quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Os Mundos na Biblioteca

A Biblioteca de Viera da Silva (1949)
imagem do Blog "O Bibliotecário de Babel"
      
As bibliotecas foram sempre depósitos de livros, leituras, de pesquisa e de silêncio. Às vezes são demasiado solenes e, porventura, ainda bem. Uma biblioteca pode, portanto, ser um ponto de descoberta de mundos novos, de vários encontros entre quem lê e quem escreve, impulsionador da troca de saberes e de experiências e, quem sabe, um lugar propício ao aparecimento de novas vozes que poderão ir de encontro ao que sentimos e queremos deste mundo em que vivemos. Numa biblioteca concentram-se mais mundos que o próprio mundo.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Quatro Paredes e o Mundo de Marc Weymuller

“Naquele ano, voltei à Ilha do Pico, nos Açores. Queria encontrar o escritor, poeta e baleeiro, José Dias de Melo, na sua aldeia natal, Calheta de Nesquim. Queria passar alguns dias ao seu lado, ver como vivia. Queria ouvi-lo falar, ouvi-lo contar as suas histórias que marcaram a vida dele. Queria filmar a sua aldeia, a sua casa, as suas idas e vindas, acompanhá-lo, nos seus passeios e descobrir paisagens que descreve nos seus livros. Mas quando cheguei à Calheta de Nesquim soube que ele tinha caído doente e que tinha sido hospitalizado em São Miguel, uma outra ilha do arquipélago. Ninguém me soube dizer quando retornaria. Então, decidi esperá-lo. Levei comigo um dos seus últimos livros “Poeira do Caminho”. Folhei-o para passar o tempo. E se escuto, entendo a voz dele..."
Marc Weymuller


       Marc Weymuller trabalhou para o som de “As Ilhas Desconhecidas” (2009), de Vicente Jorge Silva(https:https://issuu.com/fazendofazendo/docs/fazendo_38_online e foi por essa altura que travou o ensejo de querer conhecer Dias de Melo. Este seu trabalho documental tem a particularidade de mostrar a passagem do tempo num lugar carregado de memórias e de histórias de baleeiros elencados ao longo do tempo por este antigo professor e depois escritor, focalizando-se essencialmente nesta fase final da sua vida, marcado pelas contingências do momento na vida deste homem de palavras. Estes cinquenta e três minutos de memória viva de um homem que escreve a partir da sua janela  devolve-nos aquilo que é mais pungente e telúrico num homem que gostava de sentir-se mais um entre iguais, podendo nós agora imaginar o escritor com o seu cachimbo na sua Calheta de Nesquim olhando o mar com os seus conterrâneos e antigos baleeiros. O filme é narrado em francês pela voz de Marc Weymuller, que alterna em português com Michel Costa que vai lendo excertos de “A Poeira do Caminho”, acentuando a cadência do texto num registo de vozes lentas sobre as imagens do “habitat do escritor” – trabalho aprimorado de Xavier Arpino –  reforçando a solidão e a melancolia ali presentes, ampliando à literatura a vastidão da paisagem que se avista da janela da casa de Dias de Melo. No final da sessão do cineclube de Ponta Delgada foram lidos testemunhos de familiares e amigos, destacando-se o tributo de Bruno da Ponte, editor de vinte uma obras do autor picaroto.  

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Ainda nada?

 
 
“Porque as sementes gostam de sentir que alguém as quer e aguarda.”
 
Christian Voltz
 

domingo, 15 de dezembro de 2013

Três Poemas de Fernando Machado Silva

O amor não tem tempo para a traição


Diz tens a palavra não tenhas
medo deste pequeno monstro
teu par. O que para ele foi feito
Há muito acabou a esperança
está na ponta do cigarro que se esfuma
diz vem cá a tua mão cabe
na sua ela sabe adaptar-se
e pode guardar até ao dia
que a largares o que quiseres
diz chora ao leito todo o seu corpo
A tristeza a vergonha da morte.
Ele vai estar só aí só à quarta parte
e de novo volta. Sempre.
Mas diz que do silêncio
dele e dos outros
já está cansado.

A Infância que não foi tua
Mundo de aventuras
de leituras desenfreadas
em luta contra o tédio
das doenças de cama
na segunda infância
essa em que a imaginação
se torna o vulcão de toda a solidão
não foram amigos teus os cavaleiros
da távola da triste figura (catorze anos
separam a mudança das feições como hoje
tantas vezes a boca da gôndola
se arqueia no teu rosto de lua cheia).
Nada disso foi teu:
tiro aos pássaros
saqueamentos a árvores de fruto
mergulhos suicidas de rochas
ou de chaminés de barcos
destroçados. o medo e o amor
sempre te impediram os altos voos
de Ícaro. não és melhor
nem pior pessoa por falta
dessas memórias e não choras
pela infância que não foi tua



uma história saturada de mortos

eu agora trinta anos fumo bebo
rodeado de toda a tecnologia do homem
assusto-me com um grito de uma perdiz
ali fora na seara alentejana. Insones
os pássaros cantam pelas noites e dias
e choro
neste verso avesso por um verso
um filho qualquer que seja o seu sexo
mas não aqui connosco nós
não temos senão a morte
ao deitar

Fernando Machado Silva, in “Passageiros Clandestinos”, Companhia das Ilhas (2012)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Na Travessa com Artistas

       O nome deste novo espaço é um jogo à volta do lugar citadino onde está situado e foi criado com a intenção de agregar pessoas à volta de mesas e de copos, deferir uma biqueirada na crise e permitir que pessoas que façam ou gostem muito das artes e da criação tenham aqui um porto de abrigo e de expressão, ao mesmo tempo que possam divulgar a sua actividade e descubram outros companheiros de viagem. É verdade que nem todos somos artistas, nem tenhamos tão pouco pretensões a sê-lo ou que somente queiramos estar e falar do que nos apetece sem pejo nem ameias. A Travessa dos Artistas abriu há muito pouco tempo e serve exactamente para isso. É vero que os tempos de eficácia e produtividade a todo o custo não estão para grandes ociosidades, festas e lirismos, é isso que vamos ouvindo diariamente e, talvez por isso, já tivéssemos interiorizado a ideia de que as artes e a cultura são algo secundário, inútil e algo afastada da economia e da alta finança mundial. A Travessa dos Artistas está cá para contrariar essa ideia e por isso está aberta essencialmente à noite, ainda que esteja por provar por métodos quantitativos e psicométicos que seja nesta parte do dia que irrompam e nasçam as mais variadas obras de arte. Certo é que vamos ter que esperar evidentemente por um “criativómetro nocturno”, ainda que não deixe de ser consensual que foi e é à noite, essa parte do dia com a luz ténue e quase extinta, que se dão a maioria dos encontros e que por isso se tornam propícios os espectáculos, os concertos, as músicas, a poesia, as conversas e diálogos acesos - inclusive as fúrias entre grupos e e cliks artísticas mais as suas desavenças - por vezes com direito à ingestão de muitos líquidos ou o direito seguro à escuta de personalidades que são e foram debitadores de palavras e histórias.

 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

"Meu Pescador, Meu Velho" de Amaya Sumpsi


        Amaya Sumpsi é uma madrilena que o acaso atirou para os Açores e mais concretamente para ilha de São Miguel. Licenciada em Realização de Cinema e Televisão pela Escuela Superior de Artes y Espectáculos vem viver para Ponta Delgada em 2002 enquanto membro das Criações Periféricas, responsável pelo laboratório de fotografia e na organização de eventos. Este documentário “Meu Pescador, Meu Velho” é, sem qualquer dúvida, um olhar afortunado e deslumbrado pelos pescadores de Porto Formoso, uma visão de alguém que gostou de aqui chegar e descobrir-se nessa aproximação que agora pode ser vista por quem quiser. À semelhança do escritor Raul Brandão, que há noventa anos se deixou apaixonar pela paisagem açoriana, Amaya Sumpsi enamorou-se pela baía e, sobretudo, pelas gentes de Porto Formoso. A história do filme - com uma fotografia cuidada e uma música atinente - abre com o início do projecto e em que, após uma noite de Carnaval de 2005, uma enorme onda desfez os “boca aberta” do mestre Eiró e do mestre Américo. Estranhamente, com ajudas institucionais gera-se a construção de novas embarcações e maiores, no entanto o porto de areia é residual e impróprio para varar os barcos. Os pescadores passaram assim a reivindicar uma doca em cimento para que a sua chegada fosse possível nas melhores condições, gerando alguma contestação entre os moradores que acreditam que a beleza natural do porto e as ruínas do castelo que ali se encontram são o verdadeiro foco de beleza e atracção turística do lugar. A realização do documentário apanha as várias fases da construção do porto e capta assim a passagem do tempo e o que se foi alterando com os diferentes intervenientes no processo.
         “Meu Pescador, Meu Velho” é um belíssimo fresco para compreender o sentido álgico das gentes do mar de Porto Formoso da Ilha de São Miguel e uma pertinente lição de como se consegue, pode e se deve filmar rente às pessoas que não conhecemos e que nos podem dizer e contar tanto sobre a vida e sobre a realidade social em que vivemos. Inesperado é aquele o diálogo entre o velho e o jovem pescador que daria uma importante tese de mestrado sobre o património material da humanidade e a sua relação com a vida das comunidades. Amaya sentiu aqui o apelo de deixar a conversar correr, fluir, pois ao constatar que é afinal o jovem que está do lado do património (as ruínas, neste caso) ganha em perspectiva e agiganta este seu empenho, esforço e dedicação aos seus sete anos de existência confinados à feitura deste documentário. Felizmente, o Teatro Micaelense encontrava-se preenchido para assistir à apresentação deste riquíssimo e valioso trabalho documental que teve o mais que devido  reconhecimento e  as devidas loas e agradecimentos.

Três poemas de Rui Duarte Rodrigues

Teresa nome triste

Há silvas e amoras
no teu olhar

pelos teus lábios passou já uma vindima
E há uma tristeza grande
abatida sobre o teu rosto

falas de coisas cansadas em voz baixa
como se o inverno não acabasse
e a miséria não tivesse fim

fico ao lado de ti sem saber
remando com cuidado por entre estrelas
para não dissipar a noite
e o mais breve sinal de alegria


Coração Menino

Tenho
Um coração menino, um coração
pra chorar sozinho

Gastei o coração nestas pedras húmidas
e os olhos deixaram de ver o mar,
fecharam-se numa casa pra morrer

 Preciso um mergulho profundo
e prolongado, um lugar de ternura mãe
dentro da manhã

Um fio,
um cabelo
contra
o medo e a loucura

 Mui açoriana manhã

Ah esta mui açoriana manhã
De prata embaciada, à espera de chuva
Pequeno véu de azul no horizonte
               vela fugitiva

Respiro fundo
Que rumo dar às coisas desse dia
Que apenas promete agastamento? Os olhos
querem fechar-se à luz diluída
              e prematura
a vontade é dispensar o calendário

Ah esta mui açoriana manhã
Serra mecânica, operária
cortando o  ar, fanfarra militar (que dia
                     é este
           que contém alguma celebridade?)
ruídos todos embrulhados nesta película
deslavada, pastel sem brilho
à espera de chuva

Rui Duarte Rodrigues, in “Com Segredos e Silêncios”, Colecção Ínsula, 1994

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Uma Missiva para os Alpes


Estimado Janeiro Alves,
Escrevo para lhe contar que tenho vivido dias intensos e felizes no Solar dos Manaias muito embora não deixe de pensar que a sua carta é reveladora de tempos sombrios e tenebrosos deste presente que nos encontramos a viver. A seu tempo tenciono contar ao mundo os planos de Vivaldo Manaia – tremo só de pensar nas revelações - e gostaria muito que Janeiro Alves se deslocasse até este pequeno paraíso e desfrutasse connosco das muitas maravilhas a que a vida nos tem vindo a presentear e surpreender. Começo por falar-lhe desta ilha que, para lá da descoberta diária de tantos recantos naturais que me levam do fascínio ao arrepio, quase sobrenatural, deixo-me encantar por estas ruas do seu centro histórico, ainda que muito pouco habitado com casas degradadas. Por vezes e, ainda resquícios da minha boémia estudantil, desapareço durante alguns dias e nem a a minha mais recente amiga sabe do meu paradeiro. Aproveito, no entanto, para referir que tenho usufruído e fruído com alegria estes dias com a mais intelectual e filósofa dos Manaias: a Miriam. Para minha surpresa, esta encontra-se a escrever um ensaio filosófico intitulado “Prolegómenos de Querença e da Pertença Tardia” ao mesmo tempo que se deixa acompanhar por um caderno de apontamentos onde esboça o seu próximo romance, que conta para já com o título provisório: “Areópagos de Bruma”. São também muito invulgares os serões  literários que esta organiza em torno de um livro, de um poeta,  de um filósofo,  ou até mesmo de um dramaturgo. A casa e a mesa da sala de jantar enche-se de amigos e literatos para conversar sobre as obras em questão e degustar as delícias gastronómicas e etílicas que cada conviva transporta para o serão. Na última sessão, acabei por ler um poema de Óscar Manaia, o mais desbragado, hábil e viril dos Manos Manaia,  pressentindo na minha anfitriã uma luminosidade e súbita humidade nos seus olhos de cor de amêndoa. O poema tinha somente estes versos: “Agora que já não te visito nem te avisto/ Tão pouco te enfrento ou te afago/ Fico longas horas assustado/ Ao teu convite destemido/ Respondo de modo desgostoso e cansado.” De qualquer modo, estou deveras impressionado pela cultura e classe de Miriam Manaia, fascinado sobretudo pela sua pulsão epistemofílica, o que me obriga por vezes a dar o meu melhor. Neste último sábado, a Miriam e eu, saímos bem cedo pela manhã para assistir ao nascer do dia assim que caía uma chuva medieval com nuvens negras que carregavam água sobre nós e eis que, subitamente, ficamos os dois especados no centro da rua do Colégio a absorver aquele instante, num misto de céu azul a despontar à espera que as nuvens negras passassem. Miriam tem no entanto consciência que quando eu me afastar do solar ela irá sentir saudades das noites e dos serões passados em conjunto. Por isso, decidi prolongar a minha estadia junto desta. Infelizmente, Miriam não partilha do meu mirífico entusiasmo à volta da rua do Colégio, desconfiando inclusive da sua genuinidade. Afirma mesmo que exagero e que aquilo que digo é digno de um jovem poeta, excêntrico e com poucos livros publicados.
O amigo Janeiro Alves que me perdoe estas confidências mas como deve compreender estava a precisar de desabafar  com alguém para lá do clã Manaia, por outro lado entrei numa fase da minha vida em que já não tenho nada a esconder ou mesmo a perder.
Com a minha profunda amizade,
Mara, Doutor.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Uma Missiva no Dealbar de Dezembro

Alpes, 4 de Dezembro de 2013
Caro Doutor Mara,
         
 
         Ultrapassados os incidentes descritos na carta antecedente, encontro-me agora em convalescença num casebre isolado nas montanhas, que julgo não ser tão tenebroso como o imagino. E porque quando estamos descontentes com o mundo, estamo-lo sobretudo com nós próprios, forcei-me a um miserável isolamento para reflectir sobre acontecimentos. Encontrei porém nos últimos tempos uma escapatória através dos filmes. O cinema é um terraço com vista para o mundo, dá-nos instrumentos para manusearmos o lado fantasioso que nos habita, adormecido pelos atropelos da vida real. O problema é quando o cinema é real, como perceberá mais à frente.
O dia ontem foi de tempestade com neve, frio, relâmpagos, trovões e o mundo a desabar à minha volta. Perante esta espécie de holocausto, acendi a lareira, meti a tocar um disco de Vítor Espadinha, servi-me de Macieira, e pus-me a ver material de família. Comecei por um conjunto de fotografias antigas. Raramente as vejo e mostrá-las nem pensar, pois como sabe tenho uma família de trogloditas, todos eles com caras assustadoras. As minhas irmãs são horrendas e cadavéricas, por isso nunca casaram, e já nem recebem visitas em casa. Quando eu era pequeno, no quarto dos meus pais ouviam-se sempre gritos de manhã, quando acordavam e olhavam um para o outro, e eu quando nasci e olhei para eles, chorei durante um mês sem parar. Os meus tios eram todos iguais ao corcunda de Notre-Dame depois de um banho em ácido sulfúrico. Os meus primos são uma abstracção da natureza. Têm a cara cheia de borbulhas, os dentes encavalitados e saídos ao nível do nariz, reles bigodes de meios pelos, caras ovais e disformes pelas quais escorrem fios de azeite virgem, e os que ainda têm cabelo apresentam um tufo de pelos ríspido como um esfregão de palha de aço em forma de ninho. São assim os meus primos. As minhas primas são iguais, mas com patilhas, e uma delas tem mamas. Enfim meu caro Mara, não me querendo estender, um autêntico freak show. Felizmente eu sou o desvio à norma.
Mas voltando ao dia de ontem e a minha alusão inicial ao cinema: A minha família, como sabe, sempre teve dificuldades em se relacionar socialmente com outras famílias, pelo sentimento de repulsa que causavam. Por esta razão sempre se dedicaram a actividades caseiras, em clã. Era uma família unida pela feiura. Na década de 60, uma das actividades do meu pai e dos seus irmãos, então conhecidos como os “Irmãos Lumiar”, era o cinema. Filmavam e construíam enredos à volta de coisas simples e quotidianas, pois não se podiam afastar muito de casa. Descobri algumas dessas fitas, e trouxe-as comigo desde Vale Escabroso, a terra da minha família, para as visualizar estes dias. Descobri coisas impressionantes em filmagens caseiras. Mas a que mais lhe interessará, caro M, trato de descrever: Numa das fitas, há uma festa na nossa casa de família. Neste cenário tenebroso de grande alegria, observo no fundo da sala, o meu pai Agripino Alves, ainda solteiro na altura, num cenário de aceso romance com Violinda Manaia, a mais feia dos Manaias, filha do tenente coronel Augusto Manaia, e meia irmã de Vivaldo. São filmagens factuais, em formato documentário, e portanto reais. Depois de recorrer ao melhor grau de raciocínio, cheguei à conclusão que Faustino Manaia poderá ser meu meio irmão, tendo em conta a sua idade, e as notórias parecenças comigo. Sempre ouvi dizer que eu era a sua cara chapada, mas em versão bonita. E as peças encaixam-se, caro Mara. Estou em estado de choque, pois esta revelação, a confirmar-se, poderá deitar por terra toda a minha reputação.
            Por fim, e enquanto aguardo novidades do plano de Vivaldo por intermédio da sua pessoa, informo-o que lhe enviei um pequeno presente pelo correio. Uma embalagem com os melhores filetes de peixe alpinos, que concerteza farão as suas delícias nestas noites frias de inverno, e que se não forem comidos com alarvidade, poderão chegar até ao Natal.
Um fraterno abraço,
Janeiro Alves

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O Aprendiz de Feiticeiro por Tiago Rosas

 Zeca Medeiros (Foto Tiago Rodrigues)

   O jovem realizador Tiago Rosas concebeu um documentário sobre a obra de Zeca Medeiros. Este objecto fílmico tem o curioso título de «Aprendiz de Feiticeiro» e trata-se de uma resenha do imaginário de Zeca Medeiros: realizador, actor, compositor, cantor e responsável por muita da música açoriana de referência que hoje ouvimos e que, podemos arriscar-nos a dizê-lo sem temor, permanecerá por muitos anos na nossa memória colectiva. Tiago Rosas oferece-nos o legado de forma temporal, mais de duas décadas de autoria, e que vai desde a série “Memórias do Vale", rodada em 1985, até ao mais recente espectáculo de “As Sete Viagens de Jeremias Garajau”, passando obviamente pelos telefilmes "Mau Tempo no Canal", “Xailes Negros”, “Balada do Atlântico", "O Barco e o Sonho", "O Feiticeiro do Vento", "A Ilha de Arlequim", "O Sorriso da Lua nas Criptomérias" ou a adaptação de “Gente Feliz com Lágrimas", do escritor micaelense João de Melo. Zeca Medeiros conseguiu – com a ajuda da RTP Açores e dos seus profissionais – criar um “fado insulano” carregado de espelhos e de reflexos que ressoam e povoam de forma indelével a cultura açoriana contemporânea. É ainda surpreendente, na parte final deste trabalho, o desfilar das suas actrizes e ainda o rol e a exposição do seu percurso interpretativo enquanto actor através de excertos dos seus filmes.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Exaltação da Cinefilia

“Queria partilhar consigo, Caro Doutor Mara, sete anotações que tenho vindo a compilar sobre a sétima arte: Um filme é sempre pessoal e intransmissível. Pode-se ver acompanhado, mas a sua assimilação é um acto individual, pois os olhos vêem o mesmo, mas observam coisas diferentes. Os críticos de cinema são para mim os caixotes de lixo de Almada Negreiros, despejados à porta dos que sofrem da impotência de criar. As grandes produções que têm o intuito do lucro, são um ludíbrio para o espectador pelo vazio da sua espectacularidade Não é verdade a afirmação de que o cinema morreu no século passado, como muitas vezes ouvi. É que o cinema do passado, o tempo já se encarregou de filtrar. Na contemporaneidade, somos confrontados com a amálgama experimental Não existem bons ou maus filmes, existem filmes que gostamos, e filmes que não gostamos. Um filme aclamado não serve para nada, na medida em que reúne consensos. A música existe porque existe cinema, porque o cinema é a vida, e a música é aquilo que não o deixa morrer”                                              
Janeiro Alves
"Tirez sur le pianiste"de François Truffaut(1960)
       
     Tudo leva a crer que os lugares da cinefilia estão a mudar. A passagem de cinema autoral a altas horas da madrugada nos canais do costume e com os cinemas emblemáticos das cidades a desaparecer ou destinados a consagrar ou a celebrar os filmes que estão a dar, há, portanto,  outras pessoas dispostas a mostrar e dar a conhecer outras imagens e novos imaginários cinematográficos. Gente que não se importa de se sentar em cadeiras na rua ou estar sentada em poufs ou sofás em galerias e bares para assim poder dar a ver filmes antigos, a cores ou a preto e branco. Foi assim que esta semana foi possível ver o segundo filme do jovem François Truffaut na Galeria Arco 8: “Tirez sur le pianiste”, de 1960, que tem como actores Charles Aznavour, Marie Dubois, Nicole Berger, Michèle Mercier  e conta ainda com uma banda sonora notável, já que ouvimos o Boby Lapointe cantar ao vivo o “Framboise” ou ainda escutar nos minutos finais o “Dialogue d´Amoreux” cantada por Félix Leclerc e Lucienne Vernay. O filme resume-se à história de Charlie Kohler que é pianista num bar recôndito de Paris e que tem uma empregada que está enamorada por ele. O irmão deste é perseguido por dois bandidos: Momo e Ernest. De seguida, descobrimos que o seu verdadeiro nome é Edouard Saroyan e que se trata de um executante talentoso que desiste de viver quando a sua mulher se suicida. François Truffaut exerce tantos anos depois uma frescura e vitalidade, para além de  uma excelente direcção de actores e uma sagacidade incrível para falar de coisas sérias de forma tão curiosa e jovial, o que não deixa de ser contraditório pois o filme foi um fracasso de público e os jornalistas cheeqaram  mesmo a decretar o fim da nouvelle vague.  

nota informativa I

recortas em arestas de voz
o ar salgado da manhã
e embalas nas mãos a acidez do sol

a vida transpira-se de calor
em seus contornos de fumo e de fogo
moldando dentro de si
o domínio dos impérios de dor

ouve - o silêncio segrega-te para fora
da bruma das freguesias seguras
procuras o rosto sonolento dum salvador
tu és uma casa assaltada - não tenhas dúvidas
todos os gestos esculpidos da brisa te arrombaram

não há utilidade em conhecer palavras
tua boca move-se com a lentidão das portas à noite
ou com a monotonia do lume que te paseia nos olhos
continuas a procurar
as sílabas que te levem ao derreter dos versos
ou ao presságio da saliva dos espelhos

recolhamos este momento:
somos os filhos dos vasos sanguíneos
nos gritos perpétuos das pétalas

Leonardo Sousa in "Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida", Letras Lavadas edições, 2013.