terça-feira, 2 de agosto de 2016

Telegrama para Janeiro Alves no Forno de Agosto

               Caro amigo Janeiro Alves,

            Fiquei perplexo e com os pulsos fistréticos após a leitura da sua missiva no jorro de Julho. Não sei se conseguirei entrar com os pés juntos no mês de Agosto dado ter entrado em pânico ao ver que finalmente alguém o chamou para se apresentar num interrogatório do palácio governamental em Lisboa. Nada a temer. O amigo Janeiro vai desculpar-me, mas todos nós necessitamos dos seus conhecimentos humanos e das suas mais recentes descobertas científicas ao serviço da humanidade. Não se apoquente, precisamos muito de si, meu caro, e eles devem saber exactamente o que pretendem. Aproveite para dar a conhecer a essa juventude, sem ponta de respeito ou liberdade, os seus deliciosos pantagruélicos filetes de peixe porco.  Não sei se sabe, mas eu tive também que responder à Polícia dos Costumes e da Tirania do Progresso do porquê de ainda não ter aberto qualquer conta no facebook ou o motivo por que é que não vejo televisão há sete anos ou ainda a razão de não ter curiosidade por atentados auto-sacrificiais ou mesmo dar qualquer importância à secção de Classificados de Carne Humana do Correio da Manhã e, em último caso, o facto de só me interessar pelas vitórias de Portugal no Campeonato da Europa, tendo em vista o objectivo de me deixarem virar discos durante seis horas numa taberna com bar aberto.
À semelhança do amigo Janeiro, também eu tenho a casa escoltada, mas por outras razões. É que decidi acolher em meus aposentos a minha querida amiga de origem sueca (o pai é da Nicarágua, a mãe é de Lund), a belíssima Pipi Halstroom, uma estrela emergente da Sociologia Moderna e que não pára de citar Emile Durkheim pela manhã, Karl Marx pela tardinha e Slavoj Zizék, após duas garrafas de maduro tinto. Caso o Janeiro Alves ainda não o tenha pressentido, ela é perita em turistificação e gentrificação. Incansável e focada no seu métier, encontra-se neste momento a criar sinergias com a comunidade local no sentido de travar o capitalismo de saque que quer, recentemente e a qualquer preço, transformar os centros históricos em autênticas salas de partidas e chegadas. Desconfio que mais tarde ou mais cedo seremos convidados pelos turistas a tirar fotografias para exemplificar como era a vida nas velhas ruas ou sítios abandonados antes de tudo isto ter acontecido. Até lá, aproveito para lhe enviar uma caixinha de mirtilos para que desfrute deste Estio sem pensar muito na selvajaria económica que tomou conta do nosso presente e das últimas poupanças.

Com estima e consideração,
Doutor Mara

Dramaturgos Profissionais; Dramaturgos amadores

     
Charlas Quotidianas do Doutor Mara
O tema é, entre nós, quase irrisório. Há aí alguém que se possa gabar-se de ser dramaturgo profissional? Entenda-se, no entanto, que não é minha intenção trasladar para a nossa pobre dramaturgia o problema desde há certo tempo debatido nos jornais desportivos acerca do nosso luxuriante futebol. O caso é outro. Entendamos por profissional o dramaturgo que entrega regularmente à confecção de peças que são representadas e lhe trazem proventos. Dramaturgo amador será o outro, o que trabalha por um imperativo interior e, por consequência, irregularmente, e que ignora, quando escreve, qual o destino da sua obra.
              É evidente que muitas das vantagens, se não todas, estão do lado primeiro. Sem dúvida que o cultivo aturado de uma profissão – que bem pode ser uma arte – faz que se vão descobrindo os segredos dela, e que horizontes mais vastos se vão rasgando. Notemos, no entanto, que tal aprofundamento e tal alargamento são especificamente do métier. Quero dizer: se em toda a arte há uma técnica própria e um conteúdo humano (evidentemente que o conteúdo artístico é imprescindível, sem o que não poderíamos falar em arte), a continuidade no exercício dela só pode, ou pode principalmente, assegurar ao artista o domínio dos meios técnicos de a exercer.
                Mas a dramaturgia vislumbra-se, através de problemas técnicos, problemas humanos. Não parece que a obrigatoriedade de fornecer empresas, o empenho de corresponder ao agrado do público, a luta pela conquista do êxito sejam elementos exaltadores da sensibilidade artística. O profissionalismo, assim concebido, pode criar inibições no espírito do dramaturgo. A arte de escrever peças é das que mais directamente estão sujeitas à aceitação do público que as paga para as ver e ouvir. Mais do que nenhuma outra dependente do tempo e das oscilações do gosto, não há nela margem para a reflexão que corrige as injustiças e reconhece obras primas em produções que passaram despercebidas aos serem pela primeira vez apresentadas.

João Pedro Andrade in "Reflexões sobre o Teatro Português" com  Introdução e ordenação de textos de Maria Helena Serôdio.