco onde molhem o bico, que os peixinhos vermelhos do tanque estão aqui a afogar-se no lodo. Anarquista é o que ele diz ser. Por mim, chamo-lhe espírito de contradição nas horas boas e varrido-de-todo quando vou ficando sem paciência para o aturar. É claro que ele vai-se safando com desculpas de mau pagador e cita parábolas e tiradas filosóficas que, no fim, acabam em nada. Mas vai falando, o que não já não é nada mau. O que é mau é quando ele se arma em defensor de causa alheia e atira para cá fora umas tantas bacoradas que vê-se logo que não joga com os trunfos todos.
Pois é.
       Aqui há anos andava Miguel M. de manga arregaçada e língua em riste, desbaratando tudo e todos os que entendiam que a agricultura dos Açores ou levava uma reviravolta ou os curraizinhos de duas ou três vacas não chegariam para pagar o leite que o vitelinho – nené  ia chupar nas primeiras duas semanas de vida. “Uns comunas é o que eles são !” afogava-se o Miguel , no seu constante alarido contra o emparcelamento de terrenos que então se preconizava.“Uns grandessíssimos e alternadíssimos comunas, estes gajos!”.
         Hoje, Miguel M. já não fala assim. Usa gravata, faz a barba e joga mais rasteiro. Hoje Miguel M. é um fanático pela CEE, já vai ao futebol chamar filho-de-puta ao árbitro e entende, muito diplomaticamente, que o tal “emparcelamento de terrenos” há anos recomendado, é um maná que vem dos céus, é a chuva que vem saciar a terra árida, é o sol que vem dourar os trigais.
Lírico, anarquista, maluco e azarento, este Miguel. Os agricultores que nunca vão às pescas, paradoxalmente querem ensinar-lhe com quantos paus se faz uma canoa. Logo agora…


José Daniel MacideMarço de 1985, in Crónicas da Portugália