sábado, 18 de abril de 2015

O Céu que nos Protege (II)

"Acordou, abriu os olhos. O quarto pouco ou nada lhe dizia; ele estava profundamente imerso na consciência donde acabara de vir. À falta de energia para determinar a sua posição o tempo  e espaço faltava-lhe o desejo disso. Estava algures, regressara de parte nenhuma através de várias regiões; no fundo da sua consciência havia a certeza de uma infinita tristeza, mas uma tristeza tranquilizadora, familiar. Não precisava de outro consolo. Nesse conforto, nessa tranquilidade, repousava, entretanto, tão absolutamente calmo, mergulhando depois num daqueles sonos leves, momentâneos, que acontecem após um prolongado, profundo sono. De repente, voltou a abrir os olhos e consultou o relógio de pulso. Não foi mais que um acto reflexo, pois ao saber as horas continuava confuso. Sentou-se, observou o quarto espalhafatoso, levou a mão à testa e, suspirando profundamente, deixou-se cair na cama. Mas agora estava desperto; alguns segundos depois já se sabia onde se encontrava, que era o fim da tarde, que dormira o som das chinelas sobre o chão liso, de ladrilhos, e esse som confortava-o, agora que atingira outro nível de consciência, em que a mera consciência de estar vivo não era suficiente. Mas como era difícil aceitar aquele quarto alto, estreito, com o tecto de vigas, os enormes e patéticos desenhos, estampados em cores neutras à volta das paredes, a janela de vidro vermelho e laranja, fechada. Bocejou: não havia ar no quarto. Mais tarde saltaria da cama alta, abriria a janela de par em par, e então lembrar-se- ia do sonho. Sim, apesar de não se lembrar de nenhum pormenor, sabia que sonhara. Do lado de fora da janela haveria ar, telhados, a cidade, o mar. Quando contemplasse o vento do anoitecer refrescar-lhe-ia o rosto, e nesse momento o sonho estaria lá. Agora só lhe restava ficar onde estava, deitado, respirando lentamente, quase a cair de novo no sono, paralisado naquele quarto sem ar, não à espera do crepúsculo mas deixando-se estar como estava até que ele chegasse."

in“O Céu que nos Protege”(The Sheltering Sky) – Paul Bowles, 1949

quinta-feira, 16 de abril de 2015

domingo, 12 de abril de 2015

...

arde em mim e deita
o tarde que se fez
jacente qualquer gesto
de ti e sobeja 
o aclamado amor 

Mistério

"Certamente, havia um mistério sobre esta ilha, mas como descobri-lo?"
Júlio Verne, in A Ilha Misteriosa

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Dois poemas de Gina Ávila Macedo

Aqui na ilha o tempo move-se
como um cachalote ferido

Enquanto as chuvas de
dezembro alagam os dias
as fotografias do gavetão
molham a noite por dentro

E ela sabe: a ilha é uma tumba
onde os mortos estão vivos.  
…………………………………..

É no interior da noite
que bebemos o vinho pisado
por deuses e entramos
resolutos pelas horas tardias.
Rimos e enganamos o
frio na carícia do lume.

Olhamos o rio e nas margens
das nossas cabeças não há
palavras que descrevam a loucura
e o medo.

Juntos atravessamos a noite
com o nosso andar felino
descobrimos que a escuridão é
feita de gatos vadios e casas pardas.

E quando a madrugada chegar
não sabemos o que iremos fazer
com as nossas mãos.

in Anuário de Poesia de Autores não Publicados, 2015, Assírio&Alvim. 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Ver Estranhas Formas a Pensar – sobre a escultura e os desenhos de Agnes Juten

           
Fotografias: (www.agnesjuten.com)
           Agnes Juten  está a expor, desde o dia 20 de Fevereiro até 10 de Abril  (termina esta sexta-feira), esculturas e desenhos na Casa Manuel de Arriaga, na cidade da Horta, Ilha do Faial. São desenhos e esculturas muito recentes, alguns trabalhos realizados para o efeito, intitulados de “Novas Obras”, que a artista elaborou, imaginou e concebeu no seu atelier da rua Visconde de Santana, nº7. Há quase meio século que o seu gesto escultórico se repete, confirmando e renovando o seu percurso de artista visual a partir de objetos que quotidianamente cria, (re) inventa e constrói. Agnes Juten é uma artista plástica, holandesa, radicada na Horta, com um longo percurso e pergaminhos, os quais mais uma vez teremos a oportunidade de apreciar neste conjunto considerável da sua vasta obra.
Numa sala algo minúscula, amontoada de materiais de outras exposições ou objectos, provavelmente à espera de serem usados, ela vai também desenhando, realizando esboços e outras intenções que se concretizarão enquanto combinação de materiais e formatos, ou simplesmente desenhando traços, revelando as figuras e formas de um conjunto de objectos à espera da arte final ou trabalho conceptual. Este trabalho diário de agregar técnicas e moldar objectos faz com que sejam vários os objectos que se disponibilizam às suas mãos, se submetam à sua inventividade, à curiosidade, e ainda ao enorme rigor criativo envolvido da sua parte. Desta relação com os materiais constam essencialmente o ferro, a madeira, o arame, alguns invólucros de produtos, pegões e afins. Agnès ousa assim romper com a normalidade, com o frágil equilíbrio que nos sustenta, daí que cada vez que usa um nome para um objecto, atira-nos com nomes como “Suporte”, “Movimento”, “Deitado”, “Declive”, “Avalanche”, “Pegão” ou outras estruturas sujeitas a limites como “Linha Vermelha” ou mesmo “Ilha”. É dessa forma que arrisca este quebradiço equilíbrio que nos sustenta, permitindo-se mesmo iluminar a escuridão por detrás de si, interrogando os caminhos da arte, do seu tempo, evidenciando num primeiro risco ou traço, um primevo olhar sobre a forma e os objectos, fruto de uma revelação interior.
"Suporte"Agnes Juten (2015)
    Agnes Juten vai, no entanto, deleitando-se com as pequenas narrativas que outros seres fazem acerca destes objectos artísticos depois de usados em exposições, muito embora para si tenham o condão de ser duradouros, dado o apego e pertença que ainda hoje por estes manifesta, tem consciência do carácter efémero e volátil que estes simbolizam para o público espectador. Ironiza, inclusive, com a necessidade alheia de utilizar as suas esculturas para representar qualquer situação ou objecto do mundo real. Agnès Juten sabe que ali está a representação do seu próprio mundo, o seu pensamento, o escultórico gesto que vibra com o desenrolar do tempo e da vida (quase meio século dedicada à escultura e ao desenho). E o que fazer dessa necessidade permanente em “satisfazer” o desafio de criar imagens, representações, significados, sem pensar na utilidade da arte?
     Na verdade, as esculturas de Agnes Juten respiram sobriedade, leveza formal, assentam no pendor criativo e na ilustração dos vários estados de alma que percorrem qualquer ser pensante. São esculturas que dão trabalho ao pensar, à estranheza que convida e cultiva a introspecção, que imploram à interioridade e ao recolhimento.
    Do mesmo modo, os seus desenhos evocam simples gestos, movimentos, cruzamentos, clausura, os nós e os laços que que estabelecemos enquanto o silêncio vai esculpindo a “persona” de que somos feitos. Estamos, portanto, perante uma sensibilidade inquieta, inabitual modo sereno de nos fazer cogitar, essa curiosidade permanente pelos opostos existenciais. Que luzes ou sombras, que caos ou o mundo harmonioso nos sustenta este equilíbrio que julgamos habitar? Dessa hospitaleira resposta aqui fica o convite ao desassossego formal, à estranheza  e, essencialmente, ao prazer de poder ver novamente os seus trabalhos expostos. Inquietemo-nos.

Ontem escrito numa parede da cidade

O meu avó que era pescador dizia:"Em águas calmas tem peixe".

domingo, 5 de abril de 2015

Na Forasteira Ausência de um Poema

Navios sensíveis vigiam à porta
engolidos itinerários pela inquietude
porto em teatro convergindo rotas
juras próximas de ofegantes colos
o desalinhar comovido de benquerenças
erguem-se lemes, sulcam-se planícies
no murmúrio de partida proferido
já alta a madrugada e a promessa de luz
vigorosas flores, explícita franqueza
do farol combinado nem um vago sinal
espelhos delongados e nenhum reflexo 
na forasteira ausência dum poema.  

quinta-feira, 2 de abril de 2015

"O Céu que nos Protege" de Paul Bowles

O escritor Paul Bowles
      "Na mesa do canto mais escuro estavam sentados três americanos: dois homens novos e uma rapariga. Conversavam tranquilamente, e com modos de gente que tem todo o tempo do mundo para tudo. Um dos homens magro, de rosto ligeiramente crispado e ansioso, dobrava um dos grandes mapas multicolores que estendera pouco antes sobre a mesa. A sua mulher observava os movimentos meticulosos que ele fazia, com gozo e exasperação, os mapas aborreciam-na, e ele estava sempre a consultá-los. Mesmo durante os breves períodos de estabilidade das suas vidas, e que raros tinham sido desde o casamento doze anos antes, bastava que ele visse um mapa para estudá-lo apaixonadamente e se metesse, quase sempre, a planear qualquer nova viagem impossível, mas que eventualmente podia tornar-se realidade. Não se considerava um turista; era sim um viajante. A diferença reside em parte no tempo, explicava. Enquanto o turista geralmente está com pressa de voltar a casa ao fim de algumas semanas ou meses, o viajante, não pertencendo mais a um lugar do que a outro, move-se lentamente, ao longo de anos, de um lugar da terra para outro. Na verdade, era-lhe difícil afirmar, entre tantos lugares onde vivera, em qual deles se sentira mais em casa. Antes da guerra fora a Europa e o Próximo Oriente, durante a guerra as Índias Ocidentais e a América do Sul. E ela acompanhara-o, sem repetir demasiadas vezes ou demasiado amargamente as suas queixas. Nesta altura tinham atravessado o atlântico pela primeira vez desde 1939, com muita bagagem e a intenção de se manterem afastados todos o mais possível dos lugares de guerra. E assim fora, porque, pretendia ele, outra diferença importante entre o turista e o viajante é que o primeiro aceita a sua própria civilização sem questioná-la, enquanto o viajante, ao compará-la com outras civilizações, rejeita aquilo que não gosta. E a guerra era um aspecto da era mecânica que queria esquecer."

in“O Céu que nos Protege”Paul Bowles, 1949, trad. José Agostinho Baptista

Talassoterapia

O escândalo está prestes a acontecer, melhor, já aconteceu, dado que estamos aqui na presença do nosso conhecido amigo Doutor Mara deitado na proa de um protótipo da finlandesa Nautor`s Swan, um veleiro de 30 metros, portanto, com um preço que deve andar na ordem da dezena de milhar de euros e que só na manutenção custa um milhão de euros. É caso para dizer: " -Mas que desfaçatez, Doutor, como foi possível?”. Muito embora, tivesse sido bastante trabalhoso chegar junto dele, pedimos autorização à Junta Internacional de Portos e Marinas,pois julgamos ser possível entamelar algumas perguntas, muito mais que urgentes, necessárias.

Douta Melancolia-Doutor, doutor, como foi possível?
Doutor Mara-Como foi possível?
DM-Sim, doutor, alguém como o senhor neste aparato, opulência, rendido a esta faustosidade existencial?
Doutor Mara-Pois é, meus amigos, creio que a beleza da existência e da vida vem daí, isto é, dessa eventualidade de podermos variar, mudar. Essa contingência de podermos escolher vários caminhos, diversas hipóteses, realizar o impossível. Cantar como o Brel em La Quête:“Rêver un impossible rêve/Porter le chagrin des departs/Brûler d'une possible fièvre/Partir où personne ne part/Aimer jusqu'à la déchirure/Aimer, même trop, même mal,/Tenter, sans force et sans armure,/D'atteindre l'inaccessible étoile.”. Foi isso que eu decidi fazer...
DM: Terá sido por isso que Janeiro Alves decretou a sua ruína, chegou mesmo a aventar a hipótese de falência da sua entidade física. O que tem a dizer sobre isto e sobre Janeiro Alves?
Doutor Mara: Especula-se muito, demasiado até, sobretudo a minha relação com Janeiro Alves. Devolvo-vos a pergunta, quem é Janeiro Alves para dizer seja o que for? A última vez que soube dele ficou preso numa casa de banho de um centro comercial. Fui eu que o salvei ao revelar-lhe técnicas muito simples de abertura de maçanetas. Como posso dar crédito a um inveterado columbófilo dos dias de hoje. Tenho uma profunda estima pelas sua formação e ilustração mas desconfio sempre que o vejo a pregar cantilenas de amor ao próximo. Um utópico, quero eu dizer. A minha crença no ser humano ficou muito abalada quando Janeiro Alves decretou o fim do clã Manaia. A Miriam ainda esta madrugada se queixava disso.
DM- Mas, doutor, os ideiais colectivistas de juventude, as manifestações em que participou a pedir uma maior justiça entre todos os seres humanos, os abaixo-assinados ecologistas, as petições em prol de mais democracia, a exaltação do internacionalismo, enfim, há todo um conjunto de pessoas que deixarão de confiar em si depois disto. Nós próprios ainda não conseguimos acreditar. Esta abundância, este exagero, foi alguma paixão, amor ou inclinação mal resolvida?
Doutor Mara: Meus caros amigos, muito sinceramente, vejo que são muito imaginativos. Não vejo qual é a gravidade da situação. Querem explicar-me, verdadeiramente, o que é que se está a passar?  
DM: Doutor, você está deitado num deck de um “Grand Soleil 54”. O senhor Doutor sabe, por acaso, quanto é que custou este veleiro?
Doutor Mara: Vejo que só vos move o escândalo, a pândega bisbilhoteira, o escarafunchar da vida alheia. Deixem-se de coscuvilhices, meus caros amigos, é tempo de perscrutar o lado positivo do ser humano. Como vocês sabem, vivi durante algum tempo dentro de uma cratera de um vulcão e, subitamente, quis ser skipper de veleiros e iates de grande dimensão. Qual é o mal disso? Demorei um ano a aprender as competências e os requisitos necessários. Demorei treze dias a atravessar o atlântico neste veleiro, e isto porque quis conhecer de forma descontraída e profunda a filha do capitão do barco, dado os espaços exíguos propícios à conversa e à reflexão, senão tinham sido apenas dez dias de travessia. Por isso, deixem-me em paz, se fazem favor.
DM: Skipper… doutor? Pensamos que o veleiro fosse seu, não é mesmo? Mas skipper, doutor, para o havia de lhe dar?
Doutor Mara: A verdade é que já não consigo viver em terra.
DM: Muito obrigado, Doutor.
Doutor Mara: Não voltem nunca!

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Missiva do Primeiro de Abril de Janeiro Alves

Estimado Dr. Mara,
          Espero que esta carta lhe possa fornecer uma ideia concisa e rejuvenescida do quotidiano deste velho amigo na metrópole, agora dedicado ao comércio e indústria, obviamente na óptica do observador. Há muito que o Dr. Mara não dá notícias, pelo que certamente deve estar a preparar alguma. Todo este silêncio que o envolve cheira-me a esturro, a madeira queimada em tempo de chuva, fazendo antever que algum efeito pirotécnico está a ser preparado no seu laboratório das coisas do pensamento, e concerteza não será a pensar nos encontros da filosofia. Mas sei que me porá ao corrente, poupando-me à despesa de ir ao seu encontro almoçar os habituais filetes de peixe.
          Posto isto, não tenho mais nada de relevante para lhe dizer, à excepção de pequenos acontecimentos, tão pequenos que apenas todos juntos poderão dar algum vislumbre das mudanças que o tempo e o espaço operam em nós.
          Um dos acontecimentos recentes foi o de combinar um encontro com um mestre em artes marciais debaixo duma varanda de um edifício antigo numa das ruas movimentadas da cidade para uma conversa séria, e tudo o que então se desenrolou. Eis que ao passar na zona baixa da cidade para cortar caminho, um pombo capitalista defecou categoricamente em cima do meu fato de asas de grilo, o que me levou ao cancelamento imediato do referido encontro por telefone. Não se podem ter conversas sérias com o fato sujo de merda. Então, na precisa hora em que supostamente nos encontraríamos, a varanda colapsou. O pombo, que na altura foi rigorosamente insultado, acabou por me salvar a vida. Este singelo porém revelador episódio ocupou-me o pensamento por uns dias, levando-me a concluir que não existem acasos, e que por detrás de um facto negativo poderá estar algo de bom. É necessário tempo e dedicação, caro Doutor, para compreendermos a importância dos pequenos acontecimentos. No dia seguinte comprei um pombal para o meu pequeno quintal das traseiras, onde actualmente alimento e educo 88 bonitos e felpudos pombos. Dou-lhes uma alimentação equilibrada, e se continuarem a crescer assim saudáveis, vou transformá-los em pombos-correio. Espero no ano que vem ter dez mil pombos-correio prontos a voar pela cidade e espalhar mensagens de bom humor por toda a gente, como quem dá milho aos pombos, mas de forma invertida. Espero ver resultados dentro de dois anos, onde quero chegar ao milhão de pombos, e estender o seu raio de acção por todo o país. Será uma revolução sem precedentes em matéria de sorrisos. Isto digo-lhe eu, Dr. Mara, que não sou nenhum especialista, apenas um observador deste tipo de fenómenos.
          Outro pequeno acontecimento destes últimos dias poderia ser apelidado de incidente, mas eu prefiro dizer tratar-se de um insólito. Andava eu a passear pelo Rossio, quando avisto uma girafa, a comer as folhas de uma árvore junto a uma esplanada conhecida e famosa ao mesmo tempo. Mas isto não constitui a parte insólita da história. Curiosamente nenhum dos transeuntes deu especial atenção a este fenómeno animal, e nem os nipónicos de férias invernais dirigiram as suas câmeras para este acontecimento. Isto preocupou-me, como pode imaginar, pois por momentos, breves, pensei que podia não estar no meu juízo perfeito. Felizmente, em certa altura um empregado do estabelecimento levou numa bandeja um pastel de nata ao animal, fornecendo-me todas as garantias testemunhais de a girafa era de facto real. Depois imaginei que caso a minha imaginação gerasse ali um animal ilusório, mais facilmente geraria um empregado entregando-lhe um pastel de nata. Mas não me alonguei neste pensamento, pois tinha coisas combinadas à porta do jardim zoológico em Sete Rios.
          Por fim, e para o Dr. Mara fazer uma pequena ideia de como é vibrante e surpreendente a vida na cidade, fiz algumas anotações que partilho consigo: “Os dias são de sol, as fachadas renovam-se e as pessoas vestem roupas leves e esvoaçantes. A rua está cheia de saltimbancos, fadistas, retratistas, proxenetas e transformistas. Há turistas vindos de outros países, e até de outros planetas. Tocam as cornetas e a banda passa, os comerciantes esfregam as mãos com o dinheirinho a entrar e os empresários confiantes com o que se está a passar. A festa já começou, e desde que a agonia acabou, são palhaços, malabaristas, e tudo o que é artista. São famílias inteiras, repartidas, repatriadas, repetidas e recuperadas. São lojas e luzes e cafés e fogo de artifício. São as meninas a crescer e os meninos a aprender. Os velhos já largaram as bengalas e dançam canções revivalistas. Está bom é para os carteiristas e artistas de variedades. É uma feira de vaidades e de quezílias bairristas, cada um a puxar a brasa à sua sardinha, e é bonito o Verão que se avizinha.”
          E por aqui me fico Caro Dr. Mara. Para esta Páscoa, sugiro-lhe um bom bacalhau Pascoal em posta, adquirido em local apropriado, e devidamente confeccionado, para desenjoar dos filetes.
 Janeiro Alves

Da Voz das Coisas

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão