segunda-feira, 30 de junho de 2014

Iniciação

Entre pedras afiadas,
a janela por abrir.
Alguém o acompanha

Nos recados da manhã:
sal 12 pães 1kg de maçãs
fósforos canela.

Aos sair da mercearia,
roubaram-lhe os pedais da bicicleta,
a roda de orações.

Mãe, quis saber,
quem tomou conta de mim
quando eras pequenina?


José Miguel Silva, in “O Sino da Areia”.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Há 30 anos


Jaime Cruz editou o livro “Filósofos da Rua”, do jornalista Augusto Gomes, a impressão ficou concluída nas Sanjoaninas desse ano, com uma tiragem de 1500 exemplares.Augusto Gomes transporta-nos com os“Filósofos de Rua” até Chalandra e Knud Andersen, dois homens que pautaram a sua vida pelo amor corajoso e devotado ao mar. Neste seu entusiasmante relato ficámos a conhecer que um escritor-velejador dinamarquês  escreveu, em 1948, o livro “Med Sejlerin til Azorern” – “Com um Veleiro Até aos Açores”, pela editora Gyldendal. Uma referência para os velejadores dinamarqueses presente nas bibliotecas daquele país escandinavo. Nos agradecimentos, o escritor-velejador reconhece "a proverbial hospitalidade terceirense". É tempo de perguntar, tantos anos depois, por que é que o livro ainda não se encontra traduzido para português?

quinta-feira, 26 de junho de 2014

E tudo era possível

Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido


Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido


E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer


Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

Ruy Belo, Homem de Palavra[s]
Lisboa, Editorial Presença, 1999 (5ª ed.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Inquérito do Estio

Neste Estio conseguimos uma coisa que só é mesmo possível na estação dos garajaus e das  hortênsias: um inquérito de verão ao Doutor Mara. Há muito que se aguardava um regresso desta natureza, fruto de uma longa ausência e má vontade da sua parte em lidar com o barril de pólvora mediático que nos assola. As últimas notícias davam conta de um homem afastado da realidade social, dado que se tinha retirado há muito deste mundo para viver num moinho junto de um cerrado, elaborado e construído por si e mais dois amigos ligados à nova carpintaria portuguesa. Sorvamos, assim, as doutas respostas deste doutor, enviadas pelo correio e com um selo antigo com o preço desactualizado, escrito  na sua estranha caligrafia, inserido num envelope de papel cuchê  de cor carmim.
 
DM:Doutor, doutor, rio ou mar?
DM:Mar, evidentemente. O rio tem sido invadido por motas de água e outras espécies raras.
DM: Destaca o quê concretamente neste verão?
DM:As hortênsias que estão muito preclaras e sublimes mas que, infelizmente, são invasoras, segregando tudo em redor. É pena. E ainda os garajaus que continuam a fazer voos rasantes e algo despropositados face à temperatura muita fria das águas.
DM: Como eram os Verões da sua meninice?
DM: Eram passados à beira-mar, a maior parte das vezes refugiava-me dentro dos botes ou dos batéis (conhecidos por Caicos) para escapar ao sol, ainda sem a preocupação do buraco do ozono. A maior parte das vezes adormecia no interior destes e isso causava um transtorno enorme para a minha família pois passavam a tarde inteira à minha procura.
DM: O que é que mais gosta de fazer nesta estação?
DM: De dar banho ao cão.
DM: De que é o que o Doutor tem mais saudades de fazer nestes meses estivais?
DM: De andar de comboio. Foi nesse meio de transporte que aprendi os nomes das terras do meu país e a gostar de ler.
DM: O Doutor quer dar-nos três músicas para ouvir?
DM-“Watermellon in the Easter Hay”do Frank Zappa, álbum”Joe´s Garage, “Vulcão dos Capelinhos” de Luís Alberto Bettencourt e o “Marujo”, pela voz do Carlinhos Medeiros.
DM: Uma frase que o tenha marcado recentemente?
DM:“Ao decidirmo-nos a dissertar sobre um qualquer objecto, é aconselhável reflectir, e depois dar a conhecer aos outros, sobre o modo como chegámos a pensar precisamente nesse objecto, e quais as condições que nos levaram a dedicar-lhe uma atenção crescente.”É uma frase  do meu velho amigo Goethe.
DM:Que tipo de leituras costuma efectuar na estação favorita de Johannn Wolfgang Goethe?
DM:De manhã leio poetas, sobretudo alemães, mais poemas de portuenses frequentadores do Pequeno Orpheu e também poetas das nossas ilhas ultra periféricas. À tarde, leio ensaios sobre a crise capitalista e as energias renováveis, ao cair da tarde entro a fundo nos ensaios sobre a natureza da estética ou o fim da arte na era da técnica. E, à noite, remato sempre com um ou dois romances que abordam a atomização crescente dos indivíduos e a  falta de esperança das novas gerações de políticos formados nas escolas de Economia e Direito.
DM:De que sente falta na canícula?
DMMuito sinceramente, tenho saudades de comer um super maxi (nunca percebi porque lhe chamam assim) bem como o de me encontrar com os Manos Manaia, sobretudo com a minha amiga Miriam Manaia. Ah…e ainda do meu magnífico e escapulido amigo, o Janeiro Alves, nem imaginam o quanto é bom entrar noite dentro com ele e com as nossas charlas intermináveis rodeados de vinho biológico e favas escoadas.
DM: O nosso mui obrigado, Doutor.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Azul Anil

Fotografia: Eduardo Brito

[Ò Lírio, não trates assim a flor do campo]

As senhoras da limpeza aguardam à entrada
carece de explicação  o desencontro
-ó lírio, não trates assim a flor do campo, (a cibernética agradece)
padece dum real  concreto  ou de esquecimento neste caso
de novo será coração-carmim concentrado a esvair-se
na polpa dos dedos o rebolar de palavras que não casam
o músico omisso devia constar  de reunião
como se enrolassem palavras sem querer
até ficarem exaustos num combate observado à distância
a  consciência do outro de cada vez a expressar
muito antes do cuidar no interior dos dias e das noites

As notas erradas são sempre falta de ar
brotam ganas e ânsias como se cantassem de madrugada
o solo de plantas saudadas pela rua na voz da criança-poeta.

domingo, 15 de junho de 2014

Os Homens da Ilha Terceira

na ilha Terceira passam todas as nuvens do mundo
na ilha Terceira nasce o branco movimento do céu
o cinzento é curto, passageiro
por causa dos olhos dos homens
na ilha Terceira há homens de olhos azuis à nossa espera
homens pacientes de uma imaginação gigante
porque estão habituados a ver pessoas partir
homens inteiros lânguidos fitando o Atlântico
recebem-nos em júbilo sem nos perguntarem o nome
ensinam-nos que o nome é o último indício da alma
e que o mar todos os dias rega o olhar de azul
dizem isto e mergulham, desaparecem na noite líquida
por entre marés vivas como se não doessem
a dor, o sorriso inesgotável que estes homens provocam
dura muitas ilhas e enraíza-se muito depressa
eu parto e crescem-me hortênsias nas pupilas,
hei-de regá-las obsessivamente de azul
quando a falta que eles me fazem descorar
na ilha Terceira a última coisa que morre é o olhar
morre primeiro a esperança, o dia, a vida, só depois o olhar

Dulce Cruz

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Poesia

A água se ensina pela sede
A terra, por oceanos navegados
O êxtase, pela aflição;
A paz, pelos combates narrados;
O amor, pela cinza da memória
E, pela neve, os pássaros.

Emily Dickinson

Farol

Fotografia de Eduardo Brito

Retratos: João Correia Rebelo

Ilustração de Pedro Valim
        João Correia Rebelo nasceu em Ponta Delgada, São Miguel, na década de vinte do século passado. Era filho do pintor Domingos Rebelo e estudou Arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, concluindo o seu curso no início dos anos cinquenta. Gostava de desenhar e chegou a fazer uma exposição com desenhos seus sobre figuras do mundo do cinema de Hollywood em Ponta Delgada. Apelidado de moderno tinha vontade que a sua cidade de nascimento acompanhasse os novos valores e movimentos que emergiam na arquitectura do seu tempo. Por isso, fez crítica e intervenções, debateu o edificado existente e planificado, apontou novos rumos e apresentou propostas nem sempre aceites ou consensuais. Acreditava que a função do arquitecto era criar e não copiar, daí o seu universo arquitectónico girar em torno de duas figuras inventivas da arquitectura moderna: Le Corbusier e Frank Lloyd Wright. Esteve fora, emigrado, tendo regressado e sido, mais uma vez, crítico da pequenez e limitação de horizontes em que julgava viver. Tem uma obra com uma força imponente que vale pelo seu conjunto, destacando-se o Edifício dos CTT, em Vila do Porto, na Ilha de Santa Maria, o Colégio de São Francisco Xavier, em São Miguel, e a Estalagem da Serreta, na Ilha Terceira, entre outras. 

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Do Mar

         "A minha mãe gostava muito do mar e levava-me até lá quando era pequeno. As minhas primeiras recordações são de caminhar à beira-mar com os meus amigos conversando sobre os primeiros encantamentos amorosos. Nós, enquanto espécie humana, vimos do mar, aprendemos a nadar antes de andar, nas águas da mãe onde somos feitos. Somos feitos de água em 70 por cento. (…) Mas para mim o mar é outra coisa. É o mar da posição horizontal, não da luta para dominá-lo, mas ao contrário, para se abandonar. É o mar da felicidade. É por isso que o mar está indissociavelmente ligado ao amor, a Eros. Para mim, era inconcebível o amor sem o mar. O mar está também na história da minha vida, das paisagens e do amor, isto é, desse grande abandono nos braços da vida. Sem luta. Nado muito mas isso não tem nada a ver com o desporto, não, não, é realmente abandonar-se em grandes braços amorosos."

Claude Magris, in Ler, Dezembro de 2013.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Dois Poemas de Eduardo Bettencourt Pinto

Homem consigo próprio

E por uma voz que ainda não escutou
que se levanta do Inverno.
Esperou anos por uma sombra,
um pedaço de terra sem pedras,
uma janela donde pudesse olhar
a inviolável paisagem,
as distantes casa crepusculares, o pó
que derruba no silêncio
a tangível e cintilante melancolia do olvido,
Tomou a sua vida nas mãos, a transparência solar,
fluidez ardente da paixão
Nunca cantou do alto dos palcos da pesporrência
ou entre cintilantes plêiades de comissionistas
da moralidade, 
mas nas derrubadas colunas dos templos,
junto às lágrimas e ao sangue
dos dias
em que morria por tanto amar
um ramo de nespereira quebrado
no olhar duma mulher.
Tem agora postura soturna, alquebrada pelo
reumatismo
uma garça de angústia voa-lhe no coração.
Senta-se no átrio da igreja coçando os joelhos,
cabelos ralos adejando. As verrugas, acentuadas,
são profundas fissuras de mármore.
Alheio, vulnerável, quieto como um álamo,
não se lhe adivinha  o andarilho.
Esteve em Nova Iorque, viu ópera,
foi assaltado por um drogado numa galeria
em São Francisco enquanto se concentrava num
[Dalí,
comeu piza olhando, perturbado,
decotes desinibidos numa praça de Paris,
passou em frente à Casa Branca numa demonstra
[ção  contra a guerra, bebeu
tequila em esconsos povoados mexicanos
[até se esquecer do próprio nome, amou
tão febrilmente que julgou
pisar de leve a superfície dum paraíso
abstracto. Viveu como um príncipe
deserdado,
e trabalhou num fábrica de sabões  tantos anos
Que até a primavera cheirava a sabonete
reformado, ombros caídos, mãos calosas
e deformadas pela solidão,
sentiu no peito o ressoar
da última morte.
Fez as malas, juntou fotografias da sua juventude
em estações de neve, entre amigos e abraçado
a uma irlandesa,
seus pais, vultos cinzentos
na idade da memória.
Mas só ao chegar à ilha,
estonteado e perdido,
compreendeu que a saudade
nunca leva um homem
ao princípio do tempo.

Residência

Guardas as estações do sol e as harpas.
Os perfumados símbolos da terra cantam
no primeiro verão do olhar.
As mão levam-te a vasos de margaridas brancas,
sinuosos e claros oceanos.
Sentas-te à mesa da tribo e repartes o pão.
«Um homem que ama nas sombras o fulgor e as
[essências,
nunca chega tarde aos degraus da alegria», dizes,
o cheiro do vento e do trigo entre os dedos.
Não podes morrer contra o sonho contando
as pedras e alvoroços,
a face reflectida nos espelhos da alma.
Nunca partas dessa casa onde cresce agora
a voz das crianças, os rios da sua inocência,
as mais bravas e fragrantes ervas do amor.
Queres, eu sei, esse mar, a breve cama dos pombos
quando se abrigam nos rumores.
«Não há maior orfandade que chegar à ternura
sem palavras», dizes, os cisnes de Junho
nadando em círculos nos teus olhos.

  in “nove rumores do mar – antologia da poesia açoriana contemporânea”.

sábado, 7 de junho de 2014

Do Junho

O garajau supera o tubular Maio
denunciando o cálido éxodo rasante
o instante  brilho das escamas
em branco e espuma no estio chegando.

Sossego

Fotografia de Eduardo Brito

Dois Poemas de Heitor Aghá Silva

Estou profundamente humilhado

Estou profundamente humilhado
com o silêncio das acácias
estupidamente enigmáticas,
quando eu sei que elas escondem
o infinito das raízes?...
Graníticas, catedrais, transfiguradas,
embrulham-se na bruma
e riem-se de mim perdidamente
com seus cabelos verdes,
longos cabelos sensíveis,
simulando ao vento.

.................................................
................................................

Estou muito, muito magoado
com o silêncio das acácias.


Não me recordo

Não me recordo se havia alguma flor
no meu jardim.
Talvez fosse Verão...mas todas as manhãs,
ao acordar,
inexplicavelmente sentia saudades de mim..

Só sei chorar em português. Se a minha mãe
soubesse...
Como detesto os meus brinquedos de criança.
Talvez fosse verão, e houvesse flores...
Eu é que não fui um jardim da minha infância

Todos os astros se perderam no infinito.
Que saudades eu sinto de não ter sido um outro.
Talvez fosse verão, sei lá, e houvesse flores.
Só eu não fui ninguém entre o meu ser
e o sonho de outro.


in "nove rumores do mar-antologia de poesia açoriana contemporânea", organização de eduardo bettencourt pinto.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Entardecer

de tanto verso, a rua exausta:
leva numa mão migalhas de saudade, na outra a luz abatida
e enquanto uns dedos inventam a cura da ferida
os outros murmuram adeus à aridez da cidade

eu digo: o teu olhar castanho

eu passo sem rima pelo binómio
mágoa e amor pesam em cada um dos braços
o meu coração sustentáculo dança e imperioso
faz-me do corpo imprecisa balança

eu digo: o teu olhar castanho nebuloso
perdido ao fundo dos teus olhos

eu sigo sem equilíbrio, sem sossego, sem nada
só frémito, o medo de escolher a mão fechada
mover o músculo errático e ficar sem fim
na amargura que dos teus olhos desagua em mim

Dulce Cruz