domingo, 30 de abril de 2017

Do Fausto

Entendamo-nos bem. não ponho eu mira
na posse do que o mundo alcunha gozos,
   O que eu preciso e quero, é atordoar-me
Quero a embriaguez de incomportáveis dores,
a volúpia do ódio, o arroubamento
das sumas aflições. Estou curado
das sedes do saber; ora em diante 
às dores todas escancaro est´alma.
As sensações da espécie humana em peso.
quero-as eu dentro em mim; se entranhem
aqui onde à vontade a mente minha
os abrace, os tateie; assim me torno
eu próprio humanidade; e se ela ao cabo
perdida for, me perderei com ela.

in Fausto, Goethe. 

sábado, 29 de abril de 2017

Do Inventor do Nefoscópio de Reflexão

Edição do Instituto Açoriano de Cultura
Angra do Heroísmo, 2017
(Fotografia do livro sobre o banco-Carlos Olyveira)

        “Os passageiros da classe turística são quase todos gregos. Há de tudo, desde o janota com pretensões a gentleman até aos vaqueiros da Califórnia. Poucos interessam. Uma rapariga, alta e esguia, tem todo o tipo das mulheres gregas antigas, e parece tirada de um friso, mas falta-lhe vida. Uma americana loura corre o navio de um lado para o outro em calções, com umas pernas queimadíssimas do sol. Uma húngara, entrada em Lisboa, de reputação duvidosa, tem os cabelos de linho e ares de Dama das Camélias. Diz o meu companheiro que um meu amigo de outrora, J.R., gastou com ela umas dezenas de contos de reis! A americana estouvada entrevistou-a e veio-me pedir para lhe servir de intérprete, porque a húngara só fala francês!! Vaidade ou ingenuidade. Já estou velho para servir de intérprete a damas daquele quilate.
    Depois do jantar foi uma desolação. Os gregos desapareceram cedo. Comeram quase todos na primeira mesa e deitaram-se logo a seguir. Os passageiros melhores foram ouvir o concerto da 1ªclasse. Eu assentei-me sozinho, num grande salão, a ouvi-lo num pick-up. Um belo barítono cantou qualquer coisa que me agradou muito. Disseram-me hoje que é um cantor de certa fama, que viaja na 1ªclasse. A orquestra – uma orquestra muito mais completa do que aquela que toca no nosso salão – executou com decência o 1812 de Tchaikovsky. A maior parte dos músicos são criados de câmara. Mas os italianos são assim, qualquer coisa sempre e mais músicos.” 

in "Primeira Parte - Lisboa-Argel-Nápoles-Roma-Bolonha 
22/08/1937: 05/09/1937"- Coordenação Carlos Guilherme Riley.

Os Volantes Pés de Tatiana Grenkova

Nada tolherá esta insuficiência
mácula e decepção à partida
tal absorto e atento espectador
examina céptico em pose deslumbrado
o suave e clássico discernimento
dos pés em riste e dos tiques de cisne
assiste e acusa gravidade
sopro, silêncio e voo
na aguardada retoma dos gestos
alento do baile na poltrona de abrigo
as mãos que ondulam e vogam
à deriva de vagas com sentido
antes da superfície frontal oclusa.

27 de Abril, Tascá.

Doutor Mara

Doutor Mara por Diogo Fonseca

Manuel Ribeiro de Pavia (1910-1957)

S/Título 1952
Colecção Dórdio Guimarães

domingo, 23 de abril de 2017

Um Poema Vindo de Londres

Enviaram-me um poema de Londres a anunciar
a comoção dos pássaros à chegada
e demais versos sobre periferias abandonadas
com raparigas dengosas à janela
a recusa do êxtase  e dos pingos da existência
num universo cada vez mais supérfluo 
em expansão.

Às vezes acreditamos que o melhor ainda está para vir
a desenvoltura das ruas, a ligeireza dos corpos
enganamos a palidez do voo com penas e asas
ditos por ornitólogos ao entardecer na amurada do cais
consumidos por mazelas, presságios e ruínas
arautos de água pouco fértil,
a escorrer pelos campos e veredas
no desfecho de uma primavera que se quis ausente.

12 de Abril de 2017, na Tascá.

sábado, 22 de abril de 2017

O Tremor dá música por todos os lados

O Diário Gráfico do Tremor 
(Coordenação de Marcos Farrajota)
      Uma das noites surpresa da quarta edição do Tremor foi o concerto dos "Circuit des Yeux" no Auditório Camões. Meia hora decorrida após o início do concerto e o mistério daquela atmosfera, repleta de dúvidas e silêncios, adensava-se. Aliás, o encanto indagador ia crescendo, o poder daquela voz enigmática, misteriosa, assim o concedia. Voz de homem ou mulher? Eis que os efeitos, a envolvência e a gravidade desaparecem e é a voz da própria Haley Fohr que se impõe, que emudece a sala que naquele instante que se encontrava cheia e remete aquela ambiência e atmosfera final do concerto para algo único, excitante e indecifrável. Valeu claro! Ali estava um momento marcante, poderoso, inesquecível!
        A música em sítios inesperados e pouco usuais é a grande marca deste festival musical que se realiza todos os anos por esta altura na Ilha de São Miguel. Outra coisa são os convidados que amaram à Ilha para criar, desenvolver projectos junto da comunidade local. Um deles foi Marcos Farrajota, um dos editores da Chili com Carne, que teve a oportunidade  de juntar alunos da Escola Secundária Antero de Quental e construir com eles um diário gráfico do próprio festival.
        Assim, durante o interregno pascal alunos de turmas de artes iam desenhando o que viram/imaginaram ao longo da semana, tendo as situações dos concertos/espectáculos como mote e tema para explorar e expandir o seu engenho e criatividade. O resultado, tal como podem observar pelos folhetos distribuídos aquando do fecho do festival, é sempre estimulante e até, por vezes, bastante surpreendente. Muito embora, a festa do Tremor seja apenas no sábado, os concertos surpresa já tinham começado alguns dias antes. Que sábado  (o grande dia do Tremor!) viesse e nos trouxesse o relógio certeiro dos Mão Morta(cada vez mais afinados e directos) ou o semba mágico e alegre do Bonga, já todos sabíamos, mas tudo aquilo que se passa antes, aquelas horas em périplo à procura das músicas e dos concertos, isso sim, é que é quase sempre imprevisto, diversificado e inesperado! Para o ano há certamente mais música e demais abalos gráficos.

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Interrogatório I (Alberto Ai interroga Dr. Álvaro Bruma no Ramiro em Lisboa)

Dr. Álvaro Bruma é um conceituado meteorologista insular, que ficou famoso pelas suas polémicas teorias sobre o clima, de onde resultaram sentenças como “O clima de suspeição que se vive em Portugal é mais elevado no Inverno devido a factores psicológicos” ou “Altas concentrações de actividade sexual contribuem decisivamente para o aquecimento global”. Depois de várias tentativas falhadas por parte da nossa redacção, eis que conseguimos um exclusivo com Dr. Álvaro Bruma, que assentiu a conversar um pouco com Alberto Ai, desde que o fossemos buscar a casa e lhe pagássemos a viagem e o almoço. Apesar dos parcos recursos desta redacção, achámos que valeria a pena o esforço financeiro. Alberto Ai e Dr. Bruma almoçaram santola no Ramiro, e o resultado foi este:
Alberto Ai: Antes de começar a nossa entrevista, queria-lhe agradecer o convite que me fez para ir visitar a sua colecção de répteis. Começaria por lhe perguntar de onde vem esta paixão?
Dr. Álvaro Bruma: Não diria bem paixão, mas uma volúpia de trazer por casa. Uma inolvidável volúpia por tudo que tenhas asas ou capacidade de trepar (os nossos irmãos brasileiros estão já escandalizados com este meu arrojo linguístico) mas é, sobretudo, isso. É um prazer vetusto, com muitos anos, sem dúvida, mas convirá dizer que foi muito tempo depois do surgimento da anestesia.
AA: Conhecidas que são as suas ideias sobre o clima de suspeição em Portugal, considera que o clima económico desfavorável é um céu carregado de nuvens negras, ou apenas neblinas e nevoeiros matinais de um dia radioso de sol?
DAB: Creio que a suspeição num país de justiça lenta faz parte do ambiente geral. É parte integrante do estado do tempo e, com frequência somos apanhados, não pela justiça, mas sim pela instabilidade climatérica e pelas temperaturas moderadas. Precisaríamos de justiça como de água no vinho mas a malta só tem sede de justiça na esplanada. Depois, essa mesma malta bebe dois copos de tinto, vê e assiste a um comentador desportivo e a coisa passa. 
AA: Há quem o chame de “eremita de Santa Maria”, que resulta do facto de viver isolado no interior da ilha, não criando laços de afinidade com a população local. Vive como quer, ou vive como pode?
DAB: Vivo como quero e como quando posso, evidentemente, pois nasci no meio daquela terra barrenta com odor a vaca por todos os lados. Actualmente, não há nada nem ninguém que me consiga dar ordens. Produzo aquilo que bebo e como aquilo que planto, sou mesmo auto-suficiente. De vez em quando, vou às grandes superfícies ver as oscilações do preço das sementes e começo de imediato a barafustar com os empregados, o que não é nada saudável. O meu nome já deve constar das altas esferas da conspiração e espionagem internacional. 
AA: Qual foi a coisa mais surpreendente que viu na sua actividade de observação de fenómenos atmosféricos?
DAB: Foram as auroras boreais em Tromsø, ali na Noruega. Estava com a minha companheira, a Celeste, uma minhota de olhos cor de amêndoa, estávamos na presença de 230 cm de neve e a média da temperatura daquele Janeiro rondava os-4 °C. Estávamos completamente gelados, a pingar do nariz e os ossos petrificados, mas felizes. Não me lembro de mais nada assim.
AA: Dr. Álvaro, o que faz nos seus tempos livres?
DAB: Tenho sempre comigo um nefoscópio de reflexão onde vejo a direção e meço a velocidade das nuvens. Passo horas com picos de ansiedade e quase me esqueço de jantar. Há dias telefonaram-me para ir dar uma conferência sobre altas e baixas pressões e eu não ouvi, pois encontrava-me a seguir uma nuvem denominada de Altocumullus que ia em direção à Ilhéu de Vila Franca mas com um pendor desviante para o ilhéu das Formigas. 
AA: O que levou o Dr. Álvaro a seguir esta actividade? Corrobora da ideia generalizada de que para abraçar a profissão de meteorologista é necessário ser-se um pouco apanhado do clima ou andar com a cabeça nas nuvens?
DAB: Sim, é um facto. Eu fiquei conhecido na faculdade pelo Professor Doutor Nefelibata. Cheguei mesmo a criar um conjunto musical intitulado “Bardos & Nefelibatas”. Nunca ensaiamos na vida, mas fomos capazes de dar doze concertos, já que havia a premissa de que só tocaríamos quando fizesse bom tempo. Curiosamente a banda terminou num concerto em que fomos atingidos todos por um raio e sua respectiva trovoada que deu cabo da mesa de mistura e dos instrumentos. É uma sorte estarmos vivos, é um facto. Mais sorte tivemos quando soubemos que um dos nossos fãs decidiu pagar os estragos com uma herança de um bisavó, o que não foi pouco. 
AA: O que pensa da dispensa de meteorologistas da televisão portuguesa, e da sua substituição por mulheres bem delineadas de roupas leves, que ditam a previsão do estado do tempo lendo o teleponto ao som de música erótica?
DAB: Não vejo televisão desde o furacão Alex, achei que aquele embuste foi demais. Quanto às roupas leves é uma das consequências das alterações climáticas, pois vamos sendo despojados do essencial e qualquer dia teremos que andar com aquilo com que viemos ao mundo. Quanto à música erótica, afianço-vos, meus amigos, que esta já teve também melhores dias.
AA: Por fim, e agradecendo desde já esta sua entrevista ao Interrogatório, pedia-lhe que nos desse a previsão do estado do tempo para os próximos dias.
             DAB: Alguma chuva, boas abertas, claro. E para vocês também.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Sobre a Sala de Embarque no Teatro Micaelense

 
(Fotografia de Carlos Olyveira)

         Quatro personagens encontram-se, por razões diversas, numa difusa sala de embarque: um velho em perda mental, uma rapariga sonhadora, um jovem impaciente e uma mulher de meia-idade caída no desemprego. O cenário é simples: no palco, dois bancos de madeira condensam o impasse e as tensões que se vão estabelecer entre o quarteto; no alto, nuvens suspensas, que tanto alimentam sonhos como anunciam tempestades. Nos Açores, os humores atmosféricos acentuam essa ambiguidade. Nunca se sabe o dia de amanhã e, talvez por isso, o final seja em aberto. Ninguém parte de mala vazia, sem as sombras do passado e as interrogações do futuro. Não estamos num momento definido, mas é impossível dissociarmos do nosso tempo mais recente, os anos da Troika, em que nos indicavam uma porta de saída do país, aconselhavam “a abandonar a nossa zona de conforto”, que não “fossemos piegas”. Não sou competente para discutir questões técnicas, representações, textos e ritmos da dramaturgia. Nem se fosse o caso isso teria qualquer interesse para aqui. O que eu quero salientar são a coragem e o empenho de uma equipa alargada não profissional em levar à cena uma reflexão sobre a partida, primeiro, no final do ano passado, na Galeria Arco 8, e, no dia 25 de Março de 2017, no salão nobre da ilha, o Teatro Micaelense. Tal como nas três sessões anteriores, a sala esgotou. Valeu a pena a viagem, a deles e a minha. Ao contrário do que nos acusam, nem sempre gastamos todo o tempo e o dinheiro “em copos e mulheres”.

Paulo Lisboa

Hoje, às 18h30, na Tipografia Micaelense

Fotografia de Carlos Olyveira 
       Os micro-contos estão prontos. A reunião está feita e o trabalho de tipografia está concluído. São sete micro-contos efectuados na Tipografia Micaelense sob a orientação gráfica de Júlia Garcia e o trabalho colaborativo de Eduardo Furtado e Dinis Botelho. Ao todo sete narrativas minúsculas que se lêem de jorro, entre o café e uma torrada, e que nem por isso deixam de provocar regalo e delícia nos olhos mais atentos perante a beleza de tal arrojo e empreendimento. Foi oficio prolongado e que explorou os tipos existentes naquele espaço tipográfico repleto de memórias e labores. Os autores destas pequenas histórias são: Nuno Marques da Silva, Blanca Martín Calero, Fernando Nunes, Laura Borges, Francisco Melo Bento, Eduardo Brito e João Pedro Porto. Mais logo, pela tardinha, há leituras e conversas para quem quiser aparecer. 

Caderrnos de Poesia no Tascá

Fotografia Carlos Olyveira


             Saiu aquando do “Pontes-Gramáticas da Criação", esta edição dos “Cadernos de Poesia da Tascá” e conta com o arranjo gráfico de Júlia Garcia e a organização de Diana Diegues e Rita Freire. O seu interior contém poemas de Blanca Calero, Bruno Soares, Eduardo Brito, Fernando Martinho Guimarães, Fernando Nunes, João Malaquias, Leonardo, Miguel Teixeira de Andrade, Regina Guimarães, Urbano Bettencourt, ainda as colagens de Paula Mota e João Amado. Lá dentro há poemas para todos os gostos e feitios  e, claro, poesia evocativa de um amigo, um grande amigo, aliás, alguém que continuará presente nas sessões de poesia da Tascá, permanecendo em memória e sempre com o rastilho e aquela sua vontade de continuar fazendo. Os actuais fazedores não se esquecerão e  saberão lembrar o seu nome: João da Ponte! 

domingo, 2 de abril de 2017

Pontes: Gramáticas da Criação em Ponta Delgada

Fotografia de Carlos Olyveira
Durante cinco dias da passada semana e, sempre ao fim da tarde, cumpriu-se o “Pontes – Gramáticas da Criação”. Duas dezenas de convidados estiveram na cidade de Ponta Delgada a partilhar ofícios e conhecimento, a conversar sobre os seus temas e assuntos de eleição, acolhidos que foram em lugares como os da Galeria Arco 8, Sinaga, Tascá e Igreja da Mãe de Deus.
Uma vez por ano, no dealbar da Primavera, os dias e a vida poderiam muito bem ser assim: reflectir em conjunto sobre aquilo que se faz, produz, constrói, isto é, falar sobre os caminhos das artes e da cultura e, porque não, o solidificar de várias cumplicidades e demais projectos criativos em que se encontram envolvidos. E como foi interessante e deveras entusiasmante, poder conhecer as visões de Nova Iorque de Jorge Monjardino e Paulo Abreu, a artesania editorial da Hélastre, de Saguenail e de Regina Guimarães, a descoberta e pesquisa dos sons de Raquel Castro, as curtas viandantes de André Laranjinha e Eduardo Brito, as ideias e as palavras representadas de Lígia Soares e Miguel Castro Caldas ou ainda a música atlântica de Medeiros/Lucas. A acrescentar, tal como uma cereja em cima de um bolo, algo que o João da Ponte também gostaria de ter participado - a edição dos “Cadernos de Poesia da Tascá”, com o design de Júlia Garcia, a organização de Diana Diegues e Rita Freire e com poemas de Blanca Calero, Bruno Soares, Eduardo Brito, Fernando Martinho Guimarães, Fernando Nunes, João Malaquias, Leonardo, Miguel Teixeira de Andrade, Regina Guimarães, Urbano Bettencourt, ainda as colagens de Paula Mota e João Amado.
         Após cinco fins de tarde intensos, curiosos e estimulantes, simples será de concluir que o “Pontes-Gramáticas da Criação" se traduziu num encontro realmente prolífico e auspicioso: entre ideias, filmes e canções, vozes e outros sons, publicações e poemas, ligaram-se cumplicidades, ergueram-se novas pontes. Sempre sob o signo de João da Ponte (que saudades!).
Retomemos agora, com delicadeza e toda a humildade do mundo, as agruras e as canseiras do quotidiano (ou lá o que é) pois a arte e a cultura apenas servem para dizer que estamos vivos e…atentos! Um bem haja à organização do “Pontes”!

Sala de Embarque: As quatro razões para partir

       
Fotografia de Carlos Olyveira

         Entre o partir e o ficar, fica a espera, a indecisão…
        Nunca ninguém parte completamente, porque partir nunca é, na verdade, ir sem deixar absolutamente nada para trás. As motivações para qualquer partida acontecem sempre tendo um ponto em comum: o da mudança. Acreditando-se poder chegar a um lugar melhor. Um sonho imaginado de um provável destino desconhecido. São quatro as razões para a partida de cada um dos personagens e que transformam esta Sala de Embarque numa sala de espera. A acção acontece à volta da vontade que cada um tem para mudar a sua vida e, embarcar no sonho impulsionado pelas motivações que o levou até ali. Há uma vontade de partir explícita nos diálogos que vão acontecendo, desvendando as estórias que existem em cada um dos quatro passageiros. Nestas conversas, vamos entendendo que todos querem partir numa espécie de fuga da sua própria vida, dos seus passados, dos pesadelos ou, apenas, fugir dos seus medos… Talvez até fugir de si próprios e encontrar o verdadeiro Eu numa viagem qualquer, nem que seja, tão só, na viagem da imaginação. Mas, o destino é sempre incerto, porque, incerto é o destino e o medo do incerto pode ainda ser maior que todos os medos já vividos. Neste encontro, há reencontros com um passado que se deseja apagar, de uma mudança que seja capaz de fazer desvanecer os fantasmas que teimam em estar presentes. Partir é procurar algures um destino que quebre memórias. Mas, será mesmo possível partir, esquecer ou atenuar a perseguição dessas sombras? A indecisão de viajar fica-se muitas vezes pelo sonho, porque o medo do incerto é aterrador!  Desiste-se ou adiam-se esperanças…Sala de Embarque poderá bem ser a “sala de espera” de qualquer um de nós, com as nossas indecisões, com os medos da mudança. Esperar é também esperança, a de se encontrar na sala de embarque uma porta de partida. Mais do que um local de espera, Sala de Embarque é um porto de abrigo onde são lançadas âncoras de fé.
        Fernando Nunes escreveu quatro histórias. Todas elas são diferentes  entrecruzam-se entre passado e futuro, em que cada um, pelas suas razões pessoais, deseja partir para embarcar na fuga de si mesmo, para um qualquer lugar imaginado e tido como “eventual” destino certo. Mas, entre o partir e o ficar, há a espera…a indecisão.
        Ao intenso trabalho, juntam-se os talentos de: Henrique Santos, João Malaquias, Margarida Benevides e Joana Marques que, com a sua criatividade, nos levam até à Sala de Embarque e nela fazer-nos esperar até que a viagem aconteça. À composição musical de João Luís Macedo vêm, também, juntar-se as cumplicidades de Lígia Soares, Ana Lúcia Figueiredo, André Almeida, Diogo Fonseca, Carlos Oliveira, Júlia Garcia e Miguel Caldas.
       Sala de Embarque é um esforço conjunto que muito merece o carinho de todos aqueles que procuram na arte e na cultura uma forma de aprendizagem complementar e não formal. Por esta razão, embarque e seja mais uma pessoa presente na Sala de Embarque.
José França