sábado, 26 de abril de 2025

Jan Palach de Urbano Bettencourt

 para Onésimo Teotónio de Almeida
Nunca soube a escala 
que mede os terramotos íntimos 
de quem vê devastado o lar dos seus, esventrada a cama
onde pais e avós inventaram a festa gloriosa 
dos sentidos
 
Não posso, por isso, medir-te a raiva
em Janeiro  de sessenta e nove, quando o fogo 
te consumia o corpo na Praça Venceslau 
e nos teus olhos já baços passava ainda 
a névoa de Praga ocupada pelos tanques do império 

em suspeitares quão incómodos os teus ossos
se tornariam,
removidos do espaço público
e forçados à clandestinidade,
porque há mortos cujas vidas assombram a noite 
dos abutres 
muito para lá do seu termo.

Lembrei-me de ti, Jan Palach, tantos anos depois
dos teus e meus vinte anos, tão longe dessa Primavera 
de Praga 
agora que nesta Primavera de chumbo 
o fóssil moscovita soltou os ventos e as bestas 
do Kremlin  sobre os prados da Ucrânia,
enquanto repetia o brado
de um velho avô peninsular: «Viva la muerte!»

in Antes que o Mar se Retire, Companhia das Ilhas, 2023. 

Insondável Claridade de Paulo Ramalho

Em memória da minha avó Guida 
Vejo-os demorarem-se no último cais. 
Uma insondável claridade 
repousa entre as mãos dos que partem.

Morrer é uma corda tensa de silêncios,
um hálito frio no lábio dos amantes.

Vejo-os embarcarem ao anoitecer
Um súbito vento lhes seca as lágrimas,
A transparência dos vultos breves no convés,
o pêndulo do inexorável, os lenços do adeus,
a espada de fogo do último beijo.

Falam mas já as palavras apodrecem entre os lábios.
Aguardam na luz derradeira a primeira estrela
e depois partem para a  ilha do esquecimento.
Gaivotas intensas sobrevoam o cais deserto.

in A Mar Arte Revista, Inverno/Primavera, 1998. 

Perfume de João Habitualmente













Nunca medi as mulheres 
pelos odores com que nos iludem

são postiços 
como silicone de seios 
conspiram no mesmo palco das jóais de imitação 
e prestam-se à farsa 
de camuflar outros vapores
 
Mas o teu caso é diferente 
                                      
Sigo-te a volúpia das fragâncias   
pesquiso-te o andar de garça                                                             
investigo o teu perfume            
até às últimas consequências 

in poemas em peças, Quase Dito, 2014.