terça-feira, 26 de maio de 2015

Amor Populi

eu te amo no que é fado e no que é sorte
na guitarra doente e na viola da morte 
no turismo repleto de teu fúnebre elogio
desde Vilar Formoso à merda do Rossio

na Europa que te esmaga na América que te humilha 
amo-te como se ama uma puta de filha 
amo-te no teu nojo de busca de fartura 
como o gato que é gato ama a serradura.

José Martins Garcia in feldegato cantabile, Paisagem Editora.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Um Postal Portuário para Janeiro Alves

Caro Janeiro Alves,

Agora que a temperatura subiu, espero encontrar o meu amigo de exponencial saúde na antiga capital do império. Soube que a sua indumentária não tem passado de calções a meio da perna, a condizer com o porte médio e magro da sua pessoa. Por aqui, tenho usado uns calções até aos joelhos, no sentido de evitar zonas claras ou puxar os calções demasiado para cima. É verdade, não tenho intenções de mostrar muito a barriga aos passeantes da marina em que me encontro.

       Os dias de Maio têm sido de uma felicidade incomensurável e devido a essa razão não tenho escrito com a regularidade esperada. O meu caro amigo não vai acreditar mas depois de uma curta experiência enquanto skipper, acabei de comprar um Ferretti, apenas 150 mil euros em segunda mão. Não sei se sabe mas este foi considerado melhor veleiro italiano, em 1981. Tenciono viajar no início de Junho pelo velho continente, já reservei lugar nos portos de Fowley, Falmouth, Blackenberger, Zeebruge e Amsterdam. 

De um porto atlântico, um forte e sentido abraço.

Professor Doutor 
Mara  

domingo, 24 de maio de 2015

O Apelo do Barqueiro

   

    Uma noite apenas para terminar um longo texto que já devia estar concluído há muito tempo.Às voltas pelos lugares do costume à procura de inspiração e…nada. Remexer em diferentes memórias e palavras que culminassem aquele desvairado parágrafo e mesmo assim adiar a decisão de escrever. Escrever é tão complicado como mergulhar no mar em dias de muito vento. Às voltas com o texto por quanto tempo mais? E eis que irrompe uma canção do álbum Boatman´s Call, a faixa“Far For Me”, do Nick Cave, com os versos:"You who are so far from me/ Far from me/ So far from me/ Way across some cold neurotic sea/ Far from me.” Aleluia.  

sábado, 23 de maio de 2015

Toda a Maravilha do Mundo

É como tu dizes, devia de novo partir.
Nunca fui feliz numa casa.
Nunca fui feliz em família.
Nunca senti saudades, quando estava
só e distante. Toda a maravilha
do mundo para mim era o passeio
alto sobre o mar quando, com os livros da escola
numa pasta, com passo rápido
andava, e inspirava o vento
da cor do sal e das piteiras
e fingia dar a mão
a uma rapariga: a maravilha, a raça
forte dos sonhos, os livros, o cinema,
as longas viagens de comboio,
as longas travessias da alma
mas nunca as paredes de uma casa, nunca.

Giuseppe Conte, traduzido do italiano por Clara Rowland in No Cais da Poesia 2, Antologia, Organização de Manuela Júdice, Teorema, 2006, pág. 59.

...das Ilhas.

Fazendo nº26
1.Descia, por isso, as vezes que fossem necessárias, até restaurante para o jantar, parar junto à escotilha da porta de madeira, esperar, pouco tempo depois dos velejadores desenharem os seus símbolos pintados nas paredes enquanto os pescadores se sentavam no muro da marina a desejar mais tempo e mais certezas para regressar à vida ou ao torpor de existir, seguido da faina e do mar e do barulho intenso dos jovens cagarros. Terá sido certamente por essa altura, o primeiro contacto com este jornal, uma fotografia de capa com peixes na lota à venda, a leitura deste em modo solitário nas mesas vazias com as estantes carregadas de livro, enquanto o Emídio no interior da cozinha (em labuta e na luta com os boca negras, cântaros ou imperadores) o barulho dos tachos, ainda a canção da Anna Järvinen a pedir um regresso a casa em “Kom Hem”, o retiro solitário em forma de conforto da suite do hotel com os nome de verde e de mar. O silêncio.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Da Voz das Cigarras e do Estio

Selah Sue 
    O Verão de calendário ainda não entrou mas há canções que já  tocam no interior da felicidade secreta dos dias largos. É esse o caminho mais estreito do intersticial porto por onde entram os barcos mais afoitos desta maré que queremos alta e tardia.Ao mesmo tempo que se pode simular um concerto caseiro, com os frutos frescos sobre a mesa da cozinha e aquela voz que nos acompanha na preparação feliz de refeições. É, sem dúvida, um pequeno abrigo este cântico sincero e singelo que abrange todo o universo dos momentos fugazes e das coisas simples, como se estivessem os dias inteiros à procura destes pequenos aconchegos no recôndito das casas e dos quartos. E, por isso, sabe tão bem que apetece ficar aqui e ali com os braços pousados sobre a mesa, deitar por terra os corações cansados e rendidos, perante tão bonita comoção e timbre. Ela chama-se Selah Sue e é de origem belga. O verão chegará e nada melhor do que antes ouvir "Summertime", ainda que tenhamos a certeza que o sonho adolescente tenha um bilhete de volta.   

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Um Chá no Deserto de Bernando Bertolucci

The Sheltering Sky de
Bernardo Bertolucci (1990)

    The Sheltering Sky é um filme que passou com o título “Um Chá no Deserto” nos écrans portugueses faz agora 25 anos. Curioso título que obteve na língua portuguesa nomes bem diferentes (os brasileiros adotaram para a tela o título O Céu que nos Protege e, nós, em Portugal, optámos por Um Chá no Deserto, por sinal diferente da edição em livro). O filme do realizador italiano, Bernardo Bertolucci, conta no elenco com a actriz Debra Winger e o actor John Malkovich, enquanto personagens principais, data de 1990 e é baseado no romance com título homónimo, sendo necessário ouvir com toda a atenção a banda sonora de Ryuichi Sakamoto. O escritor Paul Bowles entra também no filme, narrando excertos da própria obra:
 "-Estás perdida?
-Sim.
-Como não sabemos quando vamos morrer, acreditamos que a vida é um poço sem fundo.No entanto, tudo acontece apenas um determinado número de vezes, não muitas. Muitas vezes vem-nos à memória uma certa tarde da infância, uma tarde que nos marcará para resto da vida, uma tarde que é tão importante que não podemos imaginar a nossa vida sem ela. Talvez quatro ou cinco vezes, nem isso.E quantos vezes contemplámos a lua cheia? Talvez vinte. E mesmo assim, aos nossos olhos, tudo nos parece ilimitado."

Um Postal de Primaveril de Janeiro Alves

      Um estranho nevoeiro ou neblina matinal levita sobre a cidade, que parece amorfa, parada à espera de uma qualquer catástrofe. As pessoas arrastam-se suportando o peso de algo indecifrável às costas, de um fado que hoje se revela enfadonho e denso como lava pastosa a descer as encostas de um vulcão. De olhos semi-cerrados cumprimentam-se com um pesaroso levantar de mão, respirando com dificuldade o ar conspurcado pelas partículas de calor febril. Algumas aproveitam hoje para morrer, outras persistirão para amanhã. Em algumas se vê o sofrimento latente resultante deste manto acinzentado, enquanto que outras fingem que tudo se desenrola dentro da normalidade. Há pessoas a definhar nos bancos de jardim, e há pessoas assistidas de emergência por máquinas de refrescar as ideias. Algumas correm para o abismo dos seus ofícios, enquanto que outras discutem a situação actual nos cafés da cidade. Há pessoas para tudo. Até para escrever sobre isto, como este seu amigo,

Janeiro Alves

sábado, 2 de maio de 2015

"Baleias e Baleeiros" de Luís Bicudo

Douta Melancolia:Este filme circulou bastante pelo arquipélago dos Açores. Qual foi a recepção das pessoas ao teu "Baleias e Baleeiros”?
Luís Bicudo:Infelizmente, e por falta de recursos, o filme não circulou tanto quanto eu queria. Teve estreia em New Bedford e Lisboa; e nos Açores passou pelas Lajes do Pico, Horta, Angra do Heroísmo e Ponta Delgada. A minha vontade é fazer com que o filme seja visto em todas as ilhas dos Açores, e estou a trabalhar para esse fim. Como era de esperar, as reações mais exuberantes deram-se nas ilhas do Faial e do Pico, com casas cheias e muita animação, não só porque foram as ilhas onde o projeto foi filmado, mas principalmente por serem as ilhas onde a cultura baleeira está mais viva e presente, logo, é natural que as pessoas estejam mais abertas a este tema. No Museu dos Baleeiros, no Pico, a sessão foi bastante singular. O auditório estava cheio e havia muitas pessoas sentadas no chão, que não deixaram que as dores nas costas perturbassem o visionamento do filme. Mas o mais engraçado foi a forma como este público o recebeu: ao mesmo tempo que eu partilhava o filme com eles, eles comentavam entre si as histórias dos baleeiros e reagiam à histeria das regatas, sem nunca perderem o fio à meada e sem perturbarem o resto da sala. Foi uma experiência diferente mas muito gratificante, sinto que naquele dia dei um “presente” àquelas pessoas. Com isto, não quero dizer que não é importante passar o filme no resto do arquipélago, muito pelo contrário. A baleação foi transversal às 9 ilhas e é importante recordar esses momentos, que foram, e de certa forma ainda são, aspectos culturais identitários da região. Como sabemos, apesar das diferenças culturais e sociais entre as várias ilhas, - como dizia Rui Veloso - muito mais é o que nos une do que aquilo que nos separa.
DM: Quem assiste ao teu filme conclui que soubeste reunir a família da baleação açoriana em torno deste tesouro oral e documental, ainda que se sente que não quiseste enquadrá-lo numa perspetiva teórica, histórica ou antropológica. Tens noção, dados os pontos de vista contraditórios presentes no filme, que fizeste um filme pouco académico ou científico, se assim o quiseres?
LB:É possível que o meu trabalho seja enquadrado antropologicamente a seu tempo, pois os relatos valem por si só e os baleeiros estão mencionados com os seus nomes, locais e datas de nascimento nos créditos finais. Mas eu não sou um cientista, eu procuro o contraditório. A multiplicidade de pontos de vista é muito mais enriquecedora do que um filme que tenta provar seja o que for. Neste filme não existe nada a provar, nem ninguém a quem é preciso convencer. O que se procurou na montagem, foi usar os relatos que transmitem mais emoção, não a emoção no sentido sensacionalista do termo, mas no sentido em que nos aproxima mais de cada pessoa filmada e se dá a possibilidade de responder de uma forma sensorial à questão: o que é que os define de uma forma mais profunda? Nenhum cientista consegue responder a esta questão, porque não existe uma resposta. Existirá uma empatia humana? Uma percepção cinematográfica? Eu não sei, nem tenho capacidade de me expressar em palavras sobre isto, mas que sinto alguma coisa de muito profundo quando oiço e vejo o Manuel de Simas a contar daquela vez que trancou e matou uma baleia de 21 metros, lá isso sinto.

Saudades

"Quem parte saudades leva; quem fica saudades tem."
Provérbio Popular