quarta-feira, 10 de abril de 2013

Tarantoterapia


Ninguém acredita no que está neste momento a ver pois contra todas as probabilidades ali temos o incrível Doutor Mara, numa sexta-feira à noite, em discoteca bem conceituada, por sinal e, em plena coluna no centro da pista de dança a agitar-se desabridamente, feito exímio e excêntrico dançarino, com uma camisa às flores (julgamos ser hortênsias), encharcado em água e suor, sendo que este se encontra permanentemente a ser agraciado com baldes de cerveja que, ele simpática e educadamente, vai sucessivamente recusando. De qualquer modo, convém dizer que tem sido difícil para nós obtermos o seu depoimento e aproximarmo-nos até bem perto dele. Vamos, certamente, fazer a dita charla impossível, o que pedimos aos nossos leitores a máxima desculpa por algum baloiço e oscilação. 

DM: Doutor Mara, será que podemos ter a nossa charla habitual consigo?
Doutor Mara: Neste momento, não posso. Vocês não vêem que me encontro em pleno acto dançante. Que chatice…

DM: Sim, já reparámos. Você está frenético…está tudo em ordem?
Doutor Mara: Sim, à parte que neste momento padeço de Tarantismo súbito.

DM: Tarantismo súbito?
Doutor Mara: É um impulso frenético de dançar e a consequente incapacidade de suster e estancar os movimentos da dança. Eu estou, definitivamente, infatigável… mesmo que queira, não consigo, já houve gente internada por este dito achaque contemporâneo e também houve muitas pessoas que emagreceram muitos quilos depois disto. É também uma coisa interna, uma busca incessante da nossa verdade interior e da verdade colectiva na forma como os outros nos vêem. Posso garantir-vos, que durante o período da minha juventude, perdi uma ou outra namorada devido a este meu estado súbito de tarantismo. Peço-vos imensa desculpa, mas necessito continuar a dançar...o tarantismo quando chega nem sempre é para todos e...tenho que aproveitar.

DM: Mas, doutor, isso parece-nos muito grave, muito grave mesmo…não consegue mesmo parar de dançar?
Doutor Mara: É verdade…isto não tem explicação segundo os médicos nem a ciência moderna. Os músicos dizem que isto acontece quando um disco jóquei actual passa mais de três músicas seguidas com grande nível, o que é raro nos dias que correm. Por outro lado, quanto mais danço mais vontade tenho de fazer amor, desculpem, quando mais danço mais vontade tenho de fazer a revolução, desculpem outra vez, quanto mais danço mais vontade tenho de dançar…assim é que é…será? Tirei a noite para dançar…não sei, portanto, quando é que isto irá parar.

DM: Mas, Doutor, você é bom é a escrever, a produzir obras de grande valor estético, você está ao nível das grandes celebridades da literatura.
Doutor Mara: Isso é o que vocês críticos dizem… e como vos agradeço, tenho uma imensa dívida para convosco ao me ajudarem a pagar as contas da electricidade, da água e do gás. No entanto, escrever bem, como diria o velho Freud, é ser capaz de contar histórias, isto é, de se interessar pelo homem, pelo seu destino individual e colectivo. Vejam estes jovens que quase dançam aqui à minha volta, cada um traz consigo uma estória mas são muito poucos os que se interessam por eles…quem escreve sobre eles? A antiga sociedade de produtores só lhes consegue arranjar lugar como consumidores e é talvez por isso que eles ficam neste estado letárgico, ludibriando a incerteza do tempo em que vivem e atirando-os para a anomalia de não saber o que fazer com o mundo que têm pela frente. Alguns deles não dançam pois estão mais interessados em transmitir pequenos esgares e olhares furtivos ao mesmo tempo que tentam ser retribuídos nessa ânsia de serem desejados. E, por favor, se não se importam, vão-me desculpar, mas tenho que continuar a dançar...isto é uma verdadeira terapia.

DM: Doutor, pedimos desculpa pelo incómodo, estamos eternamente agradecido por esta charla impossível. Esperemos, entretanto, que consiga travar esse baloiço bailador em que está metido. E que não seja preciso camisas-de-força para tirá-lo daí. Até um dia destes. 

Caro Diário







“Querido diário, só no mar me sinto feliz, durante o trajecto entre uma ilha que acabo de abandonar e uma outra em que devo desembarcar.”


Nanni Moretti 

"Jáfoneca"


(ou o contínuo Inverno açórico na Praça Velha)

    De vez em quando a memória tem destas coisas pois é capaz de atirar para o presente recordações de infância ao mesmo tempo que se esquece do lugar onde deixou o filme que se encontrava a ver. Caminha-se pela urbe atlântica e alguém aproveita para fazer um sorriso gracioso, amável, familiar, ali no lugar onde se reúnem e se encontram as pessoas há muitos, muitos anos, daí o nome de Praça Velha. Subitamente, este homem alto que sorri para mim, estende-me o braço, aperta-me a mão para me cumprimentar, num gesto simples, amigo e delicado. Ri-se muito. Saúda-me e pergunta-me se está tudo bem. Este homem podia ser meu pai, meu avô, um velho amigo. Este homem fala comigo como se me conhecesse. De onde é que o conheço? Não o conheço certamente. No entanto, decido ficar com ele, ali no meio da antiga ágora angrense, a ouvi-lo, como se nada mais existisse para fazer. É isso que eu faço. Este homem tem oitenta e dois anos, uma cara carregada de rugas e de tempo e possui dois olhos com a cor do mar. Pergunto-lhe o nome sem ele dar conta. Diz-me que ele será sempre o “Jafoneca”, que lhe chamam assim desde pequeno na sua freguesia, na ilha. Tento fixar o nome mas não sei se é assim que se escreve nem interessa. Interessa-me é escutar o mais velho marinheiro de Porto Judeu em actividade que demora duas horas a chegar ao Topo, na Ilha de São Jorge, para encetar a sua pesca ao goraz, cherne, boca negra, espadarte. Acrescenta que trabalha no mar e na terra, já que também é agricultor. Indago se este conheceu o Chalandra, o que confirma e diz-me que este fazia transporte de passageiros entre o porto de alfândega e os navios de carga. Olha-me nos olhos, fito-o com a atenção e eu fico com a sensação de que o conheço há tantos anos, ainda que nunca nos tivéssemos visto ou conversado. “Jafoneca” é possuidor de um barco de vinte e cinco bulhas de nome “Foguete”, no entanto por causa do mau tempo apenas foi cinco vezes ao mar entre Janeiro e Março. Este homem trabalhou quarenta anos na estiva. Eu podia ficar aqui o dia inteiro a ouvir este homem e despeço-me até um dia destes ao acaso. Não é que eu não queira é porque não posso, pois estes homens estão vivos, demasiado vivos dentro de mim.