quarta-feira, 30 de março de 2022

Os Filhos da Madrugada: Adriana Molder

    "Tudo, não é? Devemos tudo. Se eu pensar nos meus pais...O meu pai, já não foi à guerra porque houve o 25 de Abril. Estava a fazer a tropa. Foi mobilizado, não chegou a ir. Naquele período começou a estudar - é autodidacta - sobre como fazer fotografia. Não tenho fotografias nenhumas de quando era pequena porque estava só concentrado nos livros de fotografia. Acho que aprendeu, também, com uma pessoa. Quando penso que sou uma mulher, artista. e vivo na Europa...Crescemos com isso garantido. Agora começamos a perceber que não é assim tão garantido. Isto é, cresci numa família onde nunca questionei se era uma mulher ou se era homem. Quis ser artista e ninguém me obrigou a ser outra coisa. Se tivesse nascido há 60 ou 70 anos, não era assim. Portanto, eu, acho que devemos todos imenso ao 25 de Abril."

              in Os Filhos da Madrugada, Anabela Mota Ribeiro, Temas e Debates, Novembro de 2021.

terça-feira, 29 de março de 2022

"Quando" de Rui Costa

Ah e quando. Quando o verde nos interessa 
e nós nos recusamos mas por dentro.
e ficamos assim a pensar se devíamos voltar, acontecer, 
escrever um livro todo branco. filosofar o tédio
com estilo, percebes,
introduzi-lo na vida de alguém.
ser um talvez na sala, digo quando,
mobilá-la de circunstâncias longuíssimas como
mãos a conhecer as estrelas tontas do champanhe e restos de mais
quando. e quando sair e deixar o mundo fingir que tudo está 
na mesma apesar de nós, e para quando é o regresso, os papéis,
a sabedoria profunda das essências e 
dos poemas carnívoros e nossos.
as cadeiras constroem-se com as mãos, disse, e foi 
a frase mais profunda que jamais se disse, e tu sentada en-
tão quando
in "A Nuvem Prateada das Pessoas Graves", Quasi Edições, Maio de 2005.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Dois Poemas de Naná da Ribeira

 Raízes

Os pés sobre as raízes
As raízes sustentam as árvores
O teu rosto repousa como um ramo
À beira-mar com o rumor da noite
Esqueço a sombra dos gestos deixados lá atrás
O tempo crepita nos relógios sem mácula ou vagar
Este frémito que invadiu a casa em silêncio
A dança dos meus braços em chamas
O verbo aguenta a lembrança deste instante
Dormindo, por fim, sossegado junto ao rochedo

Sorte

Quanto tempo nos resta para abraçar a noite?

Contar horas até ao deslindar da sorte
É certo que habitamos o temor e o fiasco
Somos portadores de uma ternura antiga
Escondemos a dor do destino que já foi
E transformamos em volúpia e aventura 
Esse fogo que nos contempla ao longe

sábado, 26 de março de 2022

"Projecto" de Rui Costa

Fernando comprou um livro de poesia com oitocentas páginas 
mas só conseguiu ler quinhentas 

António sonhou com o Evereste na magnitude 
mas só precisava de mudar uma lâmpada

Rita imaginou um poema para Fernando 
mas só tinha que aceitar o jantar de quinta 

A lâmpada pensou que era um poema 
e fundiu-se sem iluminar a sala

Luís aproveitou a escuridão da sala
para a Rita um poema com montanhas 

Trezentas páginas que nunca foram lidas
arquitectam com a lâmpada a salvação do mundo

in "A Nuvem Prateada das Pessoas Graves", Quasi Edições, Maio de 2005.

Hugo Pratt por Milo Manara

    

       "Então sim, se mudarmos o contexto histórico, ele era Corto Maltese. Era um homem de uma absoluta liberdade, sendo também capaz de pagar o custo da liberdade. O que podia passar por discutir com alguns editores ou com a mulher dele. Quando sentia que alguém estava a tentar impor-lhe alguma coisa, rebelava-se de imediato. Era um homem absolutamente ultra livre. Aquilo que gostava mais era da sua liberdade, acho. E depois considerava todo o mundo como uma possibilidade de descoberta, de viagem. A sua característica como autor sempre foi a de alguém que dava a conhecer civilizações diferentes. Era absolutamente antirracista, mas mesmo de coração. Tinha o antirracismo dentro dele. Tinha um respeito absoluto por todas as culturas: a africana, a chinesa, a tibetana, depois sobretudo a hebraica. Fascinavam-no mesmo. Escreveu e desenhou histórias passadas um pouco por todo o mundo. E mostra sempre um enorme respeito pelas culturas, seja de onde for. Também quando falava sobre a II Guerra Mundial, nunca havia condenações definitivas. Talvez as houvesse para os chefes, mas não para as personagens. Se a personagem era um soldado alemão, mostrava um respeito enorme. E todas as personagens eram problemáticas. Cada uma delas se perguntava se seria certo o que estava a fazer. Foi um autor maravilhoso, enorme. E, neste sentido, Hugo Pratt era mesmo Corto Maltese."

Milo Manara em entrevista a João Pacheco, Revista Expresso, 24 de Março de 2022.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Os Filhos da Madrugada: Leonor Teles

     "Até agora safei-me e acho que vou continuar a safar-me. Mas não tenho muita confiança em relação ao futuro. Os nossos políticos são o que são. As pessoas estão cada vez mais desligadas da vida política, muito mais preocupadas consigo mesmas e com a sua vida. Muito mais individualistas. Mesmo em questões em que devíamos pensar de um ponto de vista colectivo, não parecem interessadas nesse registo."

in "Os Filhos da Madrugada", Anabela Mota Ribeiro, Temas e Debates/Círculos de Leitores, Novembro de 2021. 

segunda-feira, 21 de março de 2022

sábado, 19 de março de 2022

"O Priolo" de João Miguel Fernandes Jorge

 No quarto sobre uma cómoda
o priolo embalsamado.
Penas de branco-sujo e creme, tons de 
castanho queimado. Protege-o
no vidro de uma redoma. Mesmo na morte
um frouxel.

Tudo se avista deste quarto - 
  santos e pagelas por detrás das portas
do oratório - quando a noite e a ilha se 
estreitam na cama desamada.
Vem um cheiro a maresia, a porões e os 
passos de quem percorre, erradio, o 

embarcadouro
sem saber a hora da partida 
a hora de quem prometeu chegar. E
o pássaro na obediência da morte
fixado nas trevas que lhe povoam o canto, vê
na fronteira do lá fora
membros, ossos, vísceras, os meus erros,

o verso meu dentro do quarto. Sob a asa do 
priolo, prata e luz a esvoaçar ao redor do
candeeiro entre os actos da vida. 

in "Lagoeiros", Relógio D´Água, Novembro de 2011.

JSM: A Mesa Continuará Posta!

         

          Há quase trinta anos, andava eu pelo cineclube Octopus, na Póvoa de Varzim, sempre muito orgulhosos da exibição de Pasolini's e Tarkovsky's, quando apareceu disponível o belíssimo "Caro Diário", do Nanni Moretti. Lembrei-me, portanto, de arriscarmos uma sessão diferente e convidarmos o Jorge Silva Melo para vir à Póvoa falar sobre o filme. Surpreendentemente, ele não só veio como passei a ser para ele “o poveiro”, denominação que usava quando me encontrava pelas ruas de Lisboa. Creio que o Nanni Moretti iria ter adorado ter estado presente pois foram tantos os que ainda hoje se lembram do entusiasmo tal como pela obsessão do italiano em filmar-se a si próprio durante meses.
        Ainda a propósito dessa sessão “morettiana” de longa data, recordo-me de passarmos a tarde a conversar na biblioteca municipal, que ele adorou, e ainda de vermos o mar no Diana Bar, antes desta se tornar biblioteca balnear. A partir daquele momento e, durante anos, devorei os textos que o Jorge Silva Melo ia publicando na imprensa escrita. Primeiro no Combate, depois no Público, também no e onde fosse que ele escrevesse. Julgo que li mais o Jorge Silva Melo do que qualquer escritor, poeta ou filósofo. O Jorge Silva Melo respirava paixão e erudição em todos os parágrafos e cheguei a ver algumas peças em salas de teatro deste nosso país que ele gostava tanto de andar em digressão. Era maravilhoso ouvi-lo e lê-lo discorrer sobre cinema, teatro, belas artes ou literatura. Agora que o Jorge Silva Melo desapareceu a mesa continuará posta para continuarmos a dialogar sob a forma de palavras escritas em papéis. 

segunda-feira, 14 de março de 2022

"Esmeraldas" de Jorge Sousa Braga

 De que secreta primavera 
serão as esmeraldas 
a memória?

in "O Poeta Nu" , edições Assírio & Alvim, Junho de 2007.

domingo, 13 de março de 2022

PDL 2027: Na Lista Final...

    «"Federando todo o arquipélago açoriano, do Corvo a Santa Maria, a proposta de Ponta Delgada tem como missão "fazer da cultura um catalizador de transformação e desenvolvimento, através de um investimento duradouro nos sectores turísticos, urbanos e sociais". Aumentar a visibilidade internacional dos Açores e o seu potencial como destino de turismo cultural são outras metas da candidatura."»

in Publico, 12 de Março de 2022.

Ontem, escrito numa parede da cidade

Esta humana idade que tarda

Verso dos Linda Martini

 Eu nem vi que eu sem ti sou só eu sem ti

sexta-feira, 11 de março de 2022

...

deixa o tempo fazer o resto
fechar as janelas 
aplacar os barcos
recolher os víveres
semear a sorte 
acender o fogo
esperar a ceia

abre as portas: lê a luz
a sombra, a arte do passarinheiro

com três paus
fazes uma canoa
com quatro tens um verso 
deixar o tempo fazer o resto 

Ana Paula Inácio, in Vago Pressentimento de Azul, Quasi Edições, Setembro de 2000.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Do Amor

          "O verbo amar é difícil de conjugar: o seu passado não é simples, o seu presente é apenas indicativo e o seu futuro continua condicional."                          
                                                                                                                         Jean Cocteau

terça-feira, 8 de março de 2022

Sonia Delaunay: O Sol do Século!


           Sonia Delaunay, com o nome de baptismo Sarah Stern, era natural de Gradizhsk, na Ucrânia.
Foi pintora, figurinista, designer e tinha trinta anos quando chegou a Vila do Conde, para viver entre 1915 e 1917, e, assim, escapar à primeira grande guerra. Esta habitou na cidade costeira portuguesa com o seu marido, Robert Delaunay, e o seu filho, Charles Delaunay, este último viria a tornar-se uma figura de proa do jazz francês e do seu Hot Club de France.
 Sonia Delaunay gostava do sol e das festas populares, adorava a luz do norte de Portugal. Amante da polivalência, da joalharia ao têxtil, celebrava através da arte o ritmo e as combinações cromáticas, cunhando essa energia e movimento de La Simultanée. Acredita-se que o casal de artistas, enquanto a Europa guerreava, enfrentou essa fase vilacondense de forma bastante produtiva, onde aproveitaram para criar em várias frentes em que estavam envolvidos, chegando a ser presos pelo equívoco simbólico das suas pinturas expostas no exterior da casa. A acusação postulava que estes comunicariam com os submarinos que passavam ao largo, no horizonte marítimo. 
Um século depois, a sua casa de Vila do Conde continua por lá, intacta. ainda que, triste e amarguradamente, ouvem-se de novo os tambores da guerra na terra materna de tão ilustre artista.

Da Vibração de uma Cidade...

     "Comecei por dar pelo desaparecimento no meu bairro, depois na Baixa, nas lojas que antigamente chamávamos "de revistas" e também nas livrarias que sobrevivem. Mas fora de Lisboa é igual ou pior. Em dezena e meia de cidades e vilas portuguesas tenho deambulado sem encontrar imprensa à venda, os quiosques exibem agora postais e canecas, as estações de comboios diminuíram radicalmente os títulos disponíveis, algumas bancas cortaram com a imprensa estrangeira, os fiéis morreram. explicam-me, e os jovens não têm esse hábito. 
    Há anos que uso a mesma frase quando me abasteço de jornais e revistas, sobretudo ao fim-de-semana ou em férias: "Se a imprensa acabar, a culpa não foi minha". Bem sei que dizer "imprensa" é limitativo, que há imprensa não-escrita, jornais digitais. Bem sei. Mas eu pertenço à última geração para quem comprar jornais em papel, e ler jornais, ficar a ler os jornais durante um bom tempo, é uma evidência e uma necessidade. Ler jornais, para mim, é uma actividade urbana, indestrinçável dos cafés e esplanadas, dos encontros e das conversas, do bulício, da vibração de uma cidade."

Pedro Mexia in Quiosques, Revista Expressso, 4 de Março de 2022.

Os FIlhos da Madrugada: Constança Freire e Sousa

        "Votar pela primeira vez foi maravilhoso! A sensação era a de que agora era crescida e tinha uma responsabilidade. Como qualquer forma de liberdade, seja de expressão ou outra, vem um sentido de responsabilidade. Faço a minha minicampanha nas minhas minirredes sociais, que têm um impacto ridículo (são os meus amigos e são pessoas que estão espalhadas pelo mundo). Empenho-me. Apelando ao voto. Não é um direito, votar é um dever. Custou tanto a ganhar. Foi tão difícil chegarmos ao ponto ao qual chegámos, desde a ditadura e o 25 de Abril...Até o facto de eu ser mulher, não ser a cabeça do casal, ou a cabeça de uma família..."

in OS Filhos da Madrugada, Anabela Mota Ribeiro, Temas e Debates e Círculo de Leitores, Novembro de 2021. 

segunda-feira, 7 de março de 2022

"Nirvana" de Antero de Quental

Viver assim: sem ciúmes, sem saudades,
Sem amor, sem anseios, sem carinhos,
Livre de angústias e felicidades,
Deixando pelo chão rosas e espinhos;
 
Poder viver em todas as idades;
Poder andar por todos os caminhos;
Indiferente ao bem e às falsidades,
Confundindo chacais e passarinhos;
 
Passear pela terra, e achar tristonho
Tudo que em torno se vê, nela espalhado;
A vida olhar como através de um sonho;
 
Chegar onde eu cheguei, subir à altura
Onde agora me encontro - é ter chegado
Aos extremos da Paz e da Ventura
!

quinta-feira, 3 de março de 2022

"Viagem" de Mia Couto

 O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre o céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
da minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma
 
Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos