terça-feira, 31 de outubro de 2017

Outubro

“October/ And the trees are stripped bare/ Of all they wear/What do I care/ October/ And kingdoms rise/And kingdoms fall/ But you go on...and on...”
Paul Hewson, U2

Outubro despede-se e todos sabemos que qualquer adeus pode ser triste sobretudo quando uma das partes faz questão de lamentar a partida ainda que sem lamúria ou sinais de pranto. O décimo mês termina agora, comprovando-se que musicalmente ainda mexe. Sem ter sido convulso, tornou-se, à medida que o tempo meteorológico se foi deteriorando, algo vivo e secreto. Desse tempo fluido ocorre verificar este concertado de dias em que o sangue escorreu de forma perpétua e colorida, à semelhança do que diria Cézanne. Ouvir dizer no final de “Ilusão”, de Sofia Marques, o mestre das artes de palco, Luís Miguel Cintra, que a realizadora nada sabia de filmes nem de filmar quando começou e que agora realizou um documentário carregado de belos enquadramentos e planos reveladores e perfeitos. E ainda assistirmos ao partilhar desta insatisfação dum homem que viveu do palco, alimentou-se da vida dos textos e que tanto nos pode ainda ensinar. E dois dias depois, naquele mesmo palco, uma italiana, Giovanna Barbanti, a dialogar com os sons e o silêncio, naquele barroco dilacerante ou jogando com loops sincopados de temas contemporâneos, delicados, possuídos de exaltação e sentido. Fica aqui essa certeza mesmo quando a matemática dos tempos exige contenção. E logo de seguida a ousadia da Orquestra AngraJazz, com mais de vinte de músicos, homenagear Duke Ellington num registo inédito nos palcos nacionais. E como se não bastasse, a democracia das palavras em período crescente com a ilha literária a trazer dois novos livros – “Os Ossos Dentro da Cinza”, a poesia de Emanuel Jorge Botelho e “A Brecha”, um romance de João Pedro Porto. E Novembro que não tarda a entrar

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Do Tempo

“Apanha os botões de rosa enquanto podes
O Tempo voa.
E esta flor que hoje sorri
Amanhã estará moribunda.”

Walt Withman

domingo, 29 de outubro de 2017

Godot, em Balbucio, Antes de Entrar em Cena

para Antero de Quental
quando eu já cá não estiver
para gostar das coisas a que dei um nome
quem lhes dirá que o meu estava dentro delas
como uma folha de tília
desenhada no frio de uma ardósia?

que fique, pelo menos,
na badana de cada noite,
o lume de as ter comigo
e o risco, rubro,
de uma lágrima.

Emanuel Jorge Botelho, edições Averno, Outubro de 2017

Tascá em Modo Poético

Fotografia de Bruno Soares

O Outro Lado da Esperança

          "Posso viver sem o cinema, mas não posso viver sem árvores. Não consigo viver sem um beija-flor numa árvore. Enquanto houver um pássaro continua a haver esperança."
Aki Kaurismäki in Ìplson, Jornal Público, dia 27 de Outubro de 2017

sábado, 28 de outubro de 2017

Da Vida

“Fui para os bosques para viver deliberadamente,
Para sugar todo o tutano da vida.
Para aniquilar tudo o que não era vida,
E para quando morrer, não descobrir que não vivi.”

Thoreau

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Filme D´Outono: Match Point de Woody Allen

Chris: Acredito que em tudo na vida, é preciso sorte.
Chloe: Não acredito na sorte. Acredito no esforço e no trabalho.
Chris:  Oh, o esforço é necessário mas penso que as pessoas têm medo de reconhecer o quão importante é a sorte. Quero dizer, os cientistas dão cada vez mais crédito à ideia de que a nossa existência é produto do acaso. Nenhum propósito, nenhum desígnio.

Woody Allen in Match Point (Crime sem Castigo) Tradução: Luís Rodrigues

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Outubro no Cangalheiro sem antes uma Missiva de Janeiro...Alves!

Caro Doutor Mara,

          Estou ao corrente dos últimos acontecimentos insulares onde o meu caro amigo está sempre na première como protagonista de várias peças e peripécias, um fato asas de grilo que lhe assenta sem pregas nem vincos nessa sua morfologia burguesa, não fisionómica mas em aparência, dois conceitos que se assemelham, sendo porém quase antagónicos. Mas não observe nestas palavras qualquer toada crítica, ou ensejo satírico (muito menos deboche). Se o fizesse, estaria certamente a expor-me a idêntico trato, contrariedade a evitar devido a outras situações que tenho de resolver até ao natal. Ainda assim, e considerando até bela e instigante essa sua incursão pelo lado ilusoriamente iluminado da noite, espero que não ceda nas suas convicções, dada a exposição potencialmente infecciosa a fenómenos de populismo e inocuidade. Desejo manifestamente que o Doutor Mara se aguente firme, agarrando-se às pedras do cais para não ser levado pela onda.
            Por aqui, sou este espaço que ocupo. No sonho, um campo vasto com espécies exóticas e maciços montanhosos ao fundo. No corpo, apenas uma geografia confinada à velha secret ia ﷽﷽﷽﷽﷽﷽a secrethosos ao fundo. na secretde caminhos que nos conduzem ária deste covil. Os dias mal dormidos esvaem-se por entre os dedos que lutam escrevendo. Transformei-me num escaravelho metafórico de tamanho familiar, e quando penso movo as antenas. A cadeira já tem a forma do meu corpo. Nos meus extravagantes sapatos italianos crescem agora pequenas plantas artificiais, e já nem o ar que respiro se renova. A vida orgânica nesta sala adquiriu um estado geométrico, rígido. Apenas as antenas continuam a movimentar-se, e a mão a escrever. Compro tudo através do computador, que um escaravelho deste calibre não pode sair à rua! A ordem sai da minha cabeça, vai para o computador, passa para a internet, depois para a loja, o banco diz que sim, e já está. Depois é aguardar, enquanto puxo o lustro da minha carapaça castanha e abro mais uma garrafa de Macieira. Uma vida descansada e bem refastelada, dirá o Doutor Mara do alto dessa euforia insular… Mas olhe que não, Doutor… olhe que não. É certo que tenho a cabeça limpa e arrumada, com os assuntos devidamente catalogados, com índice remissivo e cronológico, arquivo morto, sala de estudo, e todo um departamento de novas ideias, onde actualmente se trabalham os conteúdos para as grandes “Conferências da Fajã”. Mas eu vivo dentro da minha cabeça, Doutor Mara, o que me causa bastante transtorno. Não imagina o transtorno que é esta ausência terrena.
            Mas enfim, perdoe-me este desabafo, pois nem sequer era a intenção desta carta. Escrevo-lhe para saber como está de finanças. Precisa de dinheiro emprestado? Sabe que pode sempre contar comigo, no que puder ajudar. Bom, provavelmente não precisará, pois sei que sustenta essa sua vida folgada com uma boa maquia que recebeu de herança familiar. Mas já que estamos a falar deste assunto, a mim até me dava jeito algum, sobretudo porque tenho a minha garrafeira praticamente extinta, o que constitui um cenário desolador. Por outro lado preciso de mandar arranjar o meu fato preto, pois tenho um tio quase a morrer. E se sobrar pilim, ainda queria comprar um ventilador de ideias em segunda mão. Poderá enviar o cheque por correio como de costume, ou se lhe der mais jeito, efectuar transferência bancária. Como forma de agradecimento prévio, seguiu já hoje por correio azul uma embalagem dos melhores filetes de peixe da capital. Para além da sua consistência admirável, poderá esgaravatar à vontade que não encontrará uma única espinha.
            Despeço-me por fim sem mais delongas, pois tenho de ir dar comida ao cágado. Deste seu velho amigo, também palhaço, desejos de enorme sucesso, e um abraço.

 Janeiro Alves 

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

"Ilusão" de Sofia Marques no Teatro Micaelense

Luís Miguel Cintra na Casa da Achada (Centro Mário Dionísio)


               Luís Miguel Cintra vai estar em Ponta Delgada amanhã, quarta-feira, pelas 21h30, e, um dia depois, quinta-feira, numa sessão destinada às escolas. Ele vem com Sofia Marques apresentar o filme “Ilusão”, no Teatro Micaelense, que estreou no Doclisboa’14, na secção Heart Beat, e venceu o Prémio do Público para a melhor longa-metragem. 
A realizadora assistiu e filmou a construção do espectáculo “Ilusão”, encenado por Luís Miguel Cintra, com a participação de 59 não actores, amadores e estudantes  teatro, a partir de textos de Federico Garcia Lorca. Uma adenda: Luís Miguel Cintra é um dos nomes grandes do teatro português e um dos melhores leitores de poesia portuguesa – quem já o ouviu recitar o poema “Muriel” de Ruy Belo? Actor e Encenador da recém-extinta Cornucópia (43 anos de companhia teatral, com 120 trabalhos e uma centena de autores) e dono de uma técnica vocal e talento interpretativo irrepreensíveis. Será um orgulho e admiração poder estar presente e saber  que ainda é possível vê-lo e escutá-lo nestas paragens!

domingo, 22 de outubro de 2017

Flanilha

Fotografia de Carlos Olyveira

"Moçambique", da Mala Voadora no Teatro Micaelense

         
         
          A peça deu início com todos os actores em palco e onde um deles começa logo por dizer que nasceu em Moçambique. Esse actor é Jorge Andrade, o autor e encenador. Este veio para Portugal com apenas 4 anos, regressando agora a Moçambique para construir uma autobiografia como se tivesse passado lá a maior parte do tempo da sua vida. Enquanto narra a sua história pessoal mistura elementos biográficos com factos da vida moçambicana, sempre com o intuito de tornar credível o enredo. No final daquelas duas dinâmicas horas, o espectador é surpreendido com um tipo de teatro próximo do documental, onde a ficção interferiu no rumo dos acontecimentos e daquilo que se pretendia contar. Será isto a obsessão por um final feliz? 
     Assistiu-se, assim, a um caleidoscópio “concentrado” de cores e gestos, intenso, com quadros bem ritmados, cenários e figurinos irrepreensíveis e que tocou, não só os que conheceram ou não, a História recente de um país chamado Moçambique.

sábado, 21 de outubro de 2017

Sobre o Arrendamento...

             
 Fotografia de Carlos Olyveira
       

               "Na questão de Lisboa e Porto este processo está muito mais visível. Em Ponta Delgada consideramos que o processo está numa fase muito inicial e a ideia de trazer cá a caravana passa, também, por aprendermos om a experiência de outros locais. Ainda assim, a percepção que temos é que em Ponta Delgada  também está a tornar-se cada vez mais difícil arranjar casa para arrendar, porque a maior parte das casas que estão disponíveis são para alojamento loval, para turismo de muito curto prazo, ou mesmo para comprar, porque houve uma escalada dos preços das casas. Há vários factores que contribuem para isso: é o turismo, é a mudança da lei de arrendamento em 2012, que facultou os despejos e que contribuiu para uma liberalização do mercado e há a ideia que o uso das casas para aluguer de turistas é muito mais rentável do que para a residência ou para a fixação das populações locais."

Lídia Fernandes, da Caravana para o Direito à Habitação, 16 de Outubro in "Atlântico Expresso".

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Do Cinema

Desenho de Liv Ullmann
(Daniel Seabra Lopes)
          
            "Os filmes, a fuga da realidade, o mundo dos sonhos; experiência e pessoas que, segundo eu acreditava, iriam tornar-se parte do meu quotidiano, no futuro. Tragédias tão grandes que o nó continuava na garganta, muitas horas depois. Maravilhas imensas a ponto de meus pés tocarem o solo, quando eu voltava para casa.
        Milagre em  Milão, Luzes da Ribalta. Vi esses filmes dez ou vinte vezes, com o mesmo encantamento. Heróis e Heroínas. Criaturas que representavam o Bem ou o Mal. Quase nunca comuns e tediosas, como as pessoas que eu conhecia em Trondheim.
         E o amor.
     Ansiava por experimentá-lo, tal como o via na tela: abraçar um homem com camisa branca e um alvo sorriso, que me olhasse de cima, ternamente, e sussurrasse palavras sussurradas pelo Herói à Heroína.
       Escutar violinos, quando ele me beijasse.
     Ah, se eu pudesse crescer um pouco mais depressa. Eu lançava um olhar ansioso para os meus seios inexistentes." 

in Mutações, Liv Ullmann, edições Nova Nórdica, 1984.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

"Correspondência" de Paula Sousa Lima e Leonardo

A capa do livro (Fotografia de Carlos Olyveira)

"A Sonata de Outono" de Ingmar Bergman



        Bergman quis abordar a relação parental em “Sonata de Outono”, para isso juntou na tela duas das suas actrizes predilectas: Ingrid Bergman e Liv Ullmann. O filme mostra uma mãe, pianista de profissão com uma carreira ascendente, e uma filha à beira do precipício emocional. Quando se fecham os nossos próprios olhos e apenas se ouvem estes diálogos, esse sussurrar entre mãe e filha é audível o transtorno, sendo que é como se estivéssemos perante um ajuste de contas na idade adulta. Incomodados, pois, sentimo-nos ao observar esta arena familiar e que, à medida que o filme avança, vamos também percebendo que esta espiral é tal e qual o debulhar duma cebola, já que presenciamos várias camadas, isto é, o alumiar duma relação agitada marcada essencialmente pela ausência e por tudo aquilo que nos vai escapando em função de outras ambições menos terrenas, imersos que estamos na voragem invisível da passagem dos dias e das estações.
         Este filme convocou também e, pela primeiríssima vez, o encontro entre um realizador e a actriz conhecidos além fronteiras europeias, ambos oriundos de Estocolmo, mas com percursos e posições estéticas diferentes. Conta-se que o reencontro e as filmagens terão sido turbulentas e com direito a várias peripécias, narradas ainda hoje pela actriz norueguesa, Liv Ullmann. É certo que as salas de cinema já não comportam estas intimidades e espessura cinematográfica mas valeria bem a pena tentar. 

domingo, 15 de outubro de 2017

A Ophelia, os Lumière e Correspondência

Fotografia de Carlos Olyveira 
 Fernando Pessoa escreveu cartas apaixonadas para o seu amor Ophelia (ao todo julga-se que terão sido 48 cartas e que só seriam publicadas em 1978) e onde principiava sempre com “Meu querido amorzinho” ou  "Meu Bébézinho". Hoje também podíamos ter escrito a Ophelia, sobretudo a esta que por aqui se atravessou em forma de furacão. Escrever também de forma superlativa, essencialmente, para agradecer mais este dia de sol, esta lazeira canicular em que se tornou Outubro e que prolonga a dita estação estival para calendas insuspeitáveis. O Verão vai, por isso, dilatando já que o calor ainda  não declinou. Ontem, no Teatro Micaelense, Stanley Kubrick envolveu e revolveu as consciências (e de que maneira!) com o seu filme do início da década de 70: “Laranja Mecânica”. Tantos anos depois ainda se retiram lições para compreender o ciclo vicioso da violência e as estratégias da sua dissolução e promoção por parte das estruturas do poder. O suplemento Ípsilon, do Jornal Público, fala também dos homens que inventaram o cinema com o filme “La Sortie de l´Usine Lumière à Lyon”. Dez páginas para evocar o nascimento da sétima arte que, segundo Thierry Frémaux, estes inventaram  três vezes: “a técnica, a arte e a sala.” Saúde-se, por último, também o regresso do poeta micaelense Leonardo à edição de poesia, desta feita acompanhado por Paula Sousa Lima, num título epistolar denominado de “Correspondência”. A edição é das Letras Lavadas. 

sábado, 14 de outubro de 2017

"Prece Geral" de Daniel Blaufucks no Museu de Arte Sacra em PDL

A Exposição está patente até ao 31 de Janeiro de 2018

      Aprendi a ver as suas fotografias em silêncio, circunspecto, na altura junto dum café desmedido com umas janelas em que se avistava o azul atlântico daquele mar. Sozinho, ainda muito jovem, fixava o seu apelido algo alienígena e apreciava o que de melhor podia conter a palavra respeito perante tamanhas imagens enigmáticas. Isso e também beleza. Recordo, por isso, as páginas dos Cadernos e suplementos do jornal “O Independente” em que este chegou a colaborar com regularidade. Alguns dos seus trabalhos, de tão sombrios e austeros, perturbavam e interrogavam, à altura, os dias de euforia pós entrada na união europeia. Tantos anos depois, regresso novamente às suas fotografias para agradecer-lhe o gesto, louvar este seu mergulho no mistério e na oração. Estas chapas são sobre o Mosteiro de Santa Maria Scala Coeli, a ‘Cartuxa de Évora', e revelam-nos o interior da fé e da dedicação bem como o que resta desse altar de prece e de reflexão. 

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Uma Noite de Poesia na Tascá

      Talvez em Copenhaga ou em Aarhus isto também fosse possível, não se sabe. O casal de dinamarqueses pensa na eventualidade e no interesse pelas palavras, das rimas e dos versos nos tempos que correm. E riem-se com o nome Bodega, nomenclatura usada no país deles para descrever espaços como este. E quem sabe, ou talvez seja mesmo impossível, apelidá-lo com esse título neste nosso país do sul. A conversa gira, portanto, à volta do interesse dos nossos contemporâneos pelos versos, metáforas, alegorias, repetições e, talvez por isso, termine pousada sobre a oferta cultural nas grandes cidades e na periferia. No entanto, por aqui vai-se afiançando que não, há quem diga mesmo que a poesia anda à solta pelos territórios mais improváveis da  ilha, comentam que é partilhada por instantes nos quartos, nos cafés e nas ruas, dita por cabeças mais ou menos pensantes, algumas bastante tensas, outras esclarecidas e até mesmo emotivas. Há mesmo um Encontro Internacional de Poesia a decorrer esta semana. Desta feita, nesta noite de Outubro, a poesia concentra-se sobre as mesas de madeira deste pequeno estabelecimento denominado de Tascá, contida no interior dos livros espalhados ou amontoados, sendo dita e redita enquanto se bebem copos de vinho tinto ou cerveja, por vezes em bancos corridos  ou com os corpos encostados às portas abertas, porventura, para soltar o ar do tempo. Há também pausas para saber da vida, saborear as estrelas cadentes e o luar, espreitar o movimento dos carros e cantar loas às madrugadas vividas em território ilhéu. Tudo isto se passa numa rua com nome de antiga capital do reino, entretanto agora democracia. Uma coisa é certa: precisamos de poesia como pão para boca e por isso nem sempre à noite todos os gatos são pardos.

Nota: o registo fotográfico pertence ao Luís Andrade. 

Aranhas e Visigodos


Josué: Papá, por que é que os cães e judeus não podem entrar naquela loja?
Guido: Porque os judeus e os cães não querem. Todos devem poder fazer aquilo que lhes parece melhor, não te parece? Ali à frente há uma loja, não há? Ali, por exemplo, não é permitida a entrada a espanhóis e cavalos e... mais à frente, há também um farmacêutico, não há? Ontem, estava eu com um amigo meu, um chinês, que por acaso tem um canguru e eu perguntei: "Podemos entrar?", e alguém lá de dentro respondeu: "Não, aqui chineses e cangurus não entram". Sabes, fiquei bastante desagradado com toda aquela situação. O que é que eu posso fazer?
Josué: Mas na nossa livraria toda a gente pode entrar...
Guido: Não, a partir de amanhã também nós iremos escrever um letreiro para colocar na porta. Quem é que tu consideras enfadonho?
Josué: As aranhas. E para o papá?
Guido: Para mim...os visigodos! Então amanhã iremos escrever um letreiro com o seguinte: "Proibida a entrada a aranhas e visigodos!". É quase certo  que o visigodos irão quebrar esse letreiro. Por isso, chega!

 in “A Vida é Bela”, filme de Roberto Begnini, 1998 (Tradução Livre)

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Uma Outonal Missiva de Janeiro Alves

Meu caro amigo,

Gostaria de prefaciar esta carta com o sincero desejo de a mesma o encontrar de rígida saúde e dotado do poder criativo e construtivo que lhe permita desenvolver ideias com a novidade da folhagem fresca coberta de orvalho matinal a agitar-se para fazer notar o seu vigor num cenário de naturezas mortas.
Não deixa de ser curioso esse conjunto de avistamentos da minha pessoa por locais diversificados e sem aparente ligação, pois ainda aqui há uns dias um indivíduo que transporta alguma reputação no circuito literário de Lisboa jurou a pés juntos que me tinha visto a passear na Calle de la Noria, em Santa Cruz de Tenerife, estando eu encerrado na minha vivenda a trabalhar desde o início do verão. Duvido até que ele lá tenha estado, dada a situação calamitosa das suas finanças depois de mais uma obra renunciada pela sua editora. De si eu não duvido pois essa é a sua morada permanente, mas trata-se efectivamente de um equívoco, alguém que se anda a fazer passar por mim de forma a tirar dividendos pessoais ou simplesmente instalar a confusão. Peço-lhe que da próxima vez que me vir, chame a polícia de forma a acabar de vez com esta brincadeira de mau gosto.
Passando a página, manifesto-lhe a minha mais exaltada e até descontrolada euforia com a aproximação das Conferências da Fajã, o supra-sumo dos eventos, a canela por cima do grande pastel de nata que é este mundo moderno. Sei que devido à nossa longínqua amizade, e na qualidade de organizador principal, o Doutor Mara não se esquecerá de me providenciar o habitual lugar de destaque no programa do evento, assim como me enviar as passagens de ida e volta em primeira, e a reserva no hotel do costume com pensão completa. Para esta próxima edição tenho preparada uma matéria que vai finalmente lançar os alicerces do “edifício” pós-moderno, unindo todas as reflexões casuísticas numa única direcção que nos guiará a uma espécie de Nirvana. Tudo isto, imagine, sem o uso de quaisquer psicotrópicos ou desinibidores de consciência, pelo que poderemos prescindir do dealer da última edição.  
Acabo esta modesta carta com um ar abatido, cansado e sôfrego, devido ao calor que se faz sentir em Outubro na capital do império Portuguêz, perfeitamente anormal para a época, adiando inapelavelmente a minha investida ao guarda fato outonal, onde os meus sapatos italianos de cetim afivelados se encontram acorrentados à espera de fazer crepitar folhas caducas como estalidos de sal atirado ao fogo que arde sem se ver, ser ou não ser, eis a questão, e à parte disso, desejo-lhe um agradável serão.
Do seu humilde servo,
Janeiro Alves

domingo, 8 de outubro de 2017

Um Postal Outonal para Janeiro Alves

Caro Janeiro Alves,

Decidi redigir-lhe este postal pois ainda não estou em mim. O meu amigo pode não admitir mas penso ter estado consigo, no dia de ontem, pelo menos três vezes em diversos rincões deste território ilhéu. Curiosamente, julgo ter estado consigo numa caldeira, numa piscina de águas termais e, por último, numa taberna popular a comer uma bifaninha de atum e a desembaular uma garrafa de vinho tinto da Estremadura (e não é que também têm boas pingas?). Acordei, entretanto, com este sentimento de que tudo isto não passou de um sonho e ainda com a sensação que o universo se encontra em expansão. O amigo Janeiro não vai acreditar mas desconfio cada vez mais da realidade e de todos os acontecimentos que estão a suceder em catadupa.Será isto a pós-verdade? Estou cada vez mais senil e demente, essa é que é a realidade.
Comunico-lhe também para anunciar que estou a preparar as mais que aguardadas Conferências da Fajã. Este ano teremos ilustres convidados oriundos de países distantes e outras personalidades de alto gabarito, destacadas e reconhecidas nas suas mais diferentes áreas e que vão desde a Filosofia Marinha ao Empalhamento de Aves Raras. Com a promessa de estar para breve o envio do convite e do programa, alegremente me despeço. 
Com elevada estima e consideração,
Doutor Mara

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Os Cem Anos de Violeta Parra

Cartaz de Rodofo Chofre Saavedra

Volver a los diecisiete       
Después de vivir un siglo
Es como descifrar signos
Sin ser sabio competente
Volver a ser de repente
Tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo
Como un niño frente a Dios
Eso es lo que siento yo
En este instante fecundo
Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Ay sí sí sí
Mi paso retrocedido
Cuando el de ustedes avanza
El arco de las alianzas
Ha penetrado en mi nido
                                               Con todo su colorido
                                       Se ha paseado por mis venas

                                                                Y hasta las duras cadenas
                                                                  Con que nos ata el destino
                                                                        Es como un diamante fino
                                                                Que alumbra mi alma serena 
                                                                        Lo que puede el sentimiento
                                                                    No lo ha podido el saber
                                                           Ni el más claro proceder
                                                                    Ni el más ancho pensamiento
                                                                         Todo lo cambia el momento
                                                           Cual mago…

in"Volver a los Diecisiete" de Violeta Parra 

Mar

Se  eu pudesse esquartejava-te 
e com os braços levava-te comigo
sem criar ondas
para o interior de minha casa. 

Féodor Marenko

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Miguel Gonçalves Mendes: Cinema Instigação!


         Organizado pela Galeria Arco 8, terminou na última quinta-feira um ciclo de cinema dedicado a Miguel Gonçalves Mendes. Os seus documentários foram sendo exibidos ao longo de três semanas deste recente mês de Setembro e sempre com entrada gratuita. O ciclo começou com “Nada Tenho de Meu”, seguindo-se “Cruzeiro Seixas: Cartas do Rei Artur” (aqui enquanto produtor), depois “Autografia” e, por fim, “José e Pilar”. Estes dois últimos filmes apresentados e, que tiveram lugar na passada quarta e quinta-feira, contaram com a presença do realizador que acedeu conversar e acolher perguntas duma vasta e interessada audiência que aproveitou a presença deste em território insular. Sendo assim, uma palavra de apreço e gratidão para o Pedro Bento, sempre ele, a pontuar a chamada “actividade cultural alternativa do Outono”, marcando assim a rentrée da ilha e anunciando a partida do estio de calendário, ainda que este tarde em arrefecer. Graças a ele, e à sua persistência, foi mais uma vez possível ver cinema de cariz documental e, essencialmente, instigante!
Registe-se, assim, que todo o trabalho documental visa dar conta do objecto em questão e aproximar esse mesmo objecto do público espectador. Estes filmes não só aproximaram como também promoveram o pensamento sobre aquilo que somos e andamos à procura. Comece-se pelo inquietante “Nada Tenho de Meu”, que nos pareceu ser o trabalho mais complexo dado tratar-se de uma procura da identidade individual e do real, sabendo de antemão que grande parte do que contamos sobre nós próprios há muito de inventado, ficcionado. Seguiu-se “Cruzeiro Seixas: Cartas do Rei Artur”, documentário revelador de uma paixão entre essas duas figuras maiores do surrealismo, amantes  das pintura e das letras, aqui revelado em registo epistolar e intimista. Nada que já não tivéssemos sondando no visionamento de “Autografia”, apresentado algum tempo antes e ao que se sabe um retrato livre e despojado da vida dum poeta maior da língua portuguesa, infelizmente já desaparecido: Mário Cesariny. Neste documentário vemos a importância da confiança e da liberdade discursiva criada entre quem filma e se deixa filmar. Por último, o visionamento de “José e Pilar” que são três actos de amor em conjunto, um olhar errante e exaustivo sobre uma relação a dois, o poder e a força impressa no outro por quem sabe que só o amor nos leva pela estrada mais directa ao coração. Sim, é verdade, aqui vemos um homem que escreve novelas e uma mulher que se dedica a tomar conta da vida deles os dois. Uma experiência intensa, de tão rica como imaginada, ao intuir o movimento realizado inicialmente até o sabermos, por fim, concluído.
No final de todas as sessões, ficámos a saber que Miguel Gonçalves Mendes já encerrou as filmagens do seu documentário, “O Sentido da Vida”, produzido por Fernando Meirelles, encontrando-se agora em fase de montagem. As filmagens duraram quatro anos e o filme foi rodado na Islândia, Brasil, Macau, tendo começado em Vila do Conde. Assim o possamos rapidamente ver tal qual esperemos que seja mais uma razão para que, à semelhança dos sete ilustres convidados presentes na narrativa, o realizador possa continuar a dar a conhecer o seu trabalho e, assim, regressar ao arquipélago açoriano.

domingo, 1 de outubro de 2017

A Meu Favor de Alexandre O´Neill

Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.