segunda-feira, 29 de junho de 2015

Nikola Tesla à beira-mar

Permanecemos  tempo infinito,
talvez demasiado tempo às escuras,
até decifrar um coração pálido, abatido.
Um mapa com cartografia do passado,
calcorrear a linha vermelha,
o novelo da conversa, o privado,
dissertar sobre os filmes no cinema,
morder devagar a língua,
rir de menos, 
sábia guardiã a tristeza,
desviar o olhar e 
não avistar a montanha 
é que de reentrâncias de costa sabemos pouco
pois aquilo que importa,
quase nada ficámos a conhecer. 

domingo, 28 de junho de 2015

"Desligados"

(William Miller and Lester Bangs ao telefone)
Philip Seymour Hoffman
em "Quase Famosos"-2000, 
realizado por Cameron Crowe.



Lester Bangs:They make you feel cool. And hey. I met you. You are not cool
William Miller: I know. Even when I thought I was, I knew I wasn't.

A Erva da Fortuna

A erva da fortuna cresce como por encanto nas orelhas dos políticos, o primeiro-ministro proclama a amnistia para os cucos dos relógios, o degelo nas relações internacionais restabelece o nível das águas nas albufeiras, o ministro da energia esfrega as mãos de contente. Embora o boletim meteorológico seja controlado pelo governo, nuvens cor de chumbo toldam frequentemente o horizonte, os pescadores de águas turvas procuram o alto mar, uma chuva de impostos cai de imprevisto, ah a chuva na primavera, escrevem os poetas.

As andorinhas podem passar livremente a fronteira. Os polícias oferecem grinaldas aos condutores de veículos mal estacionados. O cio invade a assembleia. Os deputados bombardeiam-se com pólen. Um nostálgico do outono argumenta: a primavera de Praga também foi de lagartas nas estradas.

Jorge Sousa Braga in De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Verão de 1970

   "Avalanche" abre o disco "Songs of Love and Hate", gravado no ano de 1970 durante os meses de Agosto e Setembro e editado no ano seguinte. Era o terceiro álbum de originais do cantor canadiano. Quem ouve este disco sabe que é um homem de meia idade, um cantor em tom maior, alguém que está fora de qualquer cânone ou forma de identificação, alguém que diz poesia em plena forma, num exercício melódico de oração. Quase meio século depois, agora numa segunda versão, desta vez para série de televisão, o australiano Nick Cave intensifica o sermão e dignifica o lamento, elevando a canção de Cohen à condição de vale de lágrimas. Neste preciso instante esbate-se a noção de ídolo e de fã e surge o irrepreensível gesto de homenagem em vida. A entrega de Nick Cave quase ultrapassa a versão original. Que cantem: Cohen, Cave e...Marissa Nadler! 

Ontem escrito numa parede da cidade...

Desde que deixamos de avistar de onde sopra o vento navegamos em sentido contrário.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Canções da Melancolia Aguda

Jens Lekman- "When I said I wanted to be your dog"
(capa retirada de www.thelineofbestfit.com)

(...)
But I know, yes I know,
They're flying within you again,
But I won't let them get you
Cause you're my only friend
You're my only friend

When I said I wanted to be your dog
I wasn't coming on to you
I just wanted to lick your face
Lick those raindrops from the rainy days
(...)

domingo, 21 de junho de 2015

O Meu Avô e o Riso

       Quando era pequeno, aliás, demasiado pequeno, ri muito com o meu avô. O meu avô e o meu riso eram parte do mesmo cenário. Ainda hoje quando me rio parece que estou na presença do meu avô. O meu avô contava-me muitas histórias, tantas histórias que vim a saber alguns anos mais tarde, eram, na sua maioria, inventadas por ele naquele preciso momento. O meu avô ria-se sempre mais do que qualquer um das suas histórias. Eram histórias de aventura, partidas, regressos, promessas de felicidade, ou momentos de pura estúrdia. O meu avô nunca viveu connosco e, quando aparecia em nossa casa, eu expulsava-o sempre do alto das escadas e ao qual ele respondia com uma palavra apenas: "Judas"! 
     Ele acordava-me muito cedo para passear pela praia do pescado e, junto com ele, fui algumas vezes navegar de barco ou ver os outros barcos varados no areal. E por isso ainda hoje me lembro de ter chorado tanto quando o meu avô nos levou pela primeira vez numa viagem de barco com o propósito de perder o medo. O meu avô morreu quando eu tinha dez anos sem ninguém esperar, sem ter dito a ninguém que se ia embora, assim de repente. Disseram que foi um formigueiro num braço, até que lhe deu uma daquelas fúrias e foi sozinho até ao hospital. Sozinho, madrugada fora. O meu avô viveu uma boa parte da sua vida no Brasil, esse país em que lhe prometiam a construção naval e acabava na pesca. A minha avó contava que quando ele voltou de vez, veio vestido de fato branco sem um tostão no bolso, aliás o meu avô gostava tanto do Brasil que raramente trazia dinheiro para ajudar a família. Tenho pena, muita pena de só ter vivido apenas até aos dez anos com o meu avô. E talvez seja por isso que continuo a rir.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Os Filmes Coloridos de João Camilo

     
  Uma das coisas que mais gosto de fazer quando vou à procura de um livro é descobrir poetas ou romancistas de que nunca ninguém tenha ouvido falar, ou que então se considerem esquecidos. Lembro-me de um dia ter encontrado um pequeno livro de poemas intitulado “Filmes Coloridos”, num fundo de uma livraria/armazém da cidade Porto. Aquele livro parecia-me abandonado, sem leitores, olvidado. Como na altura me parecia barato – cinquenta escudos – fui oferecendo a todos os meus amigos que encontrava na rua. Esse livro do poeta João Camilo serviu também para uma noite de poesia colectiva/performance no jardim de uma república coimbrã, enquanto estudante, e ainda hoje me acompanha. Passaram-se tantos anos e é como se este livro continuasse vivo por aqui. É o livro que eu gostaria de ter escrito, o livro que eu gostaria de ter publicado e, por isso, ainda bem que existe.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

À Tardinha com a Veja e o Vejo...

Vejo: Boa tarde, bons olhos te vejam. Como vais?
Veja: Bem, obrigado e abrigada como deves imaginar.
Vejo: O que fizeste hoje?
Veja: Hoje desenhei vários percursos, delineei rotas dos meus dias futuros, pintei-me de várias cores e nadei junto de várias rochas.
Vejo: Daí te apelidarem de papagaio?
Veja: Sim. Prefiro papagaio a Sparisoma Cretense, nome científico, mas como fêmea sou bastante 
colorida.
Vejo: Tiveste um dia cansativo?
Veja: Sim, bastante. Agora vou procurar águas profundas, nadar um pouco…viajar de olhos bem abertos.
Vejo: Já vi que és contemplativa, observadora?
Veja: Certo. Sabes que tenho que fazer jus ao meu nome.
Vejo: Contaram-me que nem à noite fecham os olhos, permanecem em estado letárgico, adormecem de olhos abertos, ainda que sempre atentas.
Veja: Dormimos bem lá no fundo, mas estamos sempre alerta. Temos uma película que nos ajuda a camuflar dos potenciais predadores, confiamos tanto na camuflagem que nos podem tocar enquanto dormimos sem acordar.
Vejo: O que costumam fazer no verão?
Veja: Vamos preparar as nossas famílias futuras, essencialmente em Agosto e Setembro aumentamos de número, ainda que depois gostemos de viajar com um grupo de seis.
Vejo: Constato que agora te encontras sozinha.
Veja: É por pouco tempo…vou já embora.
Vejo: Como gostaria de ir contigo…
Veja: Outro dia. Prefiro viajar sozinha para depois contar o que me aconteceu. Há muito que me encontro a nadar junto das rochas em busca de algas e invertebrados. É altura de procurar outras águas…outros mares.
Vejo: Vejo que sim. Boa viagem.
Veja: Até mais ver.
Vejo: Assim seja. Gostei de te ver. 

Marujo

Dão, Dão
Triste vida a do marujo
Qual delas a mais cansada
Por mor da triste soldada
Às tempestades! Às tempestades!
Dão, Dão.
Andar à chuva e aos ventos
Quer de verão, quer de inverno
Parece o próprio inferno
Às tempestades! Às tempestades
Dão, Dão.
Passam-se dias inteiros
Sem se poder cozinhar
Nem tão pouco mal assar
Nossas comidas! Nossas comidas!
Dão! Dão!
E quando mestre de estribe
Dizendo desta maneira
Moço ferra subideira
Ao joanete, ao joanete
Dão, dão.
Tão bem prega seu falsete
Por não mais poder gritar
Cada qual ao seu lugar
Até ver isto, até ver isto.
Dão, Dão.
Dão, Dão.
Lembrar-me certas senhoras
Com quem me dava em terra
Agora me fazem guerra
Ao meu dinheiro, ao meu dinheiro.
Dão, Dão.
Quem aumentou esta cantiga
Foi um pobre marinheiro
Toda a vida embarcado
Sem ter dinheiro,
Dão, Dão.

Tema popular florentino pertencente ao Cancioneiro Açoriano, recriado por Carlinhos Medeiros in Cantar Na M´Incomoda, 1998.

domingo, 14 de junho de 2015

Foram as Bicicletas que Inventaram o Verão

              A partir do momento em que as nuvens negras desaparecem, os guarda-chuvas são arrumados nas prateleiras, o azul do céu se torna estável e a temperatura aquece, há quem tire a bicicleta da garagem e anuncie aos quatro ventos que a democracia nas estradas ganhou um novo parceiro.
      Acreditem, isto não é nostalgia. E quem escreve não é nefelibata. As bicicletas também têm espaço neste mundo cheio de futuro ou de povos que insistem em não ter memória. Pois, para alegria de uns e desespero dos outros, o veículo de duas rodas nunca estará na moda aqui em Portugal, principalmente nas principais cidades. A prova máxima disso encontra-se na imagem do seu utilizador comum, que a maior parte das vezes ostenta uma cara dor e sacrifício sempre que é visto a puxar por pedais e cremalheiras. Outra das razões que os mais preguiçosos apontam para o insucesso deste velocípede tem a ver com a constituição física das nossas duas cidades maiores, onde abundam as descidas picadas e as subidas extremas.
       Estamos, por isso, longe do norte europeu, onde a bicicleta a pedal foi talvez o mais amado dos transportes terrestres. Em países como a Holanda, a Bélgica, a Dinamarca, o Reino Unido, jamais se pedalou por obrigação, mas por prazer, sendo raro conhecer-se belga, holandês ou dinamarquês que não tenha uma "ginga" arrumada no quintal ou na garagem. Mais ainda teriam a dizer os seus antepassados, pois não terá sido por acaso que a primeira bicicleta com pedais (na roda dianteira) foi construída, à volta de 1839, por Kirkpatrick Macmillan, um ferreiro escocês. Mas seria só em 1885 que apareceria a primeira bicicleta moderna reconhecível, com uma corrente fazendo a ligação dos pedais à roda traseira. Este modelo foi denominado "bicicleta segura", por ambas as rodas serem de tamanho igual, em vez do modelo anterior, no qual o ciclista se sentava no topo de uma enorme roda dianteira. Esta nova bicicleta criaria uma vaga ciclística na Europa e nos Estados Unidos, providenciando aos trabalhadores um meio de transporte barato e conveniente. O aparecimento do automóvel, nos primórdios do século XX, diminuiu gradualmente o papel da bicicleta nos países desenvolvidos, mas ela mantém-se como uma forma básica de transporte em muitas outras partes do mundo.
                Neste pequeno país do sul da Europa, os primeiros a tomarem o gosto à bicicleta foram os operários, que mais tarde, na sua condição de "remediados", deixaram as suas estimadas "pasteleiras" e adquiriram motorizadas de "terceira divisão", verdadeiras promotoras da poluição sonora e atmosférica. Hoje, os filhos da classe média sonham com motas potentes, dotadas de encantadores ruídos capazes de seduzir as suas femininas paixões. Um dia, já com a tal mota, perceberão que os pais delas teriam preferido que as filhas dessem umas voltas com eles nas bicicletas. "É mais seguro e mais económico" - dirão para os lençóis numa noite de sábado.
                Num passado não muito longínquo vivíamos agarrados às histórias dos descobrimentos e à visão poética do mar, dos barcos e dos marinheiros, que marcaram e definiram a imagem deste povo e da sua história trágico-marítima. Actualmente, deixámos o Atlântico e virámo-nos para a Europa, provando as estatísticas a espectacular subida das vendas de automóveis. Esses veículos poluidores, verdadeiros "dealers" de monóxido de carbono: grandes consumidores, para grandes viciados e grandes intoxicados. Tudo em grande. E foi mesmo o automóvel que, nos primórdios do século que passsou, fez diminuir o papel da bicicleta nos países desenvolvidos.
                Em Aveiro, pequena cidade do centro do país, criou-se entretanto a BUGA (Bicicleta de Uso Gratuito de Aveiro), fomentando o número de utilizadores, generalizando o seu uso, facilitando a mobilidade entre os vários espaços citadinos. É com pena que não se assiste à extensão desta medida autárquica a outras cidades planas do território nacional, como Guimarães, Évora, Esposende ou Vila do Conde.
                Pequena é porém a "elite" que insiste em tratar a bicicleta como meio de transporte nobre, que de facto ela é. São os chamados "alienados do pedal". E são realmente os pedais que os fazem mover por essas estradas fora, descida abaixo, subida acima, sempre a pedalar. Adoram a natureza, detestam o barulho e se pudessem acabavam de vez com a poluição no planeta. Para estes, andar de bicicleta representa um estádio superior de civilização. E quem os vê pedalar, cheios de vigor e entusiasmo, chega a pensar que a revolta das bicicletas estará próxima. Pois que seja para breve, bicicleteiros!

(Artigo publicado na zonanon em Abril de 2002)

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Amar ou odiar

Amar ou odiar: ou tudo ou nada!
O meio-termo é que não pode ser
A alma tem d’estar sobressaltada
P’ra o nosso barro se sentir viver.

Não é uma cruz a que não for pesada,
Metade dum prazer não é um prazer;
E quem quiser a alma sossegada
Fuja do mundo e deixe-se morrer.

Vive-se tanto mais quanto se sente;
Todo o valor está no que sofremos…
Que nenhum homem seja indiferente!

Amemos muito, como odiamos já:
A verdade está sempre nos extremos,
Porque é no sentimento que ela está.

Fausto Guedes Teixeira, Lamego (1871 – 1940)

Camões

Transforma-se o amador na cousa amada,

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.


Luís Vaz de Camões, in "Sonetos".

terça-feira, 9 de junho de 2015

Pequenas Notas de Desagravo Após Missiva de Janeiro Alves

Começo por referir que o senhor Janeiro Alves foi absolutamente implacável, para não dizer deveras cruel, com a pessoa do Professor Doutor Mara. O que é um facto é que este encontra-se em reclusão forçada há mais de duas semanas a preparar, pensar e redigir uma resposta condizente com tudo aquilo que se passou. Como se diz actualmente nos meios literários mais obscuros: “Agora sim, temos acção, ou então vou só ali fumar um cigarro, 1 minuto.
É absolutamente verdade, todos nós sabemos ou quase todos, que ele andava a pedi-las, como há muito se dizia por aí nos meios mais anárquico-contundentes. No entanto, deixe-me dizer que o amigo Janeiro não lhe deu qualquer hipótese e, até há instantes, ninguém sabia como este se irá recompor depois do sucedido.
Uma coisa é verdade, o Doutor Mara há muito que vive à grande e à francesa, acima de facto das suas possibilidades e estatuto e, tal e qual como diz o meu caro amigo,  é a mais pura verdade "que trocou os filetes de peixe por luxuosas iguarias e que come santola ao pequeno almoço e vieiras ao jantar". Quando confrontado com esta situação pelo público curioso, foi bastante penoso ouvi-lo penitenciar-se e argumentar sobre tudo isto, pois há aqui um grau de dificuldade nesta sua nova existência de velejador-gourmet. De qualquer modo, estou em crer que o Dr. Mara tem a arte e a mestria para sair da situação sem ser pela porta do cavalo. Como o senhor Janeiro Alves  a determinada altura afirma:"Tenho-o como um homem de bem, apesar da forma errática como tem conduzido a sua vida, e apesar de todos os escândalos em que se envolveu por intermédio da sua promíscua relação com a família Manaia." Ora bem, esta frase deixou-o, posso confessar-lhe com toda a certeza, em estado choque, já que quase engoliu uma espinha de cântaro, ou terá sido do Boca Negra?, dado que todos nós sabemos que a bonita Miriam Manaia é a sua paixão de longa data, daí o amigo Janeiro nunca lhe ter perdoado a relação dele com a mais bela dos Manos Manaias.
Aguardo, por isso, a qualquer momento uma saída airosa desta situação, sem  constrangimentos, ainda que pense que o Doutor tem capacidades que o próprio doutor desconhece e que sairá, certamente, pela porta grande!

          Agora vou dormir, que amanhã toca a sineta e tenho de pôr o elefante do Doutor a beber água!

O Advogado e Secretário do Professor Doutor, 
Doutor Mara,

Zulmiro da Conceição



Não se Paga! Não se Paga! de Dario Fo

Novo Grémio Faialense pelo Teatro Giz

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Uma Missiva no Dealbar de Junho de Janeiro Alves

Doutor Mara,

       Estou estupefacto, que é como quem diz, estou estúpido de facto. Atenção, não confundir com estúpido de fato, expressão reservada aos que empobreceram a língua de Camões. Estou de facto estupefacto porque me chegaram aos ouvidos informações pouco abonatórias a seu respeito. Tão pouco abonatórias que eu diria até desabonatórias.
Sussurram-se pelas ruas de Lisboa as mais acutilantes farpas a seu respeito, deveras comprometedoras aliás. Diz-se que anda a viver acima das suas possibilidades, à grande e à francesa. Que trocou os filetes de peixe por luxuosas iguarias que incluem santola ao pequeno-almoço e vieiras ao jantar. Que foi visto a beber champagne do bom e do melhor na Sociedade Eusébio Deus da Pátria, tendo sido apanhado numa conversa sobre malas da Louis Vuitton com burgueses engravatados. Que mandou vir de Itália uns sapatos de pele de crocodilo que usa para grandes jantaradas e para passear no canal sentado no lounge de um Iate Ferreti, degustando Mon Cherrys feitos com fruta da época, e servidos em bandeja de prata por empregados do Bangladesh. Também me foi dito que ultimamente se pavoneia na avenida de fato branco e óculos 3D, acompanhado de algumas divas internacionais do espectáculo e das variedades, cumprimentando toda a gente com um aceno de mão, mesmo aqueles que não conhece. Enfim, que está transformado num grande burguês.
Confesso-lhe, Dr. Mara, que necessitei de alguns dias para reflectir sobre o assunto, intercalando com outras reflexões de índole mais científica, como por exemplo a problemática da actual falta de meios e de conhecimentos para uma observação eficaz das naturezas mortas.
Tenho-o como um homem de bem, apesar da forma errática como tem conduzido a sua vida, e apesar de todos os escândalos em que se envolveu por intermédio da sua promíscua relação com a família Manaia. Tenho-o também como um homem culto, das filosofias e das humanidades, apesar de saber que não perde os programas do Goucha, também conhecido como o Pomba Branca. Enfim, vejo-me incapacitado de o relacionar a tal descalabro, e portanto presumo que esteja a ser alvo de uma cabala, uma verdadeira maquinação de malvados ou maganos, com o intuito de denegrir a sua imagem e consequentemente desmantelar o seu edificado intelectual. Depois de todos os retrocessos que tem vindo a fazer após o seu pico de popularidade, imagino que estes rumores sejam para si verdadeiras chibatadas nas costas, e lhe causem um sério transtorno.
Dito isto, deixo aqui registado, assinado e subscrito, que estou solidário com a sua ilustre persona. Não o posso ajudar, pois como o Dr. Mara sabe, a observação e registo de fenómenos para normais ocupa todo o meu tempo. Mas posso aconselhar-lhe alguns capangas para o proteger no caso de ter de avançar para o exílio. Aconselho-lhe Bordéus, onde encontrará bons vinhos e óptimos filetes de peixe.
Junto a esta carta, seguem algumas conservas Bom Petisco e uma garrafa de Macieira, que lhe pouparão pelo menos uma ida ao supermercado, evitando que se confronte com a ira popular dos seus admiradores. Aguardo notícia de como pensa sair de toda esta situação constrangedora.

Com reforçada consideração,

Janeiro Alves 

terça-feira, 2 de junho de 2015

100

     
        O Jornal FAZENDO chega hoje ao número cem. Número redondo. Nada de muito extraordinário, dirão. Mas é tão bom aqui chegar, saber que houve para isso tanta gente a desenhar, outras tantas a escrever, a imaginar e a fotografar. Perseverança. Um barco cheio de gente no mar. Agora também com o Fazendinho, suplemento para agentes em crescimento das artes futuras. O FAZENDO só tem a agradecer, coração grande, demasiado grande. O FAZENDO é apenas a semente. Junho é, portanto, o mês da sua chegada. O recomeço de uma nova viagem. Sim, agora que os garajaus regressam e a Selah Sue  cantará a felicidade dos dias estivais. Parabéns!

Boris Kovac & La Campanella

Malena, 2005