quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A Melancolia e o Ano Novo


      Na caixa dos correios uma agenda com palavras e frases à solta e à volta das ilhas e dos ilhéus. Obrigado, Diana e João! Os Açores, sempre. As Charlas Quotidianas do Doutor Mara logo no início de Janeiro deste ano no palco da Travessa dos Artistas com o João Malaquias e a Judite Fernandes. Este ano que finda e outro que agora começa. Depois do cinema belo e tocante do Joaquim Pinto e Nuno Leonel é só deixar tocar as canções das cantoras: Sharon van Etten, Joana Newson, Márcia  e Angela Olsen. Os Beirut em Coura. As noites de poesia com o Malaquias, o Leonardo e tanta gente. Dois poemas publicados na colectânea do Silêncio da Gaveta. Saudades do Maçariku que partiu no início do verão, a leitura de todos os livros de Paulo Varela Gomes, ainda as crónicas da Alexandra Lucas Coelho e os livros de fotografia do Duarte Belo. As ilustrações do Luís Brum e do Pedro Valim. A poesia da Renata Correia Botelho, Urbano Bettencourt, João Paulo Esteves da Silva, Ana Paula Inácio, Herberto Helder, Heitor Aghà Silva, Rui Duarte Rodrigues e Marta Chaves. A memória, a humanidade, a natureza nos filmes de Agnès Varda, Dino Risi, Paulo Abreu, Mario Ruspoli, Miguel Clara Vasconcelos, Alexander Payne e Luís Bicudo. As fotografias do Eduardo Brito e a escultura de Susana Aleixo Lopes. Os pescadores Isauro Rosa e Jáfoneca. A troca epistolar com Janeiro Alves. O Fazendo.As cidades de Ponta Delgada, Angra do Heroísmo, Horta e Lisboa. A Póvoa. Os amigos e amigas que moram no coração. Um futuro 2015 pleno de melancolia.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

«Trinta e quatro sonetos e trezentas e cinco redondilhas» de João Paulo Esteves da Silva


Edição da Douda Correria, 2014
                                                                 Dos sonetos:

                                   (...) Se chove muito na calçada, acorda
a sensação de que o país está morto
e que o trabalho acaba, e só o desporto
o fingimento, o jogo, inspira a horda.”

Das redondilhas:

(...) Chovem optimismos
e as coisas ternas,
voluntariosas,
cheias de genica
enchem-se de orgulho
enquanto não chega
a próxima nuvem
a qual tarde ou cedo
acaba por vir
despertar a sombra.”

E deixa-me o azul, o azul profundo...

 
Rever Lisboa no dia em que Alexandre O´Neill, se fosse vivo, faria 90 anos:

E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.

Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.

Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?

Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?
 

 

sábado, 13 de dezembro de 2014

95 FA...

"O verão para estar com os outros e o inverno recolher e desenvolver projectos impossíveis em dias de sol." 

Gonçalo Cabaça, in FAZENDO nº95, mês de Dezembro de 2014.

Nota:Ler aqui a versão digital do jornal: http://fazendofazendo.blogspot.pt/

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Curtas no Teatro Faialense

Cartaz do Amostram´isse
       Quem não viu, pode ver agora. Quem apenas ouviu falar, pode certamente espreitar ou perguntar como foi. Não se perde muito tempo, aliás, neste caso só há tempo a ganhar. Os filmes são de pequena duração e foram realizados em território do arquipélago açoriano.O fim-de-semana cinematográfico abre com o "Varadouro" e o "Meu Pescador, Meu Velho". O primeiro foi filmado em poucos dias pelo João da Ponte e o Paulo Abreu, veio de exibições em Londres e Paris, e, o segundo, feito pela madrilena Amaya Sumpsi, recebeu o prémio Camacho Costa no Cine Eco 2013, e demorou sete anos. Ambos possuem uma alma enorme e ainda um gosto apurado pela pulcritude dos espaços insulares. São filmes de gente apaixonada por imagens, sons, situações, pessoas. E, essencialmente, pelo mar, fascinados pelos lugares de veraneio ou pelo trabalho piscatório em Ilhas dos Açores. O cinema é, portanto, uma coisa cara de materializar, processo e técnica que leva tempo a executar, mas é, certamente, uma ideia em que vale a pena investir. Esta pequena cinematografia açoriana irá continuar a fazer o seu caminho, mas para que isso aconteça precisa muito de ser vista, divulgada, esclarecida. E, claro, que hoje é um dia favorável para iniciar a contenda, já que mais logo,à noitinha, se abrem as portas do teatro Faialense.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Mãos que Pescam

Fotografia de Filipa Alves

Poema

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-Io passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar


António José Forte in Uma Faca nos Dentes

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Convocação da Tristeza

Daqui a pouco convocarei a tristeza
junto de uma estante fria na noite
assomarei muito fumo, alguns versos e
o funny valentine


Talvez a dor ainda seja possível
esbanjarei todo o tempo da estação
sem qualquer trincheira afastarei
o temor  com a palma da mão
cuidarei  das unhas dos pés da lembrança em brasa, 
célula e choro,
pétala caída no esplendor do verão,
desolação em mim.

Ontem escrito numa parede da cidade

Todos gostamos de músicas pirosas quando estamos apaixonados.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Do Leitor

"Durante a minha vida, fiz muitas coisas que não tinha decidido fazer, e não fiz outras que tinha firmemente decidido fazer. Algo que existe em mim, seja lá o que for, age; algo que me faz ir ter com uma mulher que já não quero voltar a ver, que faz ao superior um reparo que me pode custar o emprego, que continua a fumar embora eu tenha decidido deixar de fumar, e que deixa de fumar quando me resignei a ser um fumador para o resto dos meus dias. Não quero dizer que o pensamento e a decisão não tenham alguma influência na ação. Mas a ação não decorre só do que foi pensado e decidido antes. Surge de uma fonte própria, e é tão independente como o meu pensamento e as minhas decisões. "
Bernhard Schlink, O leitor, pp. 16-17.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

70 anos de Mau Tempo no Canal

     
      Num texto ainda por ler e intitulado "O Homem Açoriano e a Açorianidade", o professor António Machado Pires  terá escrito: “A ilha em que nascemos é um eixo do Cosmos, uma pequena-pátria, um mundo de referências matriciais [...], um ponto de regresso ideal, uma Ítaca em que cada um é o Ulisses da sua própria e secreta mitologia”. Este ilustre pensador profere, amanhã, dia 21 de Novembro, pelas 19h30, na Biblioteca Pública João José da Graça, na cidade da Horta, uma conferência sobre os 70 anos da obra “Mau Tempo no Canal”, de Vitorino Nemésio. Será uma honra, uma distinta e enormíssima honra, ouvir tal personalidade eloquente e fascinante falar sobre tão afamada "obra nemesiana". 

Um Poema de Renata Correia Botelho

falhámos tudo: entregámos
os livros ao sepulcro
das estantes, ao amor

demos um colo de horas
certas, deixámos de abrir
janelas para cheirar a noite.

já nada nos lembra
que o poema só se forma
no fio da navalha.


Renata Correia Botelho, in Um Circo no Nevoeiro, 2009.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Da Poesia

              "A palavra, para existir, implica vida, vivência, convivência. Essa é a palavra do poeta. A poesia só existe quando nasce de um acontecimento existencial. Se não for assim, não me interessa. Os melhores poemas são os que nascem da vida. São os poemas que a vida engendra. O poema é o lugar onde a linguagem se transforma. O poema, para mim, é uma aventura, uma felicidade, como o amor. Não faço poesia para angariar glória, não penso entrar para a Academia, nem ficar rico. O meu poema, em geral, nasce do espanto."

Ferreira Gullar, antologia da poesia contemporânea brasileira, edição Alma Azul.

domingo, 16 de novembro de 2014

Eu gosto da tua cara contra o fundo

Eu gosto da tua cara contra o fundo
circunstancial, ocupas o espaço por onde a rua
se intromete, as tuas pernas magras no passeio
como as de um fantoche que só mexe os braços.

Ao canto uma árvore fazia sombra pequena
na desconversa. Estavas mais ou menos
a dizer: nenhum futuro neste sofrimento.
O teu melhor ângulo.


Rui Pires Cabral

Revolta


Susana Aleixo Lopes


terça-feira, 11 de novembro de 2014

A Magnólia

Ágil, estalava a tarde, lá fora
nos passos seguros de quem não tem
temor aos versos. acabara ali

o verão selvagem dos teus olhos,
aquele lugar fundo de água
e de flores onde um cão zeloso
guarda ainda uma biblioteca
e o segredo maior da tempestade.
sem dizer uma palavra,

fui fechando atrás de mim
as alamedas de Manderley,
e saí para comprar uma magnólia.


Renata Correia Botelho, in revista “Telhados de Vidro”, Edições Averno, 2009.

domingo, 9 de novembro de 2014

A Propósito de Estrelas

Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas


Adília Lopes, in Quem Quer Casar Com a Poetisa?, Quasi Edições, 2001

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Nasceu no dia de hoje há 95 anos

Sophia de Mello Breyner Andresen por Eduardo Gageiro


Quando eu morrer voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto do mar




Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A Volta do FAZENDO


      O FAZENDO está de volta e com esta nova volta vai ter que chegar aos cem. Número redondo. Lá chegaremos, sem pressas. Com muita gente a desenhar, outras tantas a escrever, a imaginar e a fotografar. Um barco cheio de gente no mar. E há quem vá lê-lo com o nome de Fazendinho, leitura para pequeninos agentes das artes futuras. O FAZENDO agradece, coração grande. O FAZENDO talvez necessite de sementes, de deixar lastro quando os graúdos se cansarem, se é que um dia isso irá acontecer. Novembro é, portanto, o mês da sua chegada. Ou partida, talvez para muito longe. O Tom Waits, sim, esse que disse que o piano tinha bebido, cantou um mês de Novembro sem sombra, estrelas e lua, mas cá estaremos nós para alumiar esta possível escuridão, este negrume e líquida invernia por vir. Fazendo assim os possíveis e os impossíveis para chegar luminoso a cada vez mais gente. Conseguiremos? Até já.

domingo, 2 de novembro de 2014

tu que viste...

tu que viste fiordes e corais,
que chegaste das palavras
subterrâneas e do que fica
por dizer, que aprendeste o silêncio
em várias línguas e atiraste um dia
a moeda ao ar para enganar
a morte, quantos verbos
queres mais para percorrer
esta narrativa inútil?
Renata Correia Botelho, in Um Circo no Nevoeiro, 2009.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O espanto é não querer avançar.

        O espanto é naturalmente zetético. E viver espantado pode não significar avançar. Adiantar um passo que seja é diligenciar reboliço, convidar à inquietação, ao seu próprio alvoroço, atrair o individual temor perante qualquer movimento em falso. O espanto é este tumulto imóvel, desejar somente contemplar, e assim não determinar a finalidade de um gesto repetido quotidianamente. Olhar e unicamente experienciar a vida pelo interior de nós a deslizar.
       Não querer avançar pode ser também um ato de erudição. Pura sapiência. Evocar os seletos sábios ou o que fomos lendo deles. Permanecer prostrado perante tão delicada planta no corredor da existência serôdia. E de tão alta, tão esguia, tão bela e discreta que o seu nome é só aquilo que a natureza guarda. De gáudio fascinante. Enquanto me curvo é-me concedido um sorriso, o avistar do semblante, o despertar daquela presença concreta e cheia de graça. E de forma vegetal flui a seiva no apelido, já o sabemos. Queremos, por instantes, admirá-la. Essa exibição fresca de movimentos, o fausto e prazenteiro deleite do perfil diariamente visível. E que secretamente escapa, foge, regressando por vagas. É a fina delicadeza em figura, quase sem expressão, como num sonho muito antigo, concedendo apenas aqui e ali um esgar, um minúsculo devaneio de luz e deslumbramento. E a frágil certeza de que o digno de espanto é não querer avançar.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

No meu país

No meu país
dardejado de sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
à flor da possível
geografia
um frémito cinde
as estações do ano.

 Sebastião Alba, in 'O Ritmo do Presságio'

domingo, 26 de outubro de 2014

Queria que me acompanhasses

Queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos.

Ana Paula Inácio, in Vago Pressentimento Azul por Cima, Ilhas, 2000.

A Estação

Fotografia de Tiago Rodrigues.
(Ilha das Flores)

Ontem escrito numa parede da cidade.

"Quando a hora mudar, prometes não falar mais do último verão?"

sábado, 25 de outubro de 2014

Lucas e Medeiros esta noite no Music Box

       A reunião da dupla no concerto do Experimentar Na M´Incomoda, Junho de 2011, que esta pequena imagem dá conta, anunciava já que aquele encontro em palco não poderia ter ficado por ali. E a verdade é que não ficou. Todos os que assistiram ao momento único e celebrativo sabiam que a dita "partilha" era já sinónimo de algo  novo por vir e da absoluta rendição em curso. São, portanto, eles que anunciam esta noite a mudança da hora no Music Box e, não há que ter medo de dizê-lo, que se trata do disco e das canções mais aguardadas deste estação incaracterísitca e avariada. Por sinal, concluído nesta semana de temperaturas elevadas. Aguardemos.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Música d´Outono

Sharon Van Etten - Are we there (Maio 2014)
Faixa: "Afraid of Nothing"
"I can't wait
Til we're afraid
Of nothing
I can't wait
Til we hide
From nothing
Nothing
And you decide
You throw me a lame "wait shit out"
You're a little late
I need you
To be afraid of nothing"

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Aguardar a Ocidente

Fotografia: Tiago Rodrigues

A Imperfeição da Filosofia

         “Há uma grande diferença entre aprender, emagrecer, curar-se, edificar, caminhar e ver, ajuizar, compreender, viver, ser feliz. Há alguma coisa nessa actividade, que é o filosofar, que tem alguma afinidade com caminhar, aprender, curar-se, no sentido em que, efectivamente, é mais pela indeterminação do lugar onde se quer chegar, mais pela impossibilidade de traçar um limite preciso do que pela clara realização da actividade enquanto fim, que aceitamos que filosofar seja como viver ou ser feliz. E isso vê-se no nome Filosofia: amor, uma dedicação e cuidar do que é justo, do que é bom e verdadeiro, da sabedoria, aparecendo o fim da Filosofia aos olhos de Platão como nunca detido: o filósofo não é sábio, está a dois pontos afastado da sabedoria.
          Pois aquele que ama está num embaraço, não sabe o que faz, anda à procura. Não é esta a maneira menos decisiva de justificar a natureza incompleta da Filosofia – termo cujo significado nunca se fixou definitivamente - tarefa intrigante, que leva de cada vez a cabo uma inquirição de identidade, desde sempre grande motivo de escárnio de escândalo. Com efeito, só se pode amar aquilo que não se possui. A imoderação própria da actividade filosófica tem que ver com a natureza do amor.”

in  A Imperfeição da Filosofia, Maria Filomena Molder, Lisboa, Relógio d´Água, 2003.

Poema

Preferia não saber das ruas
onde posso desfazer-me do desejo.
Ir ao encontro das estátuas
para me refazer do medo.

A noite é pequena e cabe
num gesto atirado ao ar
quando se parte sem olhar para trás,
nem necessidade de confirmar amor algum.

 Tirei tudo dos bolsos.
Toquei o rosto para sentir a temperatura.
Não estou morta nem vou morrer.

 De regresso a casa, a única certeza:
que a manhã virá para reflectir a palidez,
a habitual dificuldade em existir cedo.

 
in Pedra de Lume,  Marta Chaves, Lisboa: Paralelo W, 2013, p. 27

Ontem escrito numa parede da cidade

"No Fulanal só podemos ser fulaninhos e fulanões."

domingo, 5 de outubro de 2014

Mar de Outubro

Outubro é o mês da limpa saudade. As raparigas e os rapazes deixam de falar do insondável verão. Os telemóveis suspiram, descansam mais um pouco, sucumbem até aos próximos fins-de-semana. Sosseguemos. Fumam-se mais cigarros no intervalo da vida. E das vagas certezas quotidianas arrefecemos antigos entusiasmos e outros devaneios futuros. Por instantes, não queremos ouvir falar de promessas elencadas no calor das areias. Os dias, subtis, escondem mágoas e às oscilações dos travesseiros contornamos com o azul desbotado das camisas pois julgamos ainda que o Outono ainda não nos venceu completamente. Olhamos em redor e vemos que há paredes que ficaram eternamente por pintar. Prometemos que será no próximo verão de calendário. Até que pode haver dias em que contrariarmos tudo isso. Pode ser hoje, já este domingo? Claro que sim. Levantar com os galos, bem cedo pela manhã, querer muito rever os animais que habitam neste meio do oceano, o atlântico, como sempre na parceria daquele lobo do mar, generoso e sábio, mesmo que os motores possam hesitar nas horas do regresso e, que, contrariamente a tudo o que possam dizer, persistamos no riso e na alegria, ainda que outros continuem frios e distantes sem saber o valor destas horas de contentamento e sem programa. Lembrar que no início da viagem aquela visita dos cagarros que caem a pique, suspendendo a trajectória para impressionar o nosso esgar e lhe seguirmos indefinidamente o rasto no redemoinho das vagas, até depois avistarmos os alvos garajaus nos preparativos da partida até outros lugares de canícula e do sereno do céu. Assim, sem plano traçado, apenas o céu de chumbo e de chuva, ora azul ora cinzento, não prevendo um dia inteirinho no mar na sua cor de cobalto, com a companhia de cachalotes, tão tímidos e exuberantes no seu bufar ou ainda de dinâmicos golfinhos em velocidades leves e estonteantes, de tão exibicionistas naquele brio de performances colectivas. Eis-nos, assim, de volta ao oceano e ao mar. Ao mar de Outubro.  

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Esta Manhã

Esta manhã
vi prédios
beijarem nuvens
e vi nuvens
abraçando prédios.
Esta manhã
soube que
nem só de prédios
vive o céu.

Henrique Manuel Bento Fialhoin Entre o dia e a noite há sempre um sol que se põeEdição do autor, Rio Maior, 2000.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Miss Julie de Liv Ullmann

Desenho de Liv Ullmann
(Daniel Seabra Lopes)
        Demos conta desse rosto e actriz de Ingmar Bergman num domingo de manhã numa sessão do cineclube. Há muito tempo, portanto, para nossa grande surpresa! A sensação inédita de estar perante aquele rosto tal como a presença no écran de uma mulher e actriz demasiado bonita e interessante. Pode-se dizer, que a actriz é intelectualmente apaixonante. Deleitava ouvir o seu timbre suave e melancólico, as inflexões da voz, o sussurrar de uma língua estranha e desconhecida, os gestos discretos, e aquele olhar de uma inatingível ternura, não descurando ainda os cabelos doirados de uma luz ténue, que podemos imaginar ser do norte europeu em período outonal. Liv Ullmann escreveu um livro denominado "Mutações" que não se consegue encontrar nas livrarias portuguesas, mas sim em estantes perdidas de gente interessante. Depois veio a carreira cinematográfica., com o seu primeiro filme intitulou-se "Infidelidade” e, alegria das alegrias, o seu mais recente filme “Miss Julie”, a partir de um texto de Strindberg, que chegará em Novembro às salas portuguesas. Congratulemo-nos em norueguês: Tusen Takk!

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Da tristeza

"(...)A culpa de ter nascido com a Primavera virada para a tristeza - é minha."
                                                               Leonardo Sousa

18

Como se de azul, deliberadamente,
partilharia contigo a boca, a voz,
as emoções e a vida.
 
in "Arqueologia da Palavra", Heitor Aghá Silva, 1991.

domingo, 28 de setembro de 2014

Requiem

"E allora vieni avanti, disse la voce di Tadeus, ormai la casa la conosci. Chiusi la porta alle mie spalle e avanzai per il corridoio. Il corridoio era al buio, e inciampai in un mucchio di cose che caddero per terra. Mi fermai a raccogliere quel che avevo sparso sul pavimento: libri, un giocattolo di legno di quelli che si comprano nelle fiere, un gallo di Barcelos, la statuetta di un santo, un frate delle Caldas con un sesso enorme che faceva capolino fuori dalla tonaca. Inciampare è la tua specialitá, sentii che diceva la voce di Tadeus dall´altra stanza. E la tua collezionnare spazzatura, replicai io, sei senza un soldo e compri frati col cazzo di fuori, quand´è che metti la testa a posto, Tadeus ? Sentii una grande risata, poi Tadeus apparce nel vano della porta, controluce. Vieni avanti timidino, disse lui, questa è la mia casa di sempre, qui ci hai mangiato, ci hai dormito, ci hai scopato, stai facendo finta di non riconoscerla? Neanche per idea, protestai, sono venuto chiarire cosette, sei morto senza dirmi niente, sonno anni che mi ci sto rodendo, ora è venuto il momento di sapere, sono libero oggi, sto vivendo una libertá extrema, davvero, mi sono persino perduto il SuperrEgo, è scaduto come il latte, per davvero, sono libero e liberato, è per questo che sto qui."
 
in Requiem, António Tabuchi, Giangiacomo Feltrinelli, Editore Milano.

Vem aí...o Domingo!

"Perchè perchè
La domenica mi lasci sempre sola
Per andare a vedere la partita
Di pallone
Perchè perchè
Una volta non ci porti anche me."


                                        
                                     Rita Pavone

Amanhecemos funâmbulos na despedida

Amanhecemos funâmbulos na despedida
em remorso de cada vocábulo nosso conquistado
à etimologia de hélice e o verso saqueado
nos olhos, nas mãos de marinheiros em terra,
petiz pavor pela ínsula voraz revolvido 
o estrídulo fascínio pelo pesadelo ao alongar da alba
findou em nós a poesia alinhavada em revestida carga 
desse liame de aventura acometido.

Poema

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


 Mário Cesariny, in "Pena Capital"

sábado, 27 de setembro de 2014

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Discos d´Outono

Angela Olsen - Faixa "Withe Fire"




"If you've still got some light in you then go before it's gone
Burn your fire for no witness, it's the only way it's done"


O Pico é uma roda viva



Fotografia: Dulce Cruz


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Os Garajaus vão para Acra

Os garajaus vão para Acra
alegam a consistência das nuvens
 reforçam o princípio imutável das estações
esperam reunir-se no calor dos veleiros
à nova rota investem brancura no voo
desaparecendo na claridade da canícula
confiscando ao desfolhado Outono
o seu fim, precocemente, anunciado.

17

Construamos barcos para as madrugadas
insulares. Tábua a tábua, porões,
convés, mastreações, velames,
vento nas enxárcias...
Construamo-los nós mesmos: velas brancas,
lemes, mastros, cascos que se afundem
nos horizontes repetidos.
Vertiginosamente aquáticas estas mãos
que adormeceram tempo de mais
no emaranhado dos sargaços
saberão, certamente, como redimir-se.
Desçamos às profundidades oceânicas
galvanizados por essa voz extrema
que nos toca tão de perto
e sintamos em cada tábua que um carpinteiro
alcança a outro carpinteiro – antevisões
de serras, puas, prumos,
viagens puras – cartografia perfeita
inscrita no dorso azul e fusiforme
dos cardumes.
Inéditas seriam estas paisagens submersas
se o coração as não soubesse.
Construamos barcos, ilhas / barcos
derivando.

in "Arqueologia da Palavra", Heitor Aghá Silva, 1991.