sábado, 29 de novembro de 2025

O Corpo Ardeu

Atirámos um homem do penhasco abaixo,
Toda a aldeia reunida  no adro;
corremos sobre ele aos gritos 
fizemo-lo cair de grande altura.

O padre disse que agora, sim, é
que começa a verdadeira vida 
e eu pensei com muita força e muita fé:
mete a verdadeira vida no cu.

Acordo a meio da noite com uivos das pessoas sãs.
Prendem um homem no manicómio
atam-no à cama, enfiam-lhe comida
pela goela abaixo, engordam-lhe o fígado.

Ele tinha um anjo dentro da cabeça 
sempre a lavá-lo, a voá-lo muito 
para lá das nuvens, repuxava-lhe os fios
forçava-os a uns esgares, uns dizeres obscenos.

Quando o deixava a planar a meia altura
a uns quinhentos metros, digamos, uma
corrente inesgotável de lenços coloridos
saia-lhe da cartola, com as músicas mais belas 

Tanto medo da loucura,
tantas verdades incómodas ali à mostra,
tantos segredos insuportáveis.
Vamos estabilizá-lo, disseram.

Quero escapar, morrer,
arder-vos por entre os dedos
ó boas pessoas, ó sãos de espírito,
ó assassinos, adeus.

João Paulo Esteves da Silva, in Doutor Tristeza, Mia Soave, 2015.

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