segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Matar o Tempo de Naná da Ribeira

A sentença é dita pelo guarda vidas 
uma bóia é tudo o que precisamos 
a neblina à distância de um palmo 
uma paisagem de escarpas e montes 
rebentam ondas e há ainda quem se atreva 
que ninguém se afogue e o tempo se ocupe
de mim, de ti e do que nos atormenta 
e, por agora, nos salvem
desta maré sem dor

Verso de A Garota Não

 Os rios juntam não partem metades 

Provérbio

Em Agosto toda a fruta tem o seu gosto

Esperar de Kol de Carvalho

Esperar de Kol de Carvalho 
4 a 8 de Setembro de 2025
Galeria da Ordem dos Arquitectos 
 

Lourdes Castro: Sombras no CAC.

         Lourdes Castro faleceu no Inverno de 2022, com 91 anos. A sua exposição em solo açoriano, no próximo mês de Setembro, é o acontecimento mais aguardado do CAC (Centro de Artes Contemporâneas), na Ribeira Grande, São Miguel. 
"Pelas Sombras", 2010
Catarina Mourão
       Recuemos até 2017, a uma sessão de cinema na Galeria Arco 8 e ao documentário “Pelas Sombras” (2010), filme extraordinário de Catarina Mourão que, à altura, ganhou o Prémio do Público no IndieLisboa. Nessa incursão fílmica de oitenta e três minutos, foi possível perscrutar o universo artístico de Lourdes Castro, artista plástica oriunda da Madeira que foi bolseira da Fundação Gulbenkian, que  viveu em Lisboa, Paris, Berlim e na cidade do Caniço, na Ilha da Madeira. A artista, a determinado momento do documentário, proferiu a seguinte frase :"Às escuras e em silêncio é que se trabalha." As sombras foram o motivo da sua longa presença e seu labor profissional. 
          Quem mergulhou neste admirável filme, conseguiu, por instantes, penetrar naquelas sombras, antever o mistério da sua criação artística. Curiosamente a obra de Lourdes Castro não se fixou na pintura, pois obteve ao longo da sua carreira várias configurações – sserigrafia, plexiglass, desenho, ilustração, colagens, assemblages, peças em tecido, acrílico recortado florescente, etc. Uma obra extensa também na sua diversidade de composições e plataformas. Esta artista fez também parte da KWY (movimento artístico com direito a revista homónima entre 1958/1964), sendo que a sua obra encontra-se espalhada por museus nacionais e estrangeiros e colecções portuguesas e internacionais. 
          O CAC (Centro de Artes Contemporâneas) ainda não divulgou o conteúdo da exposição, no entanto esperamos que esta sirva para nos aproximarmos ainda mais de uma das obras artísticas mais consistentes e celebradas da cultura portuguesa e insular.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Enfim...a Canícula!

        O calor abafado, enfim, voltou. A água salgada do mar faz o seu vaivém nas praias de areia preta que, entretanto, amornam e, com as temperaturas do ar cálidas, retornam também os garajaus, essas andorinhas insulares que nos devolvem a visão do seu voo e beleza.
       Abandono, assim, mais uma casa, aquele quarto, mais uma morada (quantas moradas? quinze, vinte?), permaneço com os nomes de bairros e ruas gravado na memória – Casal de Malta, Canal, Calouste Gulbenkian, Jogo da Bola, Senhora do Almurtão, Barão de Roches, Miragaia, D´Agoa, Guilherme Poças Falcão, Laureano, Rua Nova da Misericórdia, Gaspar Fructuoso, Ladeira das Águas Quentes, Pópulo Pequeno, Livramento, etc…a convicção também de que em breve irei encontrar outro destino, outros olhares, novas memórias.
 Todos os verões, eis que regresso às águas gélidas que povoam a minha infância e adolescência, torno às sessões de cineclube às quintas-feiras e aos filmes ao ar livre na cidade vizinha, cidade onde procuro em vão a professora F. – ensinou-me a língua francesa apenas com o seu sorriso – ou visito, quando posso para uma longa charla, a professora M., de Filosofia, tal como ainda provisiono uma ou várias barrigadas de sardinhas para o jejum insular que se seguirá.
         Proclamo, por agora, um até já às minha coisas e às que julgo pertencer, despeço-me dos locais onde repousei o olhar, abraço as pessoas que conheci e as outras tantas que gostei de conhecer. Interrompo, entretanto, as conversas com os mais próximos com quem conversei, relembro os momentos partilhados, os bons e os maus. Aproveito para implorar absolvição pelas ocasiões em que excedi a sua paciência quando exalto o prazer no presente ou a existência de melhores dias vindoiros. Não me canso de referir o peso de que somos feitos, este desconsolo que nos tolhe os movimentos, inclusive, a melancolia a escrever, tão implicada de dor e culpa, e que vejo entrar quarta invasão francesa, já enunciava o Alexandre O´Neill, com assertividade e sem ela. Um poeta maior que nos abandonou em Agosto, pois já não conseguia contrariar o vento, a morrinha, a nortada. E que frequentemente tropeçava de ternura…

sexta-feira, 25 de julho de 2025

A Paixão de Dodin Bouffant: O Napoleão da Arte Culinária!

       
Imagem daquihttps://revistadeguste.com/
Comer é uma actividade essencial do ser humano mas convenhamos que este verbo tem um vasto leque de signficados, com diferentes ligações à existência. No que diz respeito a este filme - La Passion de Dodin Bouffant, de Tran Anh Hung - que obteve em português a tradução de "O Sabor da Vida" - trata-se de uma incursão exclusivamente sensorial a partir do universo de uma cozinha partilhada por dois esmerados cozinheiros. A acção cinematográfica decorre entre tachos, panelas e fogões, degustando sabores, aprimorando paladares e seguindo sugestões de aprendizagens efectuadas aquando da ingestão de alimentos e reconhecimento dos aromas. É um agradável filme de seguir, não só pelo facto de ficarmos sugestionados e com apetite, bem como pelas interpretações competentes dos dois actores em presença:  Juliette Binoche e Benoît Magimel.

Despedida de Naná da Ribeira

A chegada do verão afasta-nos do centro
os dias esfumam-se lentamente
todo o azul e toda a claridade
ouve-se um saxofone no corredor
ninguém diz nada, ninguém sabe nada
o motor é o escape possível no asfalto
as unhas de gel carregam no telemóvel
produzem um enervante som de plástico

À noite a almofada evoca o esconderijo
único mistério guardado da existência
amanhã não subsistirá mais nada
apenas uma algibeira de memórias
e a habitação de uma descoberta desfeita 

terça-feira, 22 de julho de 2025

Verso de Nena

 Riefen krieg und wolten macht

Um Poema de Afonso Braga

Amor era a palavra que dizias 
quando a boca se fechava no silêncio da noite como um cravo incendiado 
pela temperatura da idade como um cravo tocado pela morte 
a entrar na vida como um animal à procura de alimento devastando as veias
do teu sangue sumptuoso até outro corpo ser imaginado e outras palavras reflorescerem nas escarpas do teu ventre perfumado a queda 
nos esgotos da eternidade
onde não há tempo nem medo que te obriguem ao amor 

in Locomografia, Editora Atelier Produção, 2009.

CAC: Saber Fazer; Saber Ver

Duas exposições para ver no Centro de Artes Contemporâneas da Ribeira Grande: “Produção Artesanal Portuguesa: A Atualidade do saber fazer Ancestral” e “O Tempo de Estar”. A primeira propõe-se valorizar a produção artesanal portuguesa de norte a sul e ilhas, um olhar múltiplo sobre o saber fazer nacional, quanto à segunda pretende dar relevância à década de abertura expositiva do Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, ao expor obras da colecção do Arquipélago em fala aproximada com obras de outras instituições, galerias e colecções particulares.
         Desta feita, a exposição “Produção Artesanal Portuguesa: A Atualidade do saber fazer Ancestral” acaba por ser uma panorâmica do artesanato nacional, pois  há tapetes de arraiolos, cocharros, viola campaniça ou ainda peças oriundas do arquipélago açoriano, tais como a viola de dois corações (São Miguel) a Joeira de Santa Maria, o Lenço do Faial, entre tantas outras. É a nossa riqueza artesã e beleza dos nossos labores manuais a precisar de ser vista e apreciada. Quanto à exposição  “O Tempo de Estar”, com curadoria de Beatriz Brum e Sofia Carolina Botelho, esta pretende ser uma reflexão com o espaço museológico deste espaço, isto é, pensar a relação dos artistas e do público com este lugar de afirmação artística que perdura no aqui e agora. Parte, por isso, da necessidade de conceber um acervo referencial deste lugar que seja um verdadeiro mosaico da arte contemporânea ao qual se vai acrescentado pensamento, diálogo e memória com outros trabalhos em destaque. 

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Conselho

       "Num dos grandes filmes dos anos 2000 - Quase Famosos, de Cameron Crowe - o extraordinário Philip Seymour Hoffman interpreta o papel de um crítico de música da década de 1970 que vai dando sábios conselhos a um jovem jornalista que se prepara para acompanhar a banda em digressão. "Tu não podes ser amigo das estrelas de rock", explica-lhe ele. "Se tu escreves sobre rock, em primeiro lugar nunca vais ganhar muito. Mas vais receber discos de borla da editora. E vão pagar-te bebidas, vais conhecer miúdas, vais viajar de graça, vão ofercecer-te drogas...Eu sei. Parece incrível. Mas eles não são teus amigos. São pessoas que que querem que escrevas histórias grandiloquentes sobre o génio das estrelas rock. Estão a querer comprar respeitabilidade." Este continua a ser o melhor conselho que se pode dar a um crítico, a um comentador, até a um jornalista."

João Miguel Tavares, in Público, 17 de Abril de 2025. 

domingo, 20 de julho de 2025

Da Fobia

          "A xenofobia, por exemplo, é tão larga que poderia incluir várias outras fobias que assentam no medo do que não se conhece. Para combater a xenofobia - tão debilitante, tão estúpida, tão aleatória, tão cruel  e violenta - porque não a claustrofobia?
       A claustrofobia é que é o contrário de xenofobia: é o medo de ficar fechado, de ficar preso, de não poder sair, de não nos podermos mexer.
   Imagine-se a claustrofobia de só podermos comer comida portuguesa (ou lisboeta), só ouvir música portuguesa (ou alentejana) ou só ler livros portugueses (ou minhotos).
        Claustrofobia é o terror de ficarmos fechados em casa,  a aturar a nossa própria família, infinitamente protegidos pelas paredes de pedra da nossa casa e obrigados a proclamar a toda a hora o nosso orgulho de pertencermos àquela cultura tão rica e tão particular. 
        Não há horror que não mereça um horror maior."

Miguel Esteves Cardoso, in Elogio da Fobia Justa, Público, Abril de 2022. 

O Anzol de Raquel Vila Arisa

Lapa Brava, 2024


Atena de Ana Paula Inácio

nem dórica 
nem jónica 

dorsal 
a coluna majestática 
da infância 

das saias 
das irmãs 
a goma barata
rocegando-te 
as pernas descobertas 
do Verão

o pêlo eriçado 
um gato 

in Anónimos do Século XXI, Averno, 2016. 

sábado, 19 de julho de 2025

É na Horta...

Festival Maravilha 
De 17 a 20 de Julho de 2025

 

Pico

Fotografia: Tânia Neves dos Santos 
 

Da Cobardia

     "José Gil tem razão quando nos diz, de uma forma elegante, que nos ficou a cobardia, dos tempos do obscurantismo, temos muita dificuldade em expressarmos livremente o que sentimos. Mas já passaram 50 anos e várias gerações. Não diz, mas digo eu, que preferem mostrar a sua insatisfação através de radicalismos anónimos, expressos, cada vez mais, nos atos eleitorais."

José Gameiro, in Amorfos Felizes, Expresso, 11 de Julho de 2025. 

A Questão

 Tu de quem és? 

Santa Bárbara de Naná da Ribeira

Se foi por acaso não saberei conferir

Antes assim uma descoberta inusitada

No dealbar do estio esta paisagem

Tão singela e tosca nas suas manifestações

A interioridade de terras acidentadas

Beleza e colorido das papoilas e hidrângeas

As móveis nuvens e os verdes tão distintos

Raios a incidir na feição dos plátanos

Benditas chuvas que tombam sobre os campos

Ampliam árvores e o vigor das folhagens

Rasgam muros de sombra no desenho das fábricas

Até ao eclodir do marítimo horizonte

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Verso de Filipe Furtado

 Diz-me se a dor desvanece

Dos Gregos

     "Não há como imaginar o mundo sem a contribuição da Grécia. Está nos mares, nos céus...Não nos conseguimos livrar dos gregos."

Theodor Kallifatides, in Público, 3 de Julho de 2022

Nómadas de Naná da Ribeira

Não resistem por ali muito mais tempo 
Ouvem das casas de passagem ordem de despejo
Mudam-se vezes sem conta e com eles surge 
A vontade de serem lidos em silêncio 
Duvidam, pois, do tempo que ali permanecerão 
Ainda que transportem visões, anseios, melancolias
Sobejando utopias, acalentam permanências 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Antero de Quental

para ti era a chama e não o fogo,
a arca secreta da verdade, 
lugar coberto de dor e pó de lágrima,
onde a memória guarda o sudário do futuro.

Emanuel Jorge Botelho e Urbano in a vida e uma manhã, Publiçor, 2010.

Sistema Naturae#45 de Urbano

Urbano 
Técnica mista sobre tela 
 


As Amoras de Sophia de Mello Breyner

O meu país sabe a amoras bravas 
no Verão
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce 
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo 
me traz amoras bravas 
os seu muros parecem-me brancos 
reparo que também no meu país o céu é azul 

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Ciclo Imaginário de Cinema ao Ar Livre(2)

       O segundo filme deste ciclo imaginário de cinema ao ar livre seria para “Maria do Mar”, uma curta-metragem de João Rosas, realizada em 2015, seguido de “The Florida Project”, Sean Baker. O primeiro aborda a adolescência de Nicolau (Francisco Melo), a vida de um jovem que acompanha o irmão mais velho e amigos, num fim de semana estival até à cidade de Sintra. Esta curta-metragem continua a ser uma delicada estranheza, muito pela cumplicidade com que o personagem Nicolau vai estabelecendo com o espectador ao longo do filme. Agora que João Rosas estreou “Vida Luminosa”, e que completa a trilogia, seria de bom tom mostrar este “Maria do Mar”.  Quanto a  “The Florida Project”, o filme de 2017 do super oscarizado Sean Baker, é um fortíssimo cartão postal para conhecer a obra deste realizador. Trata-se da história de uma pequena criança de seis anos de idade, Moonee (Brooklynn Prince), que partilha com a mãe Halley (Bria Vinaite) um apartamento de um motel a beiras com a fantasia da Disney World. Podemos mesmo dizer que não há melhor projecto de enfrentamento de uma canícula abafada e lassa. Este filme é o retrato de uma Flórida à margem, com as contradicções e as típicas aventuras de um mundo precário e plastificado, em que a Disney World surge como a glorificação do desejo humano.

Verão de Naná da Ribeira

Voltamos lestos antes que tudo isto acabe
Estamos agora onde devíamos estar
Ruas nuas, praias de basalto quente 
Arde a fogueira interior dos vulcões
Onde a lassitude impera e o salitre cura 

terça-feira, 8 de julho de 2025

Citações

       É bom ter livros de citações. Gravadas na memórias elas inspiram-nos bons pensamentos.
Winston Churchil (1874-65), in Notícias Editoral. 

domingo, 6 de julho de 2025

Quarteirão de PDL: A Energia a Despontar

        
Fotografia de Carlos Olyveira
     A Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada reuniu no seu interior, num dos seus múltiplos espaços, um conjunto de fotografias sobre o Quarteirão de PDL. As fotografias encontram-se, assim, espalhadas pelas paredes e pilar de uma sala dedicado à música e aos filmes, sendo que  o seu número é bastante considerável tal como os seus autores. O que une estas fotografias é a memória dos que aqui vivem, trabalham, convivem e usufruem deste espaço citadino que ganhou relevância com a abertura do espaço aéreo, a 29 de Março de 2015. Nascia ali um novo espaço de convivialidade, um lugar feito de cumplicidades e abraços, brotavam quotidianamente encontros, projectos, vontades criativas. Eram uma nova energia que despontava, naquele conjunto de ruas com gente dentro e que começaria a designar-se por O Quarteirão. Tenho, por isso, uma memória viva daquele fulgor, ainda que rápida e fugaz, é certo, mas retenho sobretudo uma lembrança de pessoas, acontecimentos e a uma variada panóplia de actividades artísticas a acontecer. Das muitas coisas por ali vividas, relembro duas ou três situações que gostaria de evocar – a peça na Galeria Miolo “Será que Podemos Controlar o que os Outros Pensam de Nós?”, com o João Malaquias a solo na Galeria Miolo, o Henrique António  vestido de Filípides, bem como os demais, para a performance/exposição fotográfica “Alvo Périplo Rua Abaixo Movimentado”, da trupe da Sala de Embarque e  do fotógrafo Jorge Kol de Carvalho junto da Igreja do Colégio ou ainda as fotografias do Carlos Olyveira que, quotidianamente, fotograva os seus novos habitantes e espaços. 

sábado, 5 de julho de 2025

Sobre o Caos

         "Em sociedades onde a ameaça é maior, a expectativa é menor e as pessoas não têm tanto medo. O medo é psicológico, somos muito medrosos. Agora andamos cheios de medo dos imigrantes. Têm o mesmo papel que teve os toxicodependentes dos anos 1990, quando andei nos bairros. É o papel do diabo à solta, que veio provocar caos na nossa ordem. Temos sempre que polarizar numa figura qualquer algo que não sabemos resolver que é o caos. Desde o nosso caos interno ao caos social. O nosso caos interno resolve-se projectando as nossas paranoias em quem temos à nossa volta: no filho, na mulher, no sogro, no patrão, na empregada doméstica...a projecção social das frustrações de uma sociedade que não funciona bem, fazemo-la na figura do outro. Hoje, o outro  é o migrante que vem de longe. Não o migrante europeu, não é o norte americano. Não é o sueco que compra casa no Algarve. São aqueles indivíduos que vem para aí  e que, coitados, têm de sobreviver com os os restos que sobram para eles."

Luís Fernandes, entrevista de João Pacheco, Revista do Expresso, 3 de Junho de 2025.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

A Ilha de Almeida Firmino

Sempre o mesmo horizonte 
-mar, névoa, a ilha em frente
Dizem os garajaus ao voltar
Que não mais será diferente 
in The Sea Within, Gávea-Brown, 1983. 

Crepúsculo na Ilha de Marcolino Candeias

 I
O dia morre como se adormecessem vozes 
nas bocas dos animais 
tecidas
num esvoaçar de sons 


II
O lavrador vestido de suor
planta no bater da estaca 
o gesto último
de querer prender à terra toda a sua vida
 

III
No cheiro a erva 
um sonoro subtil soar do silêncio 
brota um crepúsculo de flores esmagadas 


IV
No ar
paira um odor calado a maresia
in  The Sea Within, Gávea-Brown, 1983.

Ciclo Imaginário de Cinema ao Ar Livre (1)

       Todos os anos, quando a permanência no interior das casas se torna insustentável, dou por mim a imaginar a programação de sessões de cinema ao ar livre, isto é, a propor à minha freguesia de bairro uma selecção de filmes que primem pela qualidade narrativa, uma banda sonora irrepreensível, boa cadência e ritmo cinematográfico. É claro que não posso descurar que haja uma boa amplificação do som e que estejamos todos bem sentados. Assim, será uma boa sessão de cinema ao ar livre em que nada possa ficar de fora. Então, a sessão inaugural teria o filme de Emir Kusturica, Gato Preto, Gato Branco, realizado em 1998. Pela película andam ciganos que habitam nas margens do Danúbio, os seus negócios mal afamados com os russos, desvios de comboios com gasolina de Belgrado com destino à Turquia, uma atiradora furtiva que atira aos barcos sobre as águas e ainda Dadan, o patriarca da comunidade que possui um harém. Enfim, a desbunda típica dos filmes de Kusturica com muita música e charangas à mistura.

domingo, 29 de junho de 2025

Verso de Maia Friedman

 I would sense you there, but you wouldn´t care 

Da Saúde

        "O problema não é a escassez de camas ou profissionais. É a ausência de políticas públicas com rosto humano. Falta-nos saúde de proximidade, apoio social continuado, articulação entre as instituições. As autarquias sabem quem são, onde vivem, o que precisam, mas não têm meios para intervir. O Estado empurra para o terceiro sector, que responde como pode, muitas vezes com boa vontade, mas com meios limitados e serviços inconsistentes. A caridade não pode substituir o que é - deve ser - público."

João Mendes Coelho, médico-psiquiatra, in Açoriano Oriental,  dia 29 de Junho de 2025. 

terça-feira, 24 de junho de 2025

Verso de Nicola di Bari

 Il mondo è grigio, il mondo è blu 

Projecto de Rui Costa

Fernando comprou um livro de poesia com oitocentas páginas
mas só conseguiu ler quinhentas

António sonhou com o Evereste na magnitude
mas só precisava de mudar uma lâmpada 

Rita imaginou um poema para Fernando 
mas só tinha que aceitar o jantar de quinta 

A lâmpada pensou que era um poema
e fundiu-se sem iluminar a sala 

Luís aproveitou a escuridão da sala
para dizer a Rita um poema com montanhas 

Trezentas páginas que nunca foram lidas 
arquitectam com a lâmpada a salvação do mundo

in A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Quasi Edições, Março de 2005. 

Queixa de um Utente de José Miguel Silva

Pago os meus impostos, separo
o lixo, já. não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.
Já não me lembro se o médico
me disse ser esta a receita indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for, 
não estou a ver resultado nenhum.

in Ulisses Já Não Mora Aqui, &etc Edições Culturais do Subterrâneo, 2002.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Um Poema de Mário Cesariny

Dicen?
Olvidan.
No dícen?
Envídian.  

Hacen?
Fatal
No hacen?
Igual.

Para que 
`Sforzar?
Todo es 
Hurgar. 

in O Virgem Negra, Assírio&Alvim, 1989

Sagres de Jorge Sousa Braga

Só tenho uma ponta de
cigarro para fumar
E para apagá-la:
todo o mar.

in  O Poeta Nu, 2014. 

domingo, 22 de junho de 2025

O Que Faz Falta...

      "O que faz falta é reconhecer que o outro pode ter a sua verdade, embora discordemos dela. Sem calçar os sapatos do outro não há diálogo ou negociação possível, nem nas sociedades nem no casamentos. A polarização não responde a argumentos lógicos, racionais; é um problema de emoções. Porque as discussões estão condicionadas pelo filtro do medo, do ódio, do preconceito, assentam na ideia de que o outro é um inimigo, com quem não podemos chegar a nenhum tipo de acordo. A polarização é também ela uma guerra, com a sua violência específica. Clausewitz definia a guerra como imposição da nossa vontade ao inimigo."

Antonio Monegal, in "As Guerras Começam na Linguagem", A Revista do Expressso, 30 de Maio de 2025.  

sábado, 21 de junho de 2025

Timoneiro: Um Postal Antibelicista!

         
Cartaz daqui: http://www.cinemadg.com
    Actualmente há
 bombas a cair e aviões nos ares do Médio Oriente, um desassossego que não cessa, no entanto há sempre quem pense que a vida bem poderia ser outra coisa. Outra coisa certamente muito melhor do que guerras, fome, desespero e caos. Já passaram, no entanto, dez anos da estreia de Timoneiro, um filme de Majid Esmaeli-Parsa, rodado no Irão em  2015. Filme visto na sala de cinema do Teatro Ribeiragrandense, esta adaptação cinematográfica de um original do escritor norte americano Philip Roth,  narra a história de uma criança de onze anos que, após o desaparecimento do pai, depara-se com a possibilidade de recuperar o navio famíliar para o aniversario paterno, onde à sua frente se encontra o Lago de Urmia enxuto. Não tarda nada e outras crianças seguirão os passos de Hassan e com a sua amizade erguerão aquele projecto em marcha.
       O realizador Majid Esmaeli-Parsa filma, portanto, o seu pequeno herói Hassan naquela paisagem árida, onde a ausência da água, a seiva da vida, condena o futuro de quem ali vive ao fracasso. A esperança reside, pois, nas crianças, na aprendizagem escolar do quotidiano, são elas que nos dão a uma nova visão poética do mundo. A poesia surge aqui sob a forma de acções quotidianas comuns - a pintura do navio, a dança em conjunto, o conto das histórias, a beleza de uma paisagem em ruínas. Timoneiro é um retrato duro, cruel, expressa na ansiedade de quem espera por algo que quer muito e de que vive dos seus pequenos detalhes, da música que aparece e desparece, daquele teatro de sombras e dos gestos e  feições que nos vão eternecendo. Mesmo com algumas fragilidades narrativas, Timoneiro é um belíssimo postal poético e propositivo de um novo mundo antibelicista.

É oficial: Começou o Verão!

Garajau Rosado, Andorinha-do-mar-rósea 
Nome Científico: Sterna Dougali 
Fotografia:
Ricardo Guerreiro
in Avifauna no litoral dos Açores
(Amigo dos Açores) 
 

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Avenida Marginal: Contos à Beira-Mar!

      
     Saiu em Abril do ano passado e tem na capa a ilustração Rapaz do Calhau, de João Amado, numa edição que conta com a coordenação de Maria Helena Frias e, da sua casa editora, a Artes e Letras. A publicação Avenida Marginal vai, assim, no seu número cinco  e esta edição contou com um conjunto de narrativas em torno das ilhas e dos ilhéus. Esta súmula de contos/ficções apresenta diferentes autores, quase todos eles relacionados com este território insular: Alexandre Borges, Carlos Bessa, Carolina Bettencourt, Catarina Ferreira de Almeida, Herberto Gomes, Judite Canha Fernandes, Leonardo Sousa, Luiz António Assis Brasil, Maria Brandão, Maria das Mercês Pacheco, Marta Ávila e Teresa Canto Noronha.
      A leitura de Avenida Marginal abre com o conto Demónios à Tua Beira-Mar, de Alexandre Borges, onde é retratado um ambiente sui generis de conferências, bebidas brancas e psicólogas, com diabretes à mistura. Segue-se Aurea Mediocritas, do poeta Carlos Bessa, numa descrição de uma relação longínqua e prolongada no tempo, marcada pelo desgaste e pela rutura. A presença do futebol na ilha, a força deste desporto e das suas paixões, pressente-se em Capitão de Equipa, de Carolina Bettencourt. A autora Catarina Ferreira de Almeida compõe um retrato de uma mulher virada para o mar, com uma história intitulada Memória de uma Onda. O conto Enganos e Desenganos de Desidério Domingos traz-nos a primeira ficção de Herberto Gomes, jornalista de profissão, que nos conta a história de um soldado que falha na sua missão, no entanto cumpre o seu  traumático regresso a casa carregado de aventuras. Em Carta de um Vulcão para o Mundo, Judite Canha Fernandes, expõe na ficção a presença e influência do Vulcão dos Capelinhos na vida insular aquando da sua erupção, a partir de alguém que hoje lhe envia uma carta. Whatever People Say I Am, de Leonardo, é uma narrativa ficcionada e autobiográfica de uma improvável personagem, de seu nome  Biografia. Curiosa é também a conversa que o brasileiro Luiz António de Assis Brasil, mantém com a ilha, com este espaço e, mais concretamente, com escritor José Martins Garcia, neste caso em modo Grapefruit. Embuste é a proposta de Maria Brandão, autora micaelense que ironiza por aqui a sua relação com a editora da casa, evitando as "divagações íntimas", mas onde ambas têm muitas cumplicidades passadas. Daqui do Alto, de Maria das Mercês Pacheco, é um conto vivenciado no passado em que este "é um vulcão adormecido sob lençóis de cinza e musgo; o futuro, a promessa de incandescência". Um cheirinho da natureza extrema que, por vezes aqui se vive, é contada em Há Anos que Não Ne Lembrava de um Dia Assim, por  Marta Ávila. Esta rica e variada plêiade de autores e narrativas termina com o texto A Touca Branca, de Teresa Canto Noronha, num mergulho singular à sua infância insular com sabor a “salada de atum, com maionese, rosbife, e gelados da carrinha que apita ao pé do bar”. 
      É, sem qualquer dúvida, uma boa leitura de estio e, com páginas suficientes, sobretudo para que estas se possam encher de areia negra e fina, para lá da Avenida Marginal!

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Erik Satie: Arcueil por Joana Gama

     Arcueil era o o bairro parisiense onde vivia Erik Satie, o músico peripatético da transição do século XIX para o século XX. A música dele assemelha-se a um passeio contemplativo e filosófico constante, aproximando-se do ritmo humano nas caminhadas e paragens, sendo esta uma actividade preferida do músico para se inspirar enquanto transportava o seu guarda-chuva, fizesse sol ou chuva, talvez um da centena de exemplares que deixou como herança na sua modesta casa. 
  Joana Gama, pianista portuguesa, dedicou-lhe, aliás, continua a render-lhe concertos vários e diferentes evocações carregadas de afinco e solenidade. Nste disco, editado pela Mia Soave, a pianista coloca Satie a dialogar com outros autores da sua estima: John Cage, Morton Feldman, Vítor Rua, Marco Franco ou Frederico Pompou. A acompanhar as gravações há ainda os desenhos e as gravuras de Ricardo Jacinto, André Laranjinha, Vítor Rua, Nuno Moura, Tiago Cutileiro e Marco Franco. Um disco para ouvir e sentir enquanto as flores rebentam e os árvores se enchem de pássaros ao fim da tarde. Boa audição. 

Música para Encerrar a Primavera

-Andata async, 2017 - Riuchy Sakamoto
-Diver - Dwellers On The Threshold, 2002 -Tarwater
-Verdes Anos remix part 1 e 2 - Bairro da Ponte, 2019 - Stereosauro (Com a participação de Dj Ride)
-Andava Eu - Rapaz da Montanha, 2025 - Rodrigo Leão (Com a participação de Francisco Palma)
-Recomeçar - Recomeçar, 2018 - Tim Bernardes
-In My Mind -Ruhige Music, 2022  - The Wallners
-Spike Island - More, 2025 -The Pulp
-Tao - Drama, 2025 - Rodrigo Amarante
-Ada - Como se Matam Primaveras, 2025 - Trio Filipe Furtado
-O que fomos e o que somos - O que fomos e o que somos, 2024 -  Lena d'Água
-Russian Blue - Goodbye Long Winter Shadow, 2025 - Maia Friedman
-Good Old World (Gypsy)Night on Earth, 1992 – Tom Waits e Kathleen Brennan
-Nocturno das 7 - Amplitude, 2016 - Danças Ocultas e a Orquestra Filarmonia das Beiras  

terça-feira, 17 de junho de 2025

Maravilha: O Festival da Ilha do Faial!

         

     Começou hoje o Festival Maravilha(https://festivalmaravilha.pt/), na Horta, Ilha do Faial. A organização pertence à Associação Cultural Fazendo que há seis anos celebra a condição atlântica de tão importante centralidade naútica. Durante quatro dias a cidade insular enche-se de festa, música, diversão, cinema, arte urbana e criatividade. Lembro-me, por isso, da sua edição debutante em que narrei para o Fazendo a minha relação com os barcos e veleiros que atracavam naquela incansável marina das ilhas do Triângulo.
        
    Infelizmente, o Boletim Cultural Fazendo já não sai faz tempo...teve 108 edições! Eram cerca de quinhentos exemplares distribuídos gratuitamente, sendo que esta versão impressa abarcava, para além do Faial, o Pico, a Terceira e São Miguel. Aqui este escriba associou-se ao projecto em 2009 - os seus conteúdos giravam em torno da arte, da atividade cultural e da ciência - ao participar em mais de meia centena de números com a escrita de crónicas, entrevistas, reportagens e artigos variados. O Fazendo, como carinhosamente lhe chamávamos, foi uma tocha no meio do oceano, essa emanação de uma possível coesão arquipelágica quase sempre carregada de utopia e ilusão. Uma maravilha, portanto!

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Orgias de Praga: A Privação de Liberdade!

Daqui: https://www.filmcenter.cz
         O título envia-nos para um ambiente estranho, ali para os finais de 70 do século passado, numa das capitais mais bonitas da Europa Central e que se encontrava a viver um regime opressor e totalitário. Alguns anos antes, Alexander Dubcek, antigo Chefe de Estado da comunista Checoslováquia, forçou uma abertura do regime e logo seria esmagado pelos tanques soviéticos. Aquele período ficaria marcado pela “Primavera de Praga”, mas seria sol de pouco dura já que o regime se tornou cruel para os dissidentes e o ar tornar-se-ia irrespirável. E a razão do título, melhor, a razão do filme? Um escritor judeu norte-americano viaja para Praga à procura avidamente de um manuscrito inédito que lhe trará histórias de um país asfixiado, privado de liberdade. A trama adensa-se com o final do filme em que a inevitabilidade da expulsão do escritor  Nathan Zuckerman (Jonas Chernick), conclui o processo de sufoco presente em todo o drama. Realizado por Irena Pavlásková, o filme foi decantado do romance do escritor Philip Roth,  com o mesmo nome. Uma película que, sem ser muito entusiasmante, valeu pelo reavivar de memórias de quem por ali passou nos idos anos 90.

domingo, 15 de junho de 2025

Noite na Terra: Há Salsifré no Táxi!

       Decorriam os anos noventa do século passado quando "Night on Earth" estreou e este foi, certamente, o filme mais amado pelo público, no que toca a Jim Jarmusch. Cineasta de nicho, "Night on Earth" trazia para o grande público o realizador de "Stranger Than Paradise" ou "Down By Law", a partir de cinco narrativas no interior de táxis em cinco diferentes cidades, a saber: Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Roma e Helsínquia. A música é de Tom Waits e nas interpretrações encontramos: Winona Rider, Gena Rowlands, Giancarlo Esposito, Rosie Perez, Armin Mueller Stahl, Isaac de Bankolé, Béatrice Dal, Roberto Begnini (o incrível táxista romano!) e Matti Pellonpaa. 
       "Noite na Terra" é, antes de mais, uma película que nos remete para a riqueza da diversidade humana, tal é o  encanto na sua revisão três décadas depois. Não é um filme genial mas é um hino à compreensão e tolerância humanas neste tempo de rejeição da diferença e o desprezo pelos mais frágeis e vulneráveis.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Descalça vai para a Fonte de Luís Vaz de Camões

Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.
 
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.
 
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Terra Natal de Rui Lage

A bacia range sob o peso da roupa 
que há muito a mãe já não lava
nas águas da terra natal. 

in Berçário, Quasi Edições, 2004.

No Inimigo Público do Expresso...

"Velejador açoriano que terminou volta ao mundo em iate durante sete anos desolado por perceceber que António Costa não fez as reformas estruturais.

   O velejador Norberto Serpa partiu numa volta ao mundo quando o primeiro ministro António Costa tinha apoio parlamentar de toda a esquerda, tendo o açoriano deixado o seu país em boas mãos, apenas para descobrir esta semana, ao regressar de sete anos de viagem, que Portugal está pior, tendo mesmo dado boleia no veleiro a uma grávida dos Açores para ir ter o filho a uma maternidade pública de Lisboa. Já um aviador açoriano que deu a volta ao mundo durante sete anos ficou espantado ao descobrir que não podia aterrar nos novos aeroportos internacionais de Lisboa do Montijo, Moita e Alcochete."   

 V.E. in Inimigo Público, Jornal Expresso,  30 de Maio de 2025.  

domingo, 8 de junho de 2025

O Novo Flâneur de Ana Hatherly

 O novo flâneur urbano
herdeiro 
do velho alegorista baudelariano
deambula 
pelas grandes superfícies
do consumo 
onde se exibem
da produção
os ruidosos traços 

Aí 
tudo está encenado
e entre a carência e a oferta
personagens principais
deste espectáculo
o novo flâneur
contempla 
e depois sucumbe 
no mercantil mar iluminado
onde cintila
a avidez jamais satisfeita 
do mais querer 

Porque algo sempre falta
e o desejo 
tudo dilacera 
numa batalha
de antemão perdida
em que o sangue-frio 
não serve p´ra nada.
II
O novo flâneur
navega 
num informático oceano
feito de simulacros
de imaginadas redes de sentido

Olha o écran
o novo espelho 
que figura e desfigura 
o seu medo maior

Onde é que há 
um espelho que tranquilize?
A imagem é só ela:
uma constelação de impasses
um palimpsesto 
feito de interfaces

in Itinerários, Quasi Edições, 2003.

Da Insensibilidade

      "Somos constantemente bombardeados por imagens de violência que se tornam parte daquilo que consumimos nos media, ao lado de anúncios, pinturas, poemas ou bocados de diálogos. E com tantas atrocidades a acontecer no mundo, o modo como as enfrentamos é importante. Como chegamos a este lugar onde podemos parar e pensar, onde podemos estar nessa solidão, encontrar o nosso centro moral? A resposta está em parar de consumir, de agarrar no telefone, de abrir o computador, de olhar para fora de nós mesmos. Porque parte da insensibilização acontece através do consumo, mediado hoje pela tecnologia."

Samantha Rose Hill, em entrevista a Luciana Leiderfarb, in Revista do Expresso, dia 6 de Junho.

Verso de A Garota Não

Tudo começa numa estrada que termina no Alaska 

Ferry Gold, 2025 

Verso de Anna Järvinen

Ge mig hopp, ge mig tro, ge mig nåt

sábado, 7 de junho de 2025

Yuzin: Junho Verde Alface

Capa da Yuzin
Mês de Junho, 2025
          A Yuzzin do mês de Junho  mostra-nos uma ilha em movimento, um conjunto de atividades para que nos possamos deixar levar pela sua modesta “movida cultural”. Desta vez, aposta numa capa colorida onde sobressai o verde claro e vibrante, típico das planícies açorianas por esta altura. É hora, pois, da meteorologia fazer o seu caminho, dado que foi um Inverno demasiado longo e nublado, momento para guardar as roupas mais quentes e sair à rua com outras mais arejadas. Esta agenda é, sem dúvida, um serviço público que é prestado à comunidade micaelense, já que permite estar atento à diversificada programação estival insular. Com tanto festa em impérios, bailaricos e festivais fora de portas, não faltam  escolhas para ver, ouvir, sentir, ou, simplesmente, contemplar.

Ontem, escrito numa parede da cidade

Os miúdos largam balões ficando apoquentados os aviões

Andrea Santolaya: A Ilha de Sam Nunca

         
Homem Pássaro, 2023
Não há sorrisos nestas fotografias e não há nenhum problema nisso. Só rostos fechados, pés e asas em movimento, gente dorida em romaria, dia de festa ou celebração. É a ilha, o arquipélago, é Rabo de Peixe longe dos holofotes mediáticos e dos preconceitos sociais. Enquanto observadora atenta, Andrea Santolaya destaca o fascínio de quem aqui aporta e faz o registo de quem se aproximou e acaba por se deparar, muitas vezes, com a lonjura, o fechamento e a separação. Esta é, sem qualquer dúvida, uma sensibilidade particular, um mergulho bem fundo na interioridade que precisamos saber apreciar.
       Esta súmula de fotografias intitulada “A Ilha de Sam Nunca”, de Andrea Santolaya, é para levar a sério, digna de um espelho comunitário, tem tanto de real como ficcional, que até parece exclusivamente verídica! Há, no entanto, uma fotografia de cortar a respiração - três mulheres, aparentemente trata-se de uma mãe e duas filhas, encontram-se junto à porta e paredes de uma casa da freguesia, pintada com as cores da bandeira nacional – aqueles rostos magoados e esgares cerrados é pura poesia visual! Creio que foi Roland Barthes que afirmou que se uma fotografia nos prendesse um minuto que seja da nossa a atenção, isso revelaria  a  intencionalidade e relevância daquele gesto! E que gesto! 

Nota: As fotografias encontram-se expostas no Museu Carlos Machado (Núcleo de Santo André) e na Galeria Fonseca e Macedo

domingo, 1 de junho de 2025

Verso dos Pulp

 Spike Island come alive by the way 

Da Saúde

      "Quanto mais doente for uma sociedade, quanto mais desesperadas estiverem as pessoas, mais elas querem ser saudáveis. 70% dos adultos americanos tomam um medicamento. Comem lixo! A cultura vende-lhes lizo para comer! E o stress aumenta por causa dessa comida. Claro que as pessoas estão desesperadas por serem saudáveis. Mas não estão à procura das causas, estão só a ver os efeitos."
Gabor Maté, in Ípsilon, 2 de Maio de 2025.