sábado, 31 de março de 2018

Do Cinema Português

           
         "Não há dúvida que no cinema português dos anos 2000, alojado no coração da sua vitalidade produtiva e em alguns dos seus sucessos internacionais, vislumbramos os riscos de uma academismo daquilo que foi anteriormente, praticado por cineastas  muito conscientes do valor das exigências formais herdadas, hábeis no seu artesanato, e assim, portadores de um saber incontestável, também ele herdado. 
          No entanto, como o mostra o filme de Pedro Pinho A Fábrica do Nada, concluído na Primavera de 2017 e apoiado na inspiração e trabalho colectivo dos seus amigos da produtora TerraTreme, estas qualidades adquiridas (exigência formal, habilidade e saber de artesãos) podem ser convocadas por uma sinceridade criadora perante o risco de academismo, de modo a indicarem então a via de uma contra-tendência."


Jacques Lemière in  O Cinema Português em Écran Panorâmico, revista Electra, Março 2018.

quinta-feira, 29 de março de 2018

No teu amor por mim há uma rua que começa*

Fotografia de Carlos Olyveira
Vale a pena dessacralizar a poesia, mesmo quando é substituída pelos acordes do momento, acreditar que esta possa viajar em redor dos territórios mais inverosímeis da ilha, à semelhança do Tremor da passada semana, que é comentada, partilhada nos quartos, nos cafés, nas ruas, nas repartições, nas escolas, nos parlamentos e que é dita por cabeças pensantes, algumas tensas, outras esclarecidas e, até mesmo, as mais emotivas.
Houve, entretanto, na semana que passou, o Dia Mundial da Poesia com honras de poetas ditos e celebrados. Recentemente teve também lugar o Dia Mundial do Teatro e,  por aqui, houve quem  se atrevesse a encher a boca de baboseiras e continue a alimentar projectos megalómanos e afins, quando é tão raro vê-lo ou até mesmo fazê-lo. O Teatro é para ser feito! Não tem eco nem bandeira, os jornais e políticos pouco ou nada dão conta deste doloroso e apagado desinteresse. Por isso, relevante é continuar dizendo (e não declamando, que palavra horrorosa!) poemas nesta noite primaveril com a concentração sobre os livros pousados nas mesas de madeira desse pequeno estabelecimento com tradição de leitura poética. A rua onde isto se passa tem nome de antiga capital do reino, agora democracia europeia. Ou, então, soltar o ar do tempo nesta pausa pascal para simplesmente saber da vida, deleitar-se com as estrelas cadentes e fruir o esplendoroso luar de Março, pois o sol, sim esse astro luminoso, é garantidamente de Medeiros/Lucas.

*Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates".

quarta-feira, 28 de março de 2018

Tremor: Aguardemos 2019!


      Terminou a quinta edição do Tremor. E culminou no Arco 8 da melhor forma na alta madrugada de sábado o dia mais marcante deste acontecimento musical. Ao longo da semana já tinha havido os concertos surpresa do "Tremor na Estufa" e demais iniciativas espalhadas pelos mais variados lugares de Ponta Delgada e da Ilha de São Miguel. E o que nos apraz dizer deste evento? Os mais que merecidos parabéns e felicitações à organização e um desmedido obrigado aos músicos pelos concertos proporcionados. Ficam também outras propostas, tais como a exposição "Narcisismo das Pequenas Diferenças", de Pauliana Pimentel, o retrato duma juventude segundo a origem e o contexto social, ainda que sem pontes de contacto, a ver na Galeria Fonseca e Macedo ou ainda o filme “Levantados do Chão”, de Daniel Blaufucks, que nos comove pelo abandono do Hotel Monte Palace e o gesto soturno e delicado da Banda da Lira das Sete Cidades. Dos benignos e memoráveis momentos guardar-se-á tantos e diferenciados e, por isso, registe-se assim o concerto dos "10 mil russos" no Túnel das Sete Cidades, numa deriva sonora misturada  com a beleza da paisagem, ainda a cantora Baby Dee, na sua entrega solitária e encantatória, no Auditório Camões, ou os Snapped Ankles, num revivalismo electrónico e dançante, no belíssimo Teatro Ribeiragrandense. E...foi tão bom que custa pensar que só regressa no ano que vem.

sexta-feira, 23 de março de 2018

quarta-feira, 21 de março de 2018

Tremor: O Quinto já cá está!

Ontem começou o Tremor. É já a quinta edição. O primeiro dia teve lugar no Teatro Micaelense com a apresentação do festival pela organização, entidades públicas e demais promotores. A sala encontrava-se cheia de residentes e forasteiros para ver “Levantados do Chão”, esta primeira proposta realizou-se sob o signo do cinema e da música, onde vimos o fotógrafo Daniel Blaufucks juntar-se à Banda Lira das Sete Cidades para (des) alinhar a imagem mais o som na despedida do Hotel Monte Palace nas Sete Cidades. O autor não quis denominar de filme, ainda bem, pois as ditas “fotografias expandidas” valem pela ideia da ruína dum tempo em que só a natureza o altera. Os textos presentes nos créditos finais enunciam, portanto, uma visão do mundo que permanece e que, passados tantos séculos depois do povoamento, nada parece ter realmente mudado. As ruínas, a paisagem, o esmaecer das cores daquele edifício confirmam um "fazedor de imagens" de olhos bem abertos e ouvidos à escuta. Ali, sim, é a natureza que nos invade. No entanto, a duração deste propósito revelado pareceu-nos longo quanto à sua duração bem como a imagem assíncrona da banda com a imagem nem sempre resulte. Na parte de cima do teatro, retomar-se-ia a mistura com os músicos Rafael Carvalho, mestre na viola de dois corações, e Flip, amante dos sons electrónicos e experimentador, a esgrimir argumentos num diálogo sonoro imprevisto, evidenciando uma postura ambiciosa para uma proposta embrionária que ainda pode vir a dar frutos.
Por último, no já mítico Auditório Camões, o concerto dos regressados Três Tristes Tigres para dar conta do seu rock electrónico, com pendor na guitarra de Alexandre Soares (que garra e energia voltar a escutá-lo!) e a voz de Ana Deus, a relembrar temas de “Partes Sensíveis” (1993), “Guia Espiritual” (1996), "Comum" (1998) e "Visita de Estudo" (2001). Do álbum “Partes Sensíveis” recordaram-se canções como “Letra Morta” ou “Descapotável”, de “Comum” houve “Combat” ou “Motim” e ainda “Anormal”, “Kainever”, “Olho da Rua”, do álbum Guia Espiritual, onde não existiu lugar para o popular “Zap Canal”.
Hoje, quarta-feira, o tremor musical continuará, ao todo são cinco dias e trinta e nove concertos espalhados pelos sítios mais inusitados e inesperados desta ilha no meio do Atlântico. 

terça-feira, 20 de março de 2018

Uma Carta Surpreendente de Janeiro Alves para JB Malaca

Caro JB Malaca,
Depois de algumas noites sem dormir e gastos imprevistos em fármacos (ainda não é desta que troco de esquentador), decidi pôr fim à amplificação deste equívoco, que de tão caricato parece um neo-surrealismo abstracto. É realmente lamentável que sendo o meu amigo Malaca uma pessoa tão informada, não tenha ainda discorrido sobre a razão deste estrutural lapso. Farei por elucidá-lo, hoje que acordei imperturbado. Faça o favor de me seguir.
Não querendo pôr em causa a dignidade do meu caro amigo Doutor Mara, nem tampouco levantar falsos testemunhos, o que é facto é que essa sua conhecida mania de deambular pela cidade sempre com o seu sobretudo atestado de manuscritos importantes misturados com contas para pagar, o borda d’água, um ou outro paliteiro e papelinhos de embrulhar caramelos, um dia tinha de resultar mal. Como seria de esperar, houve uma tarde em que por força das recentes intempéries insulares, tudo voou dos bolsos desse admirável, e se espalhou num bailado literário às portas da Igreja do Colégio. Parecia a imagem de um milagre, que rapidamente se transmutou em catástrofe. De entre os documentos que foram parar a mãos erradas constavam as mais recentes cartas trocadas entre nós. Quis o destino malfadado, esse inferno de mil pragas, que as cartas se colassem às mãos da famigerada dupla FN e PG, que se apropriou indevidamente das mesmas em benefício próprio, com o intuito de capitalizar prestígio em insigne circuito intelectual. Mas isto não fica por aqui. Ao saber da circunstância da publicação de duas das nossas cartas em certa revista literária, contactei a respectiva direcção para reclamar da fraude. Riram-se categoricamente, afirmando de forma não menos categórica que eu e o Doutor Mara habitávamos apenas no campo da ficção. Eu que em carne e osso lhes falava ao telefone, não existia! Veja ao que isto chegou, caro JB. Neste momento a dupla FN e PG está incontactável e em parte incerta, e nós nada podemos fazer, pois não existindo não dispomos de personalidade jurídica.
Por fim, não posso deixar de referir que a sua carta dirigida a Doutor Mara é um tanto ou quanto paradoxal. Se por um lado ela faz a apologia da discrição sobre o assunto para bem dos intervenientes, por outro cultiva a polémica de forma inadvertida e precipitada. Quando a poeira assentava já novamente no tapete, o meu caro amigo volta a sacudi-lo. Meu caro JB Malaca, permita-me a seguinte interrogação: Quais são as suas verdadeiras intenções?

Com o devido respeito e amizade,
Janeiro Alves (o próprio)

Um poema de Vítor Baluarte


(Versos do canto da Rua D´Agoa)
A terra dá
a quem veio do mar
mais do que lugar
pés realmente assentes
a homens valentes
que vem descansar

a terra dá
a quem caiu do céu
suave impacto
fazendo com o chão pacto
de aqui caído pertencer

 a terra dá
de volta ao corpo o corpo
que na terra jaz morto
acolhedor  porto
de mar coveiro que produz
sepultura submissa a cruz

a terra dá
e tira a quem
em mãos tinha terra
e de terra se viu sem
desta terra de ninguém

sábado, 17 de março de 2018

Sala de Embarque: Um ano Depois!

              Irá fazer agora um ano em que nos propusemos apresentar a peça Sala de Embarque no palco do Teatro Micaelense. A experiência, a todos os títulos intensa, tornou-se profícua e favorável para a aprendizagem dos intervenientes no processo, deixando em todos nós um travo de saudade e melancolia. A partir das três apresentações iniciais na Galeria Arco 8 e, com o convite do Teatro Micaelense, fomos encarando aquele desafio como uma caminhada conjunta a que nos aventuramos em alcançar. A nós juntar-se-ia a actriz Lígia Soares que se tornou cúmplice duma encenação mais física e ousada, que o digam João Malaquias,  Henrique Santos, Margarida Benevides e Joana Matos que comprovariam um trabalho contínuo, dedicado e bastante esforçado. Nos bastidores conseguimos contributos preciosos na comunicação e grafismo da Júlia Garcia, as fotografias do Carlos Olyveira, a luz e o som do Diogo Fonseca, os cenários de Ana Lúcia Figueiredo e André Almeida e, ainda que com menor incidência, o apoio dramatúrgico do Miguel Castro Caldas. Agora, quando olhámos para trás, constatamos que tudo isto deveu-se a um trabalho de equipa com  abnegação e consistência, para lá da solidez das ideias teatrais a que nos esforçamos em transmitir.
“Aproveita enquanto andamos por aqui”, dizia-me muitas vezes a Joana Matos, para convencer-nos que a viagem se encontrava no início e que deveríamos aproveitar aquele momento. Ainda hoje nos interpelamos porque fizémos uma única vez no palco do teatro, dado que era grande o investimento e entusiasmo por representar naquele palco. E depois de termos esgotado a capacidade da sala e terem ainda disponibilizado mais dezassete lugares para quem quisesse assistir, ficou-nos por ali uma leve insatisfação e uma alguma tristeza ou incompletude no resultado final. No entanto, sentimo-nos agradecidos a todos os que se empenharam com a nossa passagem pela sala do Teatro Micaelense.
E para quando uma digressão pela ilha? A pergunta de tantas vezes repetida que algum tempo depois decidimos colocar mãos à obra. E, dada a proximidade das festas e do verão, deparámo-nos com várias dificuldade em levar a peça ao Teatro Ribeiragrandense pois houve sempre incompatibilidade com datas e disponibilidade do elenco. Conseguiríamos depois apresentar em sessão dedicada às escolas e, com a colaboração dos finalistas do secundário, no auditório escola de Vila Franca do Campo. E ainda pouco tempo antes das férias, acampámos no formidável “Cineteatro Lagoense Francisco D´Amaral Almeida”, na cidade da Lagoa, com direito a vários dias em cima do palco para ensaios e trabalho de luz e som com o Cristóvão Ferreira, numa experiência que resultou aprimorada e harmoniosa como se constatou no trabalho final. Curiosamente, reconhecemos hoje que esta terá sido a nossa melhor apresentação das seis efectuadas.
Em suma, um ano depois, fica a evocação e  memória teatral pois façamos jus e força para que outras e novas aventuras teatrais surjam no horizonte. Assim haja oportunidade.

Antes da Ordem do Dia

Deveríamos concentrar-nos na escrita
ou então proferi-lo oralmente
sobre aquilo que aqui hoje nos trouxe
já foi simplesmente apelidado de inconsequente
sobretudo déja vu
(perdoem os franceses pelo anacronismo do termo)
E se fossem todos dar uma volta ao bilhar grande
ou confirmarem a minha presença na esquina
é que não me contenho de descontentamento
lavem os dentes ou remetam-se ao silêncio
é tudo o que me ocorre  neste instante

sexta-feira, 16 de março de 2018

(...)

"As autoridades marítimas investigam o misterioso desaparecimento da linha
do horizonte ao longo de toda a costa atlântica."


Jorge Sousa Braga, in "A Greve dos Controladores de Voo" (1994). 

quinta-feira, 15 de março de 2018

Sol de Março de Medeiros/Lucas

O novo álbum de Medeiros/Lucas.

No Way Back

“Como sair daqui?” Perguntas bem, amigo.
Diógenes diria “à catanada, vivamente”,
Lichtenberg “à gargalhada”, se o conheço.
Thomas Bernhard proporia “num rectângulo
de tábuas” e Machado que o caminho de saída
se descobre ao caminhar. Beckett é provável
que dissesse “rastejando”.
Diderot aventaria
“pela rua do liceu”, Tcheckov “pela viela
mais escura, à tua esquerda”. Séneca diria,
muito sonso, “pelo passeio das Virtudes”,
Vaneigem “pelo jardim das Belas-Artes”.
Bashô responderia (e eu com ele) “é muito cedo,
fica mais um pouco, ainda há vinho na garrafa”.

José Miguel Silva, in “Walkmen”.

terça-feira, 13 de março de 2018

Arco 8: Pista para um Dj Mara (do)


A música está no sangue, o seu vigor, encanto, energia e ritmo. Ouvi-la, querer partilhá-la com os outros. Outros românticos que cultivam o gozo, a seiva, o prazer pelos sons, instrumentos e vozes. São sons diversos, palavras e ritmos oriundos de geografias, por vezes próximas, outras bem remotas. Música com ânimo, génio e gente dentro. Respira-se, por instantes, a fúria dos desalinhados, a fulgência dos candeeiros nocturnos, pressentem-se os gritos e as exclamações de liberdade, estique-se a corda pela batida, arriscam-se passos de dança inusitados e comete-se também o desplante de combinar sonoridades que não lembram a ninguém, tão pouco ao próprio que elege o cardume sonoro. Resulta? Esperemos mais um pouco, a pista vai abrir. Aguente-se a investida, permita-se mais um devaneio e procure-se a comunhão com o que é raro, o difícil, isto é, encontrem-se cúmplices para a grande viagem musical da noite que se segue. Não é certo que chegaremos a porto seguro, alguém soa o toque dos transatlânticos e dá-se o pontapé de saída com a memória daquele músico apaixonado da guitarra. E, ao que tudo parece indicar, ninguém fica para trás ou de fora deste navio carregado de tesouros e surpresas. É música para um serão tardio e o que virá a seguir ninguém sabe, sendo certo que aquele meliante dos sons irá desafiar as convenções do mandarinato dos tocadores de música...
O que faz de nós amantes de música generosa e benigna? Querer ouvi-la bem alto, se possível, até raiar o vermelho, dançá-la, erguê-la numa taça e oferecê-la de bandeja a quem quiser, servir de transporte para esses situação de puro desvairo e deleite, desejo por abrir-se de forma porosa à decantação musical e, à semelhança de um bom vinho, degustá-lo e saboreá-lo na perspectiva de que é desta que está reunida a melhor colheita.
Convenhamos, por tudo isto que se passou já bem de madrugada, seria útil recordar que neste agrupamento sonoro houve elementos musicais muito díspares ligados pelo fio condutor daquela galeria, membranas dum corpo estranho à solta, que vai desde a pop britânica dos Shed Seven, Franz Ferdinand, Dans Le Sac Vs Scroobius, Memorie Tapes, Tindersticks até  aos portugueses Miguel Guia & Tó Ricciardi, Linda Martini, O´rquestrada, Galundum Galandaina, Bandarra, Gaiteiros de Lisboa, passando pela música cigana, marroquina, maliana, cabo-verdiana, angolana, argentina, brasileira, senegalesa, etc. Enfim, um oceano de portos e embarcações que confluem, melhor dizendo, navegam com se fossem uma paleta sonora diversa e variada. Uma rota com ondas e marés que se exploram, um suave cheirinho do que foi a influência das estações de rádio dos loucos anos oitenta e noventa na cabeça de um adolescente da província que continua a  gostar de escutar e sentir a música.

PS-Os respectivos agradecimentos ao Pedro Bento por ser, mais uma vez, um mecenas/apoiante da diversidade das espécies, um real protector das Espécies Musicais Raras ou em vias de extinção. 

segunda-feira, 12 de março de 2018

"I Don´t Belong Here" no Teatro Micaelense


“I Don’t Belong Here” já foi uma peça de teatro e agora adquiriu nova vida através do documentário, pela mão do realizador Paulo Abreu. O lugar da estreia/apresentação foi este fim-de-semana na sala do Teatro Micaelense, na cidade de Ponta Delgada. Em dois dias, sexta e sábado, duas sessões, com direito também a sessão para as escolas. E, pela pertinência e atualidade do tema, o público aderiu à chamada com os autores presentes no final da apresentação para debate.
Desde 2013 que um grupo de pessoas (Dinarte Branco, Nuno Costa Santos, actores e a própria direção do teatro) esteve envolvido neste processo criativo que viria a dar origem a uma peça de teatro. O realizador Paulo Abreu acompanhou e deu conta dos ensaios, ao mesmo tempo filmou as experiências pessoais dos intérpretes presentes nesta viagem em que o mote é o lugar de pertença. Desta feita, os intérpretes de “I Don´t Belong Here” são cidadãos oriundos dos EUA e do Canadá que, após cumprida pena de prisão, são deportados para os Açores, vivendo assim uma “nova vida” afastados do lugar onde cresceram ou fizeram uma boa parte das suas vidas.
O documentário de 76 minutos está focado nos intérpretes da peça, desde o período de ensaios e à digressão pelos lugares por onde esta passou, até mesmo às impressões pessoais que cada um deles vai fazendo nos sítios da digressão. Estas pessoas narram aqui as suas histórias de vida bem como revelam a sua reintegração social a que estão submetidas. O realizador partilha com a audiência os diferentes monólogos e diálogos do grupo, mostra esse momento de alegria e evasão que estas pessoas obtiveram ao fazer parte deste processo. 
Paulo Abreu é cúmplice desta coragem ao expor uma realidade que, certamente, muitos deles queriam há muito esquecer. A vantagem deste trabalho documental pode vir muito do reconhecimento do absurdo desta situação ou do esclarecimento da existência desta realidade. E, pelo meio de tudo isso, a beleza, o ritmo e delicadeza dum trabalho documental muito bem feito!

quinta-feira, 8 de março de 2018

Excerto


Comem-lhe da mão,
cheiram-lhe a saia, lambem-lhe
os sapatos.
Iriam mais longe, se ela abrisse as pernas.
Mas contentam-se com pouco.
Trezentos exemplares,
uma fêmea que finja ter-lhes lido os versos,
o nome no jornal de dois em dois anos.
Precoces e curtos, apesar de famintos.
[Os poetas]

Madalena de Castro Campos, in O Fardo do Homem Branco, Companhia das Ilhas, 2013.

Ontem, escrito numa parede da cidade

Algum tempo antes da Lagoa, houve Remédios e Milagres

quarta-feira, 7 de março de 2018

Uma Missiva de JB Malaca na Caixa do Correio

Caro Doutor Mara
            
           Não tenho o privilégio de me dirigir ao meu ilustre amigo desde o tempo do nevoeiro, quando deambulávamos pela noite de Ponta Delgada a observar a movida e parávamos nas tascas, onde, entre sandes de atum e vinho de dois euros, mudávamos o mundo e a cultura e cortávamos na casaca dos arcebispos. Agora estou refugiado no palacete do Livramento onde entardeço o sonoro regresso arrulhado das rolas aos ninhos que construíram nas yucas do quintal. Estas columbiformes do género Streptopelia são aves ditas territoriais na época do acasalamento, mas eu ainda consigo ouvir os outros pássaros.
         Às Quintas pego na cesta (…) dos livros e rumo à nossa tasquinha da Rua de Lisboa. Digo nossa, porque lá passámos bons momentos e, estou certo, havemos de passar muitos mais. Continuam a surgir espontâneos diseurs, bardos, poetas malditos e alguma fauna subterrânea do bas-fond pontadelgadense. Mas não é para falar da minha rotina nem das nossas memórias conjuntas que lhe escrevo estas palavras no meu teclado Bluetooth. O assunto desta narrativa electrónico-espitolar tem a ver com a publicação em certa revista literária, da troca de correspondência entre o meu ilustre companheiro e esse outro compagnon de route, o nosso, não menos ilustre, Janeiro Alves. Ora, na dita revista, são revelados segredos que deitam por terra a aura romântica da superidentidade dos meus excelsos amigos. Imagine, caro Doutor Mara, se o Super-Homem revelasse a Metrópolis que não era mais que o modesto Clark Kent jornalista do "Daily Planet" ou que o Batman revelasse que na realidade era Bruce Wayne, o milionário de Gotham. Era um desastre para Humanidade. E para que não restem dúvidas, não sou o único a insurgir-me contra esta escorregadela identitária. Há dias em conversa com o nosso amigo comum, o senhor Arq. A., portuense ilustre, que escolheu uma das ilhas de baixo para viver e trabalhar, bem o ouvi insurgir-se com esta aguilhada no mito, este levantar do véu da lenda.
            Saiba o meu amigo que as consequências podem ser demolidoras. Espero, a bem da reputação dos meus amigos, que os leitores da revista sejam discretos.

O seu sempre amigo
JB Malaca
(arq. Naturalista Pós Graduado em Geografias Oníricas)

terça-feira, 6 de março de 2018

A Arma do Jazz


"De todas as operações conhecidas da CIA, entre as ridículas e as tenebrosas, há uma que se destaca, pelo facto inusitado de a arma usada ser a música, mais concretamente o jazz. Foi um programa criado em 1968, depois do falhanço da Baía dos Porcos e da operação Northwoods. Esta última parece mais uma absurda teoria da conspiração do que um projeto factual: foi recusada por John F. Kennedy e tinha por objetivo organizar e cometer, dentro das fronteiras americanas, diversos atos terroristas, entre sequestros, atentados bombistas, sabotagens, etc., atribuindo as culpas a Cuba e justificando assim uma possível invasão – estes documentos foram tornados públicos em 1997. Mas já no final dos anos sessenta, a CIA criou o programa Jazz Ambassadors, em que se pretendia, através da música, melhorar a perceção internacional que se tinha dos Estados Unidos da América, que era especialmente negativa.
            Organizaram-se diversos concertos do outro lado da Cortina de Ferro, com vários talentos do jazz, incluindo Satchmo (Louis Armstrong), Benny Goodman, Dizzy Gillespie e Duke Ellington, entre outros. Os músicos negros eram os preferidos para mostrar ao mundo que, afinal, os americanos não eram racistas. Genuinamente, acreditaram poder, com este programa, vencer a Guerra Fria, evangelizando uma juventude de Leste que ouvia música erudita mas tinha pouco contacto com outros géneros musicais, especialmente o jazz.
Este facto parece-me uma das ideias mais fantásticas da humanidade: pretender conquistar o mundo através da música em vez de, por exemplo, fazer explodir Hiroxima ou invadir o Iraque. A música tem um enorme poder transformador, quase imediato, é uma das únicas artes, senão a única, capaz de nos fazer mexer o corpo, de nos fazer dançar, provocar a catarse ou o êxtase. E não tem sequer de ser de qualidade para o conseguir. Uma pintura de Van Gogh não nos põe a dançar, mas uma canção, por pior que seja, é bem capaz de o fazer. O programa americano pode ter falhado, o muro só viria a cair muitos anos depois, mas a esperança, ainda que utópica, não deixa de ser maravilhosa: a possibilidade de uma guerra poder terminar num baile em vez de com a explosão de uma bomba de hidrogénio."
Afonso Cruz in “Nem todas as Baleias Voam”

Da Memória

        (...) com o tempo, um princípio de entropia corrói a recordação, que fica como que roída pela traça, lacunar se desfia e, in extremis, quando a queremos reconstituir passados tantos anos, só nos restam bocados incertos..."
Edgar Morin, As Grandes Questões do Nosso Tempo, Notícias, 1987.

segunda-feira, 5 de março de 2018

(...)

de manhã as ruas estão cheias de breves insurreições
as pessoas zangam-se com tanta espera
e apitam ao portão da escola

confundem via-rápida com rotunda
trespassam a passadeira e atropelam
adormecem no semáforo

a revolução pressupõe mecanismos matemáticos
um certo controlo de velocidade
estradas mais equilibradas e racionais
trajectos que nos levem em segurança
a um futuro calculável

os verdadeiros assassinos
cumprem os sinais de trânsito

isto de por acaso contornar a esquina a pé
e assaltar a despensa do presidente
é que não dá

Leonardo

Noivado

"Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
-És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia."
in “Contos do Gin Tonic”, de Mário-Henrique Leiria.

A Turistolândia...

Fotografia de Carlos Olyveira

O turismo está aí e é, de facto, a nova galinha dos ovos de ouro. Fala-se todos os dias de milhões de euros em investimentos em hotéis e bungalows à beira mar, promessas de duas centenas de empregos no turismo e aumento aos magotes no número de casas disponíveis para o alojamento local. O que também é verdade é que não se ouve ninguém preocupado acerca de políticas de requalificação urbana que favoreçam a recuperação e a colocação para arrendamento de imóveis de longa duração, isto é, habitação para residentes. Será que custaria muito às câmaras, ou mesmo ao governo, adquirirem prédios abandonados ou devolutos nos centros históricos das cidades, requalificá-los e disponibilizá-los a preços acessíveis à população que ali quisesse residir e viver?
Acredite-se, assim, que é de real importância para uma cidade quem a visita mas, sobretudo, e não de somenos relevância, a promoção de uma vida digna e saudável para quem nela habita ou pretenda habitar.

O sôr tor...

(...)
"Tome cuidado, senão
fazem-no Dr. Do pé prá mão.
Mas se o Dr. não diz que é,
fazem-no cão da mão pró pé."

Alexandre O´Neill, in “A Cordial Botelha”.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Poltrona

Fotografia de Carlos Olyveira 

Instântaneos de Claudio Magris

             
          "Certos lugares, por vezes, formam quase uma unidade com as nossas próprias pessoas, são uma modalidade da nossa relação com o mundo. Lugares significam paisagens, naturais ou edificadas pelo Homem, ou melhor, ambas, o lago e a pequena casa na beira indissolúveis numa lírica de Brecht. Lugares significam sobretudo pessoas, mais ou menos familiares ou quase desconhecidas, mas ainda assim testemunhas, embora parciais, da nossa existência."


Claudio Magris, in Instântaneos, 2018

quinta-feira, 1 de março de 2018