quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Ginecomagia

DM: Era um domingo como outro qualquer, sem absolutamente nada para contar, caso não tivéssemos sido surpreendidos por uma visão implacável: a presença do Doutor Mara num banco de jardim rodeado de material literário como é seu hábito, ainda que com algumas surpresas que, imediatamente, quisemos indagar.

DM: Doutor Mara, ao fim de algum tempo, afinal do que tem saudades?
Doutor Mara: Dos meus anos vividos em Estocolmo, na minha fria e amada Suécia. O anonimato na rua sabia-me bem. E, como era bom ir beber uma meia de leite ao café String, fica em Söderlmalm, sentar-me onde se sentava o Jan Johansson, imaginá-lo ali com as suas pautas retiradas da sua pasta preta com um desenho de uma clave de sol e ficar a ver os flocos de neve cair. Estava-se melhor no interior daquele café do que em algumas casas portuguesas. No Inverno, claro.

DM: Já viveu, portanto, em outros países?
DM: Sim, garantidamente, enquanto experiências existenciais de longo alcance, foram pelo menos quatro. O resto foram passagens e paisagens de circunstâncias. Sempre por razões afectivas e românticas, que talvez faça, um dia, o trabalho de descortinar tamanhos périplos efectuados, o que não é fácil.

DM: Doutor Mara, temos hoje para si uma pergunta complicada, pois corre nos tugúrios menos asseados da nossa cidade, rumores de uma hipotética homossexualidade da sua parte.
Doutor Mara: Nada contra, aceito os rumores e, obviamente, a homossexualidade. Houve tempos que, num programa de rádio denominado "Campos de Naftalina", li de forma caótica e irónica um conto intitulado de "O Nariz", pertencente ao escritor russo Nicolas Gógol, um conto extraordinário sobre alguém que acorda sem nariz. Felizmente para nós, o nariz é um produto tipicamente português e que bem poderia ajudar a estabilizar a nossa balança comercial, caso decidíssemos exportar o tamanho do nossos narizes de uma só vez para quem estivesse interessado nas suas respectivas compras e aquisições. O slogan podia ser: "Vende-se o meu nariz, vai do Pessegueiro até Paris". E, nestes dias em que vejo que o nariz tem inoportunas funções,  lembro-me sempre do Alexandre O´Neill, quando este um dia ironizou: "Não metas o nariz na vida dos outros, pois podes lá ficar". E, porventura, é verdade.

DM: Doutor Mara, mas…há alguma ponta de verdade no que se ventila por aí?
Doutor Mara: A cada um a sua ventilação, já dizia o filósofo das barbas brancas que os nossos irmãos espanhóis “espanholaram” com o nome de Carlos Marx. Seria plausível ou com uma boa ponta de verdade caso eu tivesse alguma relação com alguém do sexo masculino, o que não se verifica. De qualquer modo, não vejo que isso ainda possa ser apelidado de rumor. A sexualidade de cada um devia pertencer única e exclusivamente a cada um.

DM: O que seria de todo verdade caso o Doutor Mara fosse apenas um cidadão comum, o que não nos parece, dado o seu estatuto de personalidade pública, não é verdade?
Doutor Mara: Como eu vos compreendo, caros amigos. Estes meus velhos hábitos de anacoreta deram sempre origem a esse tipo de efabulações. Depois, creio que começo lentamente a tornar-me politicamente incómodo com os meus estudos e intervenções de longo alcance sociológico. Julgo ter uma reputação imaculada, mas nunca se sabe o que as más línguas serão capazes de inventar. A acreditar naquela máxima de que quando um escândalo desponta e se espalha há sempre um fundo de verdade, qualquer dia ainda me acusam do síndrome de sotaque estrangeiro. Não é assim?

DM: Compreendemos, Doutor Mara. No entanto, junto do seu banco do jardim, vemos que tem consigo uma revista Playboy. Sem querer invadir a sua privacidade, diga-nos, qual é a sua situação civil actualmente?
Doutor Mara: Mas isso interessa actualmente para alguma coisa?

DM: Pois, não é nossa intenção pretender fazer psicanálise, mas o que faz Doutor Mara com uma revista desse calibre?
Doutor Mara: Este material de fino recorte e curvas perfeitas, diga-se, deve ter sido deixado aqui por algum leitor furtivo. Paz à sua alma. Longe de mim a castidade, meus amigos, mas também não gostaria de passar a imagem de um pervertido sexual de domingo à tarde. É certo que não pretendem fazer psicanálise, nem relembrar os meus tempos de libertinagem na juventude mas confesso que, por vezes, me deixo surpreender pelas malhas eufóricas da erotização do real. A sociedade em que vivemos é profundamente erotizada e o desejo mecanizado. Posso afirmar que o sexo tornou-se de plástico e o amor é para românticos. Julgo que tem a ver com as máquinas que nos rodeiam, disparam conteúdos de cariz erótico sensual como as galinhas depositam ovos nos aviários.

DM: Agora que esperamos a Primavera, perdoe-nos, no entanto, o atrevimento. Como era o Doutor Mara nas Primaveras da sua juventude. Sentia, à semelhança dos seus contemporâneos, o seu corpo vibrar em comunhão com a natureza, em harmonia total, o tal desabrochar  dos tecidos?
Doutor Mara: Evidentemente que sim. Recordo-me de no tempo do liceu ter desenvolvido uma paixão platónica pela Professora Emília, que leccionava a disciplina de História. Lembro-me lhe ter dito no dia inicial da estação primaveril, semelhante introdução camoniana: “Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar/ Não tenho logo mais que desejar/ Pois em mim tenho a parte desejada.” Ela avisou o Director de Turma que eu não estava bem. Passei o verão a auxiliar um vizinho que era mecânico de barcos como castigo. Aprendi muito nesses dias de óleo, chave 24 e motores de quatro tempos. Acontece aos melhores.

DM: Soubemos que tem uma enorme admiração pelo universo feminino e que um dos seus sonhos era ser um insecto e poder um dia entrar numa casa de banho feminina ou num táxi só com mulheres, inclusive a taxista.
Doutor Mara: Não chegaria a tanto, não exageremos. É um facto que tenho muita, para não dizer uma total curiosidade sobre o universo feminino em local tão íntimo. Há qualquer coisa de erótico nessas reuniões alargadas. Desconfia-se que é uma conspiração de Eros e que faz com que todas elas se sintam, subitamente, objectos do desejo masculino. Aqueles pequenos gritos de prazer – se forem realmente  sinceros - de várias mulheres em locais desprovidos de homens são profundamente atraentes. Lembro-me de um realizador de cinema brasileiro, citando outro realizador, ter dito que os homens realizam acções em função de três objectivos: as palmas do público, o tilintar das moedas e o gemido das mulheres. Nem sempre por esta ordem de ideias, o que torna o homem muito objectivo na sua sedução. Não concordam?

DM: É possível, Doutor Mara, é possível.Quer contar-nos como se tornou Homem pela primeira vez?
Doutor Mara: Sim, foi inesquecível e trágico ao mesmo tempo. Foi num acampamento de jovens anti-militaristas com uma jovem esquerdista-libertária, filha de um ex-oficial do Ultramar. O pai apareceu pela manhã sem ninguém contar e abriu o fecho da tenda, obrigando-me a sair e a fazer quatrocentas flexões de uma assentada, a chamada GM (Ginástica Militar). Para mim, o acampamento anti-militarista terminou ali. Ela teve que trabalhar nesse verão e foi proibida de voltar a falar comigo, o que ela acedeu. Encontrei-a alguns anos mais tarde numa arruada de um partido da direita conservadora, com um cheiro a perfume de rosas e uma mala Channel. Questionou a minha relação com as drogas recreativas e desejou-me sucessos para minha vida futura. Virei costas, apertei os atilhos dos sapatos e fui comer umas iscas ao “Zé Manel dos Ossos”.

DM: Doutor Mara, sinceramente, acredita na fidelidade?
Doutor Mara: Tenho um velho amigo que após muitos anos a “olhar os lírios do campo” se dedicou à família e aos seus cinco filhos. Os resultados foram surpreendentes. Hoje consegue ser mais fiel que o Pluto, o seu cão de estimação. Um amigo da minha de infância passada junto do mar, recém-regressado da Islândia, onde fez o doutoramento em Espeleologia e Minerologia, confessou-me a este propósito que tudo vai bem desde que não se saiba. Ora bem, a fidelidade é um prato de duas bocas, como eu costumo dizer. Só come quem quer! Por isso prefiro a exaltação da lealdade, isto é, ser fiel a um compromisso, a uma verdade partilhada. Será que aceitam esta resposta?
DM: Claro que sim, Doutor Mara. Foi mais uma vez um enorme prazer falar consigo. 

PANAZOREAN na Ilha Terceira

“Die Fremde” de Feo Aladag.

           Duas noites de cinema dedicado ao diálogo intercultural no Centro Cultural de Congressos de Angra do Heroísmo numa extensão do Festival Panazorean, evento com sede em São Miguel, e que se realizou durante mês de Abril do ano passado em Ponta Delgada. Belíssima e arrojada iniciativa pautada pela exibição na terça-feira, dia 22, pelos filmes “50 Pesos Argentinos”, “Down in Egyptland” de Lukas Zund e “Mazagão, a Água que Volta” de Ricardo Leite e, na noite de quarta-feira, dia 23, pela exibição dos filmes “PDL- LIS" de Diogo Lima e “Die Fremde” de Feo Aladag.
      As sessões sempre bem compostas de público e com os filmes a surpreenderem pela positiva.“50 Pesos Argentinos”, prémio do público, melhor filme regional, é um interessante exercício sobre os açorianos que partiram em busca do “el dorado” em terras argentinas e sobre aqueles que no arquipélago permaneceram à míngua das suas expectativas e anseios por não terem partido. “Down in Egyptland, prémio RTP2/Onda Curta, é um objecto cinematográfico bem conduzido, com uma excelente fotografia e uma ainda melhor banda sonora, precisava somente de melhores soluções narrativas. Quanto “Mazagão, a Água que Volta” estamos perante um trabalho arrojado, valoroso enquanto documento mas algo extenso e a necessitar rever alguma consistência nos conteúdos apresentados. Na segunda noite, a atenção recaiu no filme “Die Fremde”, prémio melhor filme internacional, e que é uma auspiciosa e entusiasmante primeira obra de Feo Aladag. O filme gira em volta de Umay, uma jovem turco-alemã que fugindo de um casamento infeliz em Instambul, parte para Berlim onde os seus pais residem, procurando aí a sua emancipação. Tudo seria perfeito caso não existisse esse código de honra tradicional que faz com que “Umay” seja também ela uma estrangeira para os valores da sua própria família. O filme é magistralmente acompanhado pelo piano de Max Richter e as composições de Stéphane Moucha. Os últimos cinco minutos do filme são deveras comoventes e reveladores do melhor que ainda está para vir desta cineasta austríaca. 
            Uma última nota apenas para referir que as sessões eram gratuitas e que no início das mesmas foi  oferecido o livro “Diagnóstico da população Imigrante no Concelho de Ponta Delgada-Desafios e Potencialidades para o Desenvolvimento Local” da organização AIPA- Associação dos Imigrantes dos Açores. Parabéns e votos renovados de estímulo e incentivo mais do que merecidos aos organizadores desta iniciativa de enorme valor.