terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Janeiro Alves apanha um avião para o quotidiano...

Caro Dr. Mara,
          
       Devo-lhe, antes de mais, o facto de ter exercido a sua influência perante o embaixador, permitindo assim a minha libertação de tão intrincada circunstância. Nos meus últimos dias de Lapónia, houve ainda tempo para a cerimónia da minha canonização, com a inauguração da minha imagem em bronze por parte do bispo local, e o descerramento da placa que renomeou a Igreja luterana local com o meu nome – Holy Tammikuu (São Janeiro). O meu sósia tem sido capa de todas as revistas da especialidade, como um bucólico camponês que foi pulverizado pela graça divina. Acontecimentos bizarros estes Dr. Mara, que contados, ninguém acredita.
Felizmente fui resgatado com sucesso deste insólito. Após combinação estratégica, o corpo diplomático apanhou-me às 5 da manhã junto às bombas de gasolina locais, e ninguém me viu sair. Actualmente já deram pela minha falta e segundo me constou, fala-se por lá do milagre da minha ascensão. Subi aos céus Dr. Mara! Por esta é que eu não esperava, eu que sou uma geométrica besta mundana.
Já refeito deste episódio, regressei à vida quotidiana, apreciando o esplendor de todos os seus rituais. Voltei ao meu sossego, e ao anonimato. O anonimato faz-nos voyeurs do mundo, permite-nos ter a liberdade de nos mantermos presos ao fascínio dos acontecimentos, e transformá-los em matéria da nossa inspiração. Os mundos que habitam na nossa mente... O corpo divaga pelo vaivém das coisas, no crepúsculo da cidade, e cá dentro carregamos um mundo ainda maior, que às vezes transborda em esplendorosas manifestações. São as diferenças entre todos nós, Caro Dr. Mara, que abrem as portas do deleite, que são criadoras e construtivas. São essas diferenças, às vezes minúsculas, de pormenor, outras arrebatadoramente grandes, que a sociedade inconscientemente tenta suprimir, ao massificar os objectos, os sonhos e os comportamentos. A sociedade criou uma auto-estrada, confortável e espaçosa, com protecções metálicas dos lados, para todos caminharmos em segurança no mesmo sentido. E como é difícil sair da auto-estrada. Alguns, em desespero, até circulam em contramão, mas são rapidamente apanhados. Mas há outros caminhos, muitos caminhos, ramificações, atalhos e miradouros, para que cada um siga aquele que lhe for mais conveniente e agradável. Pela auto-estrada chegamos mais depressa, mas onde? E quando chegarmos pode ser o caos. Será que haverá estacionamento para toda a gente? Será que não haverá selvagens com fome a lutar por um pedaço de pão? Talvez a auto-estrada dê a volta ao mundo em círculo e nunca pare. E nela ficaremos quando acabar o combustível, até nos tornarmos pó.
Aqui pela metrópole, todos os mecanismos desta grande engrenagem estão bem oleados, com combustões de rara beleza visual e explosões de cor e alegria, apesar do dia, cinzento, e do vento, esta ventania, que ora nos traz, ora nos leva a agonia. Isto digo eu, que não sou de cá.
Perdoe-me estas divagações de bolso, Dr. Mara, mas como sabe, é a única pessoa que me ouve (com olhos de ler). E como já se faz tarde, tenho de ir dar milho aos pombos, no sentido figurado, claro. Aguardo notícias Marianas, e garanto-lhe que após alguns acontecimentos que efectivamente denegriram a sua imagem pública, é bem hora de sair do cativeiro e dar um ar da sua graça, pois o povo tem memória curta, e para além disso todos têm direito a uma segunda oportunidade.

Com admiração e reverência,
Janeiro Alves