quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Uma Missiva na Queda de Novembro.


Caro Doutor Mara,
         
     Espero que esta carta o encontre no máximo das suas capacidades físicas e mentais, e na habitual desordem provocada do seu pensamento futurista. Espero igualmente que o preço dos filetes de peixe esteja mais acessível do que da última vez, pois sei que é um verdadeiro apreciador.
       Para além de notas soltas da minha diária contemplação do maciço dos Alpes, e da permanente observação de fenómenos extra-planetários, nada teria para lhe contar, não fora a circunstância inesperada de me ter encontrado com Vivaldo Manaia, o mais Italiano dos Manaias, e que surpreendentemente reside muito perto do meu humilde habitáculo. O doutor Mara não imagina, nem lhe consigo descrever por palavras, a satisfação que foi poder conhecer o mais profícuo dos Manaias de S. Miguel, o mais internacional e consagrado elemento do clã, no seu habitat artificial. Tudo aconteceu numa tarde em que fotografava fenómenos espontâneos de situações que acontecem simultaneamente, numa rua movimentada de Milão, quando me deparo com um homem;
Gordo, de olhos castanhos, carão rechonchudo,
Mal servido de pés, também em altura,
Estragado de facha, pior de figura,
Nariz gordo no meio, olhar sisudo
         
        Ali estava Vivaldo Manaia, a antítese viva de Bocage, a apanhar o eléctrico nº 14 para o Duomo, com três cães, um grande, um pequeno e um outro que não era grande nem pequeno, e nem sei se seria um cão. Reconheci-o à distância a que se reconhecem os grandes homens, sem que eles nos reconheçam a nós.  Apressei-me para apanhar o mesmo eléctrico, e engendrava uma forma de poder registar aquele momento e conseguir algumas palavras do grande mestre Manaia. Sentei-me à frente do cão maior, que me fitava enquanto mostrava lateralmente a sua potente cremalheira pronta a afiar em caso de necessidade. Mantive-me calmo. Já com os olhos postos no chão conspurcado da carruagem, desprovido de argumentação, oiço: “Você não é o Janeiro Alves?”. Imagine, doutor Mara!
        Disse-me que me conhecia, mas que não podia dizer de onde nem porquê. Saímos e fomos beber uma garrafa de vinho Lombardo a um botequim da cidade, e discutir assuntos mundanos. Mas eis que no meio de divagações de menor relevância, o nosso ilustre Manaia me comunica que pretendia desvendar-me as linhas gerais do seu plano magistral, assunto de extrema importância para Portugal, um projecto de uma amplitude paranormal que iria definitivamente alterar o cenário nacional. Um plano para a crise, e portanto, para dizimar, com ou sem aspas, o velcro governativo que nos dirige. E nós sabemos do que os Manaias são capazes, doutor Mara, nós sabemos... Mas porque há momentos em que sucedem coisas indetectáveis em tempo útil, eis que a meio de um brinde, e em profunda ansiedade de querer saber mais, o cão que não era pequeno nem grande se atira a mim e me provoca ferimentos de alguma gravidade. Fui transportado para o hospital de urgência. O médico que me acordou no dia seguinte, esclareceu-me tudo. Fui atacado por um papagalo, uma espécie da floresta negra alemã, cruzamento entre um cão, um furão e uma cabra, e conhecido naquela zona alemã por comer galos inteiros à dentada. E assim terminou o meu triste encontro com Vivaldo Manaia.
       Mas a razão desta carta guardo-a para o fim. No bolso do meu casaco verde de veludo, ainda marcado de sangue e dentes caninos, encontrei um bilhete. “Caro Janeiro Alves, peço-lhe desculpa pelo sucedido. Saberá a breve trecho todos os detalhes do meu plano por intermédio do Doutor Mara...”
 Um fraterno abraço,
Janeiro Alves