para Onésimo Teotónio de Almeida
Nunca soube a escala
que mede os terramotos íntimos
de quem vê devastado o lar dos seus, esventrada a cama
onde pais e avós inventaram a festa gloriosa
dos sentidos
que mede os terramotos íntimos
de quem vê devastado o lar dos seus, esventrada a cama
onde pais e avós inventaram a festa gloriosa
dos sentidos
Não posso, por isso, medir-te a raiva
em Janeiro de sessenta e nove, quando o fogo
te consumia o corpo na Praça Venceslau
e nos teus olhos já baços passava ainda
a névoa de Praga ocupada pelos tanques do império
em suspeitares quão incómodos os teus ossos
se tornariam,
removidos do espaço público
e forçados à clandestinidade,
porque há mortos cujas vidas assombram a noite
dos abutres
muito para lá do seu termo.
Lembrei-me de ti, Jan Palach, tantos anos depois
dos teus e meus vinte anos, tão longe dessa Primavera
de Praga
agora que nesta Primavera de chumbo
o fóssil moscovita soltou os ventos e as bestas
do Kremlin sobre os prados da Ucrânia,
enquanto repetia o brado
de um velho avô peninsular: «Viva la muerte!»
in Antes que o Mar se Retire, Companhia das Ilhas, 2023.