sexta-feira, 23 de abril de 2021

Missiva para Doutor Mara (directamente do salão nobre)

Sintra, Abril de 2021

Caro Doutor Mara,

Foi com moderada mas sincera comoção que recebi a notícia da chegada da sua carta pela minha governanta Maria da Conceição. Ainda com uma singela lágrima a escorrer-me pelo rosto, vesti o meu paletó brasileiro e servi-me da melhor reserva de Macieira, ansioso por notícias suas. Denotei que sucumbiu aos prazeres bucólicos, regredindo às missivas de cariz poético, algo confusas e pouco esclarecedoras do seu estado actual. Conheço muita gente ligada ao comércio e indústria, que agora em cativeiro sofre por se ver impedida de falar da vida alheia. Bastou-me por isso dois ou três telefonemas para saber ao certo a sua degradante situação. Soube do seu recente vício em raspadinhas, e como essa circunstância o colocou numa posição de falência técnica e moral.  Presumo até que os cem euros que lhe emprestei há uns anos para comprar um esquentador inteligente se tenham transformado em papelitos de raspar. Não admira que não lhe sobre pilim para a conta da electricidade. O Doutor Mara tem de pedir ajuda e sair rapidamente dessa situação calamitosa. Infelizmente neste momento não o posso ajudar, pois já tenho coisas combinadas.

Apesar de toda a situação, acredito na utilidade desta carta no sentido poder vir a ser inspiradora.  Andei efectivamente em Foz Côa a passear. Porém foi uma visita fugaz. Nessa época estava ali perto, instalado num hotel termal de grande gabarito nacional, onde fiz tratamentos de rejuvenescimento com resultados visíveis na pele e no couro cabeludo. Imagine o Doutor Mara, que tenho andado a viver de rendimentos. A eleição da minha obra “Compêndio Geral de Plantas Exóticas” como a pior do ano deu-me alguma exposição e nos meses subsequentes vendi milhares de exemplares. Foi uma espécie de “Engano no banco a seu favor, receba dois contos”. Comprei a antiga mansão dos Manaias em Sintra, e tratei de contratar alguns subalternos referenciados pelas melhores casas de tradição pequeno-burguesa: um motorista, um jardineiro, uma governanta, uma cozinheira, uma sopeira (adoro uma boa sopa), uma camareira e uma equipa para as limpezas. Tenho já um quarto reservado para si, Doutor Mara. Caso me queira visitar em breve, tratarei de providenciar para o nosso jantar os melhores filetes acompanhados de uma magnífica Raposeira. Os seus aposentos serão preparados com todo o rigor, e terá como recepção de boas vindas um pequeno cabaz com duas raspadinhas, uma lata de salsichas do tipo Frankfurt, um kit das unhas e um saco para vomitar. No dia seguinte, após o pequeno almoço tiraremos a habitual fotografia de despedida, onde apertaremos a mão enquanto sorrimos simbolicamente para a objectiva. Por fim, o meu motorista o conduzirá para fora da propriedade, enquanto eu permaneço estático, acenando com um lenço de cornucópias à medida que o carro se afasta. Logo após, tudo voltará à normalidade. Aguardo resposta positiva a este convite, Doutor Mara.

Acabo esta carta com um trejeito apreensivo no rosto, e uma das sobrancelhas ligeiramente levantada. É que esse regresso de Miriam ao solar cheira-me a esturro, a mata queimada, a uma indigestão emocional, enfim, a uma primavera de destroços que alastra no seu coração. Não se deixe enganar, Doutor Mara! Ela só quer fazer raspadinhas consigo.

                                                                                    Com sobranceira amizade,

                                                                                                            Janeiro Alves

Elementos da Fauna Açoriana

 "Se examinarmos apenas os animais que vivem sobre o próprio solo destas ilhas, descobrimos que os mamíferos, os répteis e os peixes são aqui de uma pobreza extrema; os pássaros, mais numerosos e variados, mas dotados de órgãos particulares de locomoção que favorecem grandemente a sua propagação, apresentam também um grau superior de interesse. Os moluscos terrestres ou pulmonados, estudados de uma forma mais aprofundada, é certo, do que as outras classes, são, de todos, salvaguardadas as devidas proporções. os animais mais abundantes  e mais marcantes do arquipélago; apenas no seio desta classe é que aparece  uma série de tipos especiais, aborígenes  e dotados de uma fisionomia particular. Os insectos, os aracnídeos, os crustáceos, os anelídeos, terão de ser submetidos a uma observação  mais aprofundada para que seja possível fazer-se a seu respeito  um julgamento equitativo, o mesmo se aplica aos equinodermes, aos briozoários e  aos polipeiros, que talvez sejam, juntamente com os moluscos terrestres, os pássaros e os peixes marinhos, as classes animais mais dignas da atenção do naturalista nestas paragens."

 Henry Drouët in "Èléments de la Faune Açoriénne", 1861, retirado do livro "Viajantes nos Açores", de Maria das Mercês Pacheco, edição Artes e Letras, 2021.