sábado, 31 de dezembro de 2022

2023: Muda que Muda!

         O ano de 2022 está a chegar ao fim e, com ele, permanecerão coisas boas, bem como outras más que se perlongarão no tempo, mas agora com outra roupagem. Felizes estávamos quando pensámos ter saído do pesadelo pandémico, com a ajuda das vacinas e a queda das máscaras, mas foi sol de pouca dura. Não tardou e logo entramos numa guerra em solo europeu. É sempre assim, o progresso humano não pode ser considerado linear.
 2023 vai entrar de mansinho e nós continuaremos por aqui, certamente, com a mesma energia ou à procura dela. Poderia ter sido um ano inesquecível e, no entanto, à semelhança de todos os outros anos, as guerras, a fome, o desperdício e o desequilíbrio humano seguem de forma indelével. Até quando?
   Na verdade, há sempre pouca coisa que muda, sendo necessário destrinçar o essencial do supérfluo, ainda que seja indispensável que continuem a existir a força das canções de Nick Cave, a firmeza do timbre de Cátia Mazari Oliveira, a profundidade de Adrianne Lenker, a dolência de Rita Costa Medeiros ou a melancolia de Maria Carolina e Hillary Woods. De volta esteve também a voz delicada de Anna Jarvinen. E, como seria que o novo ano trouxesse de volta a dupla Medeiros/Lucas com uma mão cheia de canções. Continuando pelo lado dos ouvidos, cada vez mais o palco como atenção e o prazer da escuta, 
a música ao vivo - Sessa  e Rodrigo Amarante, dois príncipes da palavra,  encheram de corpo e alma a edição do presente ano do Tremor!
         Depois, que se continue a ler e reler por aqui a poesia de Alexandre O´Neill, Sophia de Melo Breyner, Ruy Belo, João Habitualmente, Emanuel Félix ou Herberto Helder. Para lá da poesia, há também os ensaios de Theodore Kalifatides e Mário Augusto sobre a condição de emigrante num presente de muros e fechamentos. E que não se esqueçam os livros de Alberto Manguel, deliciosos de ler, interpretação das narrativas do mundo, quando é o prazer inicial da leitura que se renova, ou ainda a curiosidade em mergulhar nos textos e livros de memórias do Jorge Silva Melo, personalidade do teatro que nos deixou recentemente. Foi também o ano em que o cinema andou menos pelo  ecrã do computador ou na televisão. Recorde-se, por isso, o documentário “Lúcia e Conceição”, de Fernando Matos Silva, no Centro de Artes Contemporâneas – Arquipélago, "Les Açores des Madredeus" e “No País de Alice” de Rob Rombout e Rui Simões respectivamente, na Sala 2 do Teatro Ribeiragrandense, através do Clube de Cinema da Ribeira Grande. Por último, “Lobo e Cão”, longa-metragem da Cláudia Varejão no Cinema Trindade, que é uma belíssima expressão do vital e do diverso, devolvendo à ínsula  o sonho e o fascínio humano. 
            Por fim, a memória de uma visita maravilhosa ao jardim do Palácio Palácio de Sant´Ana, onde me foi dado a conhecer as suas árvores frondosas e vistosas, num passeio rico pela diversidade dos elemento vegetais e florais que remontam à herança de oitocentos, num percurso em que se avistam araucárias, yucas, melaleucas e dragoeiros, para além de um metrosídero que conta com 170 anos de idade oriundo da Nova Zelândia. Tudo o resto é do domínio do indizível. Um feliz 2023!

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O Teu Nome de Alexandre O´Neill

Flor de acaso ou ave deslumbrante
Palavra tremendo nas redes da poesia
O teu nome, como o destino, chega,
O teu nome, meu amor, o teu nome nascendo
De todas as cores do dia!
(19-12-1924 - 21-08-1986) 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

domingo, 25 de dezembro de 2022

Cineclube Octopus: Uma Bela Manhã

      Pascal Greggory e Léa Seydoux entregam-se a esta “Bela Manhã” e quem ganha são espectadores deste novo filme Mia Hansen-Løve. Assistimos ao drama da degenerescência de Georg Kienzler, antigo professor de Filosofia, que vai perdendo a sua autonomia pessoal à conta do síndrome de Benson. As filhas Sandra e Elodie julgam ter chegado o momento de internar o pai num lar de idosos mas o lugar escolhido torna-se uma impossibilidade, à semelhança do romance de Sandra com Clément.
      Um filme outonal que nos devolve o gosto de ver actores comprometidos com a fragilidade do corpo e dos sentimentos. Mia Hansen-Løve filma Léa Seydoux com grande sensibilidade e, por isso, esta tem aqui um papel de grande contenção e envergadura física.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Da Queda

 
"Todos esses livros mal lidos, esses amigos mal amados, essas cidades mal visitadas, essas mulheres mal possuídas. Eu fazia gestos por enfado ou distracção. Os seres vinham logo atrás, queriam agarrar-se, mas não havia nada, e era a infelicidade. Para eles. Porque, quanto a mim, eu esquecia. Nunca me lembrei senão de mim mesmo."
Albert Camus, A Queda. 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Jardim da Parada: César e Reis Juntos!

           “Estes textos, que se tornaram “objecto” graças à perícia do Luís Henriques e do Pedro Santos, foram escritos durante a ressaca amena de uma dessas feiras do livro. Partem de situações e de pessoas concretas, denunciam graças e misérias que não serão exclusivas da poesia. Esta é, em rigor, uma arte verbal (ou, não poucas vezes, uma arrogante impostura). Mas não é abusivo encontrá-la no cinema de António Reis e de João César Monteiro. Ambos escreveram poemas, como é sabido, mas foi talvez no cinema que atingiram a mais alta expressão poéticas de que eram capazes. César renegou todos os seus poemas: Reis apenas uma parte. Ali ao lado, na Travessa do Patrocínio, Fernando Assis Pacheco ouvia Jack Teagarden e Chet Baker, enquanto realizava (em verso) alguma das melhores curta-metragens do século XX.”
            
in “Comércio Local- Jardim da Parada”, Manuel de Freitas, edição Paralelo, Maio de 2018.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

O Dicionário de Paulo Varela Gomes

          “O mais poderoso instrumento de conhecimento com que já trabalhei é um diccionário. Intitula-se (traduzido do francês) Diccionário de Arqueologia Cristã e de Liturgia. Foi publicado em Paris entre 1903 e 1940, durante 37 anos portanto, e consta de 15 tomos e 30 volumes com dezenas de milhares de entradas e notas em letra pequenina. Escreveram-nas, com a informação colhida de por muita gente, dois frades beneditinos: Don fernand Cabrol e Don Henri Leclercq. A obra existe em quatro bibliotecas públicas portuguesas: a Nacional, as da Universidade de Coimbra e Católica, a Gulbenkian.”

Paulo Varela Gomes, "Público", 19 de Fevereiro de 2010

terça-feira, 29 de novembro de 2022

FALTA#5: O Número Zero foi em 2018!


         Decorria a Primavera de 2018 quando começámos a pensar na edição zero da FALTA dedicada ao nome atribuído à revista/fanzine. Um nome que, por si só, projectava esse enorme desejo de materializar uma ideia  e a vontade de preencher um espaço. Arriscamos, como condição inicial, fazer toda a edição em tipografia, tendo como princípio explorar os materiais associados ao desenvolvimento de técnicas relacionadas com a serigrafia. O balanço, à altura, apesar de toda a inexperiência e demais desmandos, foi continuar as possibilidades dento do campo da impressão em serigrafia, essencialmente na realização da capa ou encartes. Em quatro anos, mesmo com pandemia, seguiram-se  edições dedicadas à Falha, à Folia, ao Falso, à Força e, também porque nos encontramos a meio do atlântico, concluiremos, em Dezembro, um número dedicado à Fauna/Flora.
       É, assim, que, pela primeira vez, juntamos dois temas que nos são próximos, assuntos que não podemos descurar e, que de tão valiosos, nos solicitam para manter o nosso foco disponível, atento, para além de estabelecermos uma vigilância que se quer redobrada. É um tempo novo que exige crítica, curiosidade, esforço e invenção. Queiramos, assim, que desta forma iremos disponibilizar energia, empenho e saber ao serviço do nosso entorno por aqui.
      Para já, vem aí mais um número da FALTA, sempre com muita gente a colaborar, pessoas que deram contributos de áreas tão diversas, oriundas de geografias distintas, à semelhança das participações do miolo que reflectem a ilha e o arquipélago onde vivemos. A FALTA está, portanto, pronta para ir de novo parar às mãos dos leitores e estes conhecerem outra experiência física inesquecível. Cumpriremos, assim, este desígnio actual, mantendo acesas as esperanças de que outras edições ainda melhores estarão por vir. Tenhamos, nós e vós, a paciência de aguardar. Aguardemos.

A Rapariga da Mala

La Ragazza con la Valigia de Valerio Zurlini
Cartaz daqui https://www.mymovies.it/film

Verso de Ângelo de Lima

 Pára-me de repente o pensamento 

FALTA#5: Fauna e Flora!

       Durante os dois dias deste fim de semana  fomos até às Oficinas de São Miguel, ali permanecemos envoltos em tintas e impressões da capa da FALTA#5. As Oficinas de São Miguel foram, assim, espaço aberto para todas as mãos e tintas necessárias para encetar esta parceria FALTA-Homem do Saco. O resultado é aquilo que iremos ver e tactear em breve. Na verdade, sempre foi um desejo antigo juntar gente com os mesmo propósito,  isto é, tornar a FALTA um espaço de aprendizagem, conhecimento e partilha das artes gráficas. Desta feita, acolher por aqui o Coletivo do Homem do Saco foi dar-lhes carta branca para criar e mostrar muito daquilo que eles tanto gostam e sabem fazer: a impressão serigráfica! Uma coisa é certa, eles gostaram muito de estar connosco e, como quem não quer a coisa, concretizaram rapidamente a impressão da capa desta edição que podemos considerar partilhada e conjunta, ainda que o cunho seja maioritariamente deles. É, sem dúvida, uma edição que mergulha a fundo na fauna e flora, traz essa respiração do mundo envolvente que nos circunda e o desejo de o tornar, caso ainda for possível, um lugar melhor! Um feliz bem haja!

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Apresentação de "Mandem Saudades"

          É um livrinho pequenino editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, não custa mais de cinco euros, e tem o título “Mandem Saudades”. O seu autor é Mário Augusto, jornalista da RTP e realizador do programa sobre cinema - “Cinemax”, que também fez um documentário com o mesmo nome. O livro e o filme serão hoje apresentados, às 18 horas,  no Auditório da Freguesia de Santa Clara, em Ponta Delgada.

         “Mandem Saudades” retrata e emigração portuguesa no Havaí, aquela que foi realizada entre o final do século XIX e início do século XX, contendo relatos da comunidade portuguesa que ainda hoje mantém viva algumas tradições. Nesta saga emigrante é de destacar a grande quantidade de açorianos que se estabeleceram por aí, contribuindo sobretudo para a baleação e o trabalho nos campos da cana do açúcar. Por lá deixaram ainda as festas do Espírito Santo, o pão doce e as célebre malassadas açorianas! 

Árvore e Poema

Aqui está uma árvore
o vento canta poemas sem palavras
na sua ampla copa
Sei
que o destino da árvore é transformar-se em papel:
um papel com ânsia de palavras
Sei
de uma palavra
com ânsia de se plasmar no papel
de uma palavra com ânsia de começar um poema
Sei de um poema não escrito que tem ânsia da sua
primeira palavra
de um poema que tem ânsia do seu poeta
Mas sei também
que o poeta sofre
quando se abate a árvore para a transformar em papel.


Maria Wine,  Nattlandia, 1975

Nefelibatas de Todo o Mundo...

 Aqui olha-se para o céu: https://cloudappreciationsociety.org/

PS; Via reportagem DN: https://www.dn.pt/1864/a-sociedade-dos-que-andam-nas-nuvens-10149441.html

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Terça-Feira

Não tragas
o aroma
dessa rota azul
 
hoje é terça-feira
e eu tenho
as pernas ocupadas
com o outono
de outra rua
menos morta
 
 Hoje é terça-feira
mas não sei
ouvir outra zoada
se não os teus
sapatos brancos
repletos de noite
a descer
a escada do meu
corredor esquecido.

 J.H. Borges Martins in “Por dentro das Viagens”, 1973, edição de autor.

domingo, 20 de novembro de 2022

Público: Primeira Página

Sábado: "O `mundo à parte´ dos trilhos e das fajãs de São Jorge"
Domingo "Ponta Delgada quer ser uma democracia cultural" 

in Jornal Público

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Um Poema de Miguel Martins

A vida é impossível, não importa
o Vicks Vaporub, o que  nos fazem 
ou o que nós fazemos, se ou quando.
Desde que o primeiro homem se lembrou
de que não era cão, ficámos condenados
a saltérios e musas e juros com fermento,
à sina de gravatas e aprestos.
Que mal tinha ser cão, além do bem
de comer carne crua e cheirar cus
e vaguear pelas estações do mundo?
Mas não: havia que salgar a focinheira
do porco, pôr rosmaninho nas virilhas
e inventar a cadeira rotativa,
moribundelirar amores obtusos
e de tudo intentar a mais-valia,
composta e previdente e pequenina.

Ora acontece que, seja dia ou noite,
só me apetece ladrar à maresia. 

in "Do Lado de Fora - Dispersos escolhidos-1995-2017"-edições Abysmo.

domingo, 6 de novembro de 2022

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

"No País de Alice" de Rui Simões


    No País de Alice é um bonito filme! E, ultimamente, não abundam filmes bonitos! É um filme para todos aqueles que ainda gostam 
muito de Portugal, uma declaração de amor a este país antigo com séculos de história, um cartão postal apaixonado em forma de poema visual para um país que não desiste das suas raízes, que não renega, mas, sim, exalta a valorização do seu território periférico e que, por sinal, ainda não vacilou completamente perante uma globalização que tudo oblitera, uniformiza e condena ao desaparecimento.
Neste documentário de quase duas horas, o realizador socorre-se da sua filha para mostrar este bonito país que se recusa a desaparecer. Para dar conta desse testemunho, Rui Simões viajou com Alice para lhe mostrar uma paisagem rica e variada, que vai dos Açores a Pitões das Júnias, passa pelo Soajo, Aveiro, Idanha-a-Nova e Belgais, para depois se encerrar em Lisboa, por motivos do pesadelo inicial da pandemia da Covid-19. Mas nem só de história e tradição vive  este “No País de Alice” – essencialmente na força das filarmónicas e dos caretos – já que  também arrisca com os nómadas digitais que se afastam dos grandes centros para viver junto da natureza ou a ideia do guardião do tejo que usa as redes para denunciar a poluição, para lá da galeria de imagens e de afetos do fotógrafo Álvaro Rosendo, ainda a escola de música de Belgais, pela mão de Maria João Pires, que nos traz a arte de viver. E, por falar em música, nada mais imprevisto e entusiasmante do que seguir estas imagens acompanhadas pela sonoridade dos Dead Combo, na guitarra mítico-mágica de Tó Trips, para além do desfecho desesperante e sombrio pela voz de Nick Cave.
 Última nota para aludir que o filme foi exibido em antestreia nacional na sala 2 do Teatro Ribeiragrandense, e que, ainda dentro deste ciclo de documentários promovidos pelo Clube de Cinema local, exibirá já esta sexta-feira, outro belo e instigante documentário intitulado - “Les Açores de Madredeus”, de Rob Rombout que, à semelhança de Rui Simões, também ele, estará presente para falar com o público açoriano.  

terça-feira, 11 de outubro de 2022

“Les Açores de Madredeus”, de Rob Rombout, no Ribeiragrandense


           “Les Açores de Madredeus”, documentário de Rob Rombout, será exibido na sala 2 do Teatro Ribeiragrandense, no dia 14 de outubro, sexta-feira, às 20h30, numa sessão do Clube de Cinema da Ribeira Grande. 
              Esta obra cinematográfica, rodada no arquipélago açoriano, documenta as origens e o percurso da banda portuguesa mais internacional de sempre - os Madredeus. Ao longo de quarenta minutos acompanhamos a paisagem açoriana e os seus lugares emblemáticos, povoados por uma banda sonora por nós reconhecível.
    A sessão contará ainda com a presença do documentarista Rob Rombout, nascido em Amesterdão, em 1953, professor e habitante da cidade belga de Bruxelas, desde 1975.  O realizador de filmes documentais, há mais de três décadas, é também professor na St. Lukas, escola de cinema e arte de Bruxelas (LUCA). Este já realizou mais de trinta documentários, sendo que grande maioria dos seus documentários já foi exibida nos canais televisivos e salas de cinema de todo o mundo.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Ribeiragrandense: Houve Jonathan e também PMDS!

     De forma surpreendente e elegante deu-se a rentrée musical em São Miguel, mais concretamente na Ribeira Grande e no seu mais que belíssimo teatro centenário, o Ribeiragandense. Foi no sábado, dia 10, com uma sala bem preenchida e com uma plateia atenta e ansiosa por escutar inicialmente a música do guitarrista canado-terceirense, de nome singular: Jonathan. Sim, é de origem terceirense, já que regressou muito tenro do Québec, no Canadá. A sala estava escura e ele, no auge da sua timidez e nervosismo, começou por augurar um bom espectáculo, referindo também nas suas palavras que se trataria de uma viagem musical. Jonhathan parece ter a guitarra como extensão do seu corpo, a respiração e cadência sente-se e é notória para quem assiste de longe. É urgente gravar estas deambulações sonoras, são cordas à solta com trinados de grande fulgor. Algumas mesmo em delírio, errantes, outras em porto seguro. E, sejamos sinceros, quem entrou neste enleado sonoro só se pode dar por feliz, extenuado, contente por saber-se tonto, exausto. Não, não era ukelelé, mas aquelas cordas navegantes cativam, serpenteiam, são águas agitadas e profundas daquele modo ilhéu nervoso, numa contensão imprevista, sedutora até à exaustão.

      De seguida, apareceu em palco a dupla PMDS, anunciados como cabeça de cartaz, o que provariam de imediato quando encetaram a audição dos temas do álbum “Caloura”, editado em Janeiro deste ano. Num cenário coroado de pura atmosfera tecno-electrónica, por vezes celestial, outras mais experimental, sem esquecer as raízes e a tradição, como foi o caso da execução do tema tradicional terceirense - “Meu Bem, desta feita elaborada ao piano de forma minimal, com roupagens de música pré-gravada. O público presente rendeu-se ao diálogo sonoro protagonizado por Pedro Sousa e Filipe Caetano, não esquecendo a imponência do cenário, aqui numa composição plástica de Marco Machado, quase espacial, algo etérea. 
    Desta feita, os PMDS passearam-se em palco propondo múltiplas viagens, e  num desses itinerários tinha por título "Berlin", evocação da capital alemã, contando também com um público “amigo e familiar”, que estava atento e cativo das camadas e atmosferas sonoras provenientes da dupla. Podíamos, evidentemente, destacar uma paleta variada de influências dos PMDS, como os Kraftwerk ou Tangerine Dream à cabeça, mas há algo de particular e distinto que nos transporta para um lugar outro ainda por nomear. Ou, muito simplesmente, a vontade de agradecer este devaneio musical produzido na ilha maior! 

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

"Pano Cru" de Sérgio Godinho

Capa de José Brandão
 







Verso de Chico Buarque

 Que tal um Samba? 

Sobre o "Inverno Demográfico"

     "O nosso "inverno demográfico"(uma metáfora tão congelada como a "longa noite fascista", que assola em diferentes graus de gravidade toda a Europa, desvia-nos da verdade demográfica, quando apreendida na escala planetária: a população mundial aproxima-se dos 8 mil milhões e não pára de crescer. Não há um problema global de falta de gente; pelo contrário; há gente a mais. Não há um déficit demográfico; há um problema de carácter biopolítico. Os desequilíbrios na distribuição de população pelos territórios são análogos aos desiquilíbrios na distribuição da riqueza. Mas o que se perfila no horizonte é que esta situação (agravada por outros desiquilíbrios) ) é insustentável e os sintomas disso já estão bem à vista: a população escolar diminuiu mas, ainda assim, não há professores suficientes, tal como não há gente para trabalhar nos cafés, nos restaurantes, nos hotéis, nas vindimas, na construção civil. Actualmente, um eletricista ou um carpinteiro são requisitados como figuras comunitárias dos quais se reclama o cumprimento não de uma tarefa, mas de uma missão. E não se pense que é um problema português: a Alemanha para fazer face ao déficit de mão-de-obra nos mais diversos sectores(alguns dos quais completamente estrangulados) precisava de recrutar cerca de dois milhões de pessoas".

António Guerreiro, in "A obsolescência não programada", Ípsilon, 2 de Setembro de 2022. 

Man Ray

Sem título, 1931
 

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Figueira da Foz: "Os Cinéfilos da Sétima Arte"!

Cartaz de José Brandão
É sempre bom recordar, lembrar com acuidade aqueles dias ainda de sol do mês de Setembro, nem que seja porque vamos entrar no tempo do calendário em que o verão se despede. Por esta altura, há mais de três décadas, rumávamos para a Figueira da Foz e, sobretudo, estávamos preparados para invadir as salas de cinema do Casino daquela cidade costeira. Durante dez dias, víamos e ocupávamos as praças e esplanadas nas redondezas para conversar após os filmes naquelas salas povoadas de cinematografias oriundas de proveniências diversas acompanhados por gente ligada à realização e produção de objectos cinematográficos.  
    A Figueira da Foz, naqueles dias setembrinos, era o "farol" da sétima arte. Era lá que encontrávamos outros membros dos cineclubes de Portugal e estrangeiros, realizadores de cinema, amantes das imagens na tela e outros tantos curiosos da sétima arte. Muitos de nós éramos estudantes e, talvez por isso, havia um forte apoio nos transportes para ali chegar, na estadia e alojamento, bem como na alimentação necessária ao visionamento de várias jornadas cinematográficas ou ainda reduções no passe geral.
    Desta feita, rumar à Figueira por estes dias de Setembro era sinónimo de lazer misturado com descoberta da essência das imagens em movimento. Quem quisesse aprender em conjunto havia ainda tempo para ir às palestras matinais de Pierre Dumont, naquelas sessões apelidadas de “Quoi dire aprés le film?”. E, muito facilmente, sentados nos bancos e esplanadas se avistava e falava com gente conhecida na realização – Samuel Fuller, John Mekas, Fernando Lopes, entre tantos outros. Ou ainda aquele famoso transeunte que, de cada vez que nos encontrava, nos decidiu cunhar com um pleonasmo, ao referir-se aos "Cinéfilos da Sétima Arte", o grupo dos que chegavam à cidade por esta altura. 
Por último, convirá referir que a organização do Festival, sobretudo nas últimas edições, faz agora vinte anos da última edição, em 2002, nem sempre foi pautada pela perfeição, no entanto, graças à boa vontade e entusiasmo, tudo era superado por essa liberdade e disponibilidade de ver filmes sem critério, à deriva, à semelhança destes dias em que dizemos adeus à estação dos grilos e das melancias e vamos, assim, retomando labores e compromissos.

Portugal Visto por Georges Dussaud

Trás-os-Montes, 1981
 


quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Um Verso dos Zero Amarelo

 E trago o negro nos olhos pintado 

Aguarela Voadora


 

"Mandem Saudades" de Mário Augusto

   
Capa de "Mandem Saudades"
   "Presume-se que os nossos primeiros patrícios a ficarem pelas ilhas foram tripulantes dos baleeiros açorianos que ali chegavam para passar o inverno, recusando-se depois a voltar ao mar, até porque muitos deles tinham sido tornados marinheiros à força, resgatados em terra para reforçar tripulações dos barcos de caça à baleia.
    Em 1853, é referida em documentos a presença de 86 portugueses na ilha de Oahu, onde fica a capital, Honolului. Era ainda uma comunidade muito pequena, essencialmente oriunda de Cabo Verde e dos Açores. Dez anos depois, eram já 500 os homens portugueses, quase todos ex-caçadores de baleias que foram ficando espalhados pelas ilhas habitadas - na sua maioria, tinham desertado dessa perigosa perseguição dos cetáceos. No meio do Pacífico, aquele era o local escolhido pelas baleias grávidas, que aproveitavam o inverno para que as suas crias nascessem nas águas calmas de Lahaiana. A frota baleeira, sempre com muitos açorianos e cabo-verdianos, foi mantendo a rota até quase ao fim do século XIX. 
        Com tantos lobos-do-mar a chegar, não admira que aquele porto fosse terra firme para o prazer, o álcool, muita pancadaria de marinheiros e todos os excessos que as longas temporadas nos oceanos tinham interditado.
Quem também passou por Lahaina na mesma época, em 1843, tendo lá ficado seis meses - de boémia e inspiração - foi Herman Melville, escritor americano que em 1851 publicou o romance  Moby Dick, onde descreve os destemidos marinheiros portugueses. 
     É claro que o corrupio das mulheres nativas a entrar e a sair das embarcações criou alguns embaraços na comunidade mais conservadora e religiosa, tendo o assunto sido várias vezes discutido com o rei.     
    Na segunda metade do século XIX, a indústria baleeira entrou em crise, e foi nessa altura que se reconverteu a economia das ilhas com a plantação intensiva da cana-de-açúcar e ananás."
Mário Augusto in "Mandem Saudades", Fundação Manuel dos Santos, Maio de 2022.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Um Poema de Manuel `Fernando´ Gonçalves

 Dizem à noite,
que as casas são circulares.
Objetos que se vestem
de outra natureza, térmicos:
metáfora do Sol
que crispa as imagens.

in Caos,  Novembro,1987, Frenesi

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Um Verso dos Sétima Legião

 Hoje, num vento do norte 

Velhos Hábitos

        O que acontece quando o jornal que pretendemos comprar não chega? É verdade que podemos ler o mesmo na internet, no tablet ou nesses écrans espalhados por todo o lado, pois há páginas de jornal online de todo o mundo disponíveis num abrir e fechar de olhos. No entanto, há também hábitos antigos que teimam em desaparecer. É difícil, mesmo muito difícil desistir desse velho costume diário de sair de casa com o propósito de comprar um jornal de que gostamos para assim poder lê-lo em algum café, balcão ou esplanada. É que nessa demanda está implícita a procura do seu local de venda em determinado espaço  citadino, envolvendo uma rotina que se repete quotidianamente que só uma grande paixão abarca, pautada pelo movimento e exercício de um determinado ritual, que ao longo do tempo foi resistindo e permanecendo. Até quando?

Poema de Joaquim Pessoa (3)

 Não sei como deveriam ser as coisas
Profundas como a sede de uma jóia ou
tão leves como nomeá-las simplesmente.
Mil milénios de feridas, mistérios e 
esplendor cabem devagar na fala. Tudo é
incalculável, a vida é incalculável, as
coisas serão a memória de si mesmas.
Existe tanta força no que não sabemos. É 
tão pobre a lembrança, vazia a luz das 
nossas mãos, sombria a superfície de todas
as vitórias. Que vale menos? O oiro
de cabeças sumptuosas ou os segredos
dos dias que se esgotam? O êxtase 
está em gastar a vida sem saber 
como deveriam ser as coisas. 

in "Por Outras Palavras", Litexa Editora, 1990.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Sobre "As Pescas em Portugal"

        "Os Pescadores, de Raul Brandão, fresco literário publicado em 1921, ainda hoje constitui a etnografia mais conhecida sobre a pesca e os pescadores. É rara a sessão pública sobre estes temas onde uma bela frase do escritor não sirva de epígrafe a exaltações pitorescas ou grandiloquentes sobre as pescarias de Portugal.
     Nascido na Foz do Douro, em 1867, acostumado às lides e tragédias do mar, quando terminou a carreira militar Raul Brandão dedicou-se ao jornalismo e à literatura. Num tempo de transição para um mundo novo, de acentuada industrialização das pescas, Os Pescadores são uma prosa impressionista de múltiplos sentidos, menos literária do que parece. Assente na observação directa da paisagem litoral, a narrativa consiste numa visita guiada pelas praias e enseadas de pesca do litoral português. Com mestria literária e alguns arroubos mitificadores, o escritor realça a diversidade de uma paisagem geográfica e humana ameaçada de corrosão. As tensões entre uma pesca industrial em expansão e as velhas pescarias artesanais perpassam nos textos do escritor andarilho. As consciências dos desmandos pelas artes de embarcações depredatórias agudizam a concorrência em tempos de crise do abastecimento. Por isso, durante a República o Estado aperta os regulamentos que restringem os arrastos. Já em 1928, é proibido o registo de propriedade de novos galeões e traineiras que usassem redes de cercar para bordo e interdita-se qualquer alteração dos existentes."

 in As Pescas em Portugal de Álvaro Garrido, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Maio de 2018.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O Verão e os Jornais Estrangeiros


    Todo e qualquer verão pode ser um repositório e catalisador na evocação de memórias passadas. Aquele restaurante situado em frente à antiga escola secundária já não tem, ao lado do balcão, o pequeno quiosque onde se vendiam e liam jornais estrangeiros. É o filho do dono que conta que, após a morte do pai, já lá vai mais de uma década, as pessoas deixaram de procurar aquele quiosque para comprar os jornais que ali ganhavam destaque e exposição no mostruário: “El Pais”, “Le Monde”, “Le Figaro”, “La Reppublica”, Corriere della Sera”, “Die Welt”, o “Globo” ou a “Folha de São Paulo”, bem como tantos outros. Era comum estes jornais, após a leitura dos seus compradores, ficarem espalhados pelas mesas, misturados depois com os periódicos nacionais e dos desportivos. Comprar um jornal significava, assim, ler os outros todos e trocar opiniões sobre o conteúdo dos mesmos, sendo os interlocutores novos e velhos. É com saudade, talvez mesmo uma nostalgia funda, que agora deixamos de ver aqueles jornais estrangeiros espalhados pelas mesas, ao mesmo tempo que serviam de motivo de tantas conversas dos habituais frequentadores daquele café. Para além das línguas que se aprendiam, do conhecimento que se adquiria  e do desejo de viajar que, para muitos, começava ali a despontar.

"In God We Trust" de Miguel Mansilha

 Os portugueses de New Badford
ainda moram na ilha
E transportam a candura própria 
de quem respira o ar de São Miguel
Diferem dos credos, mesmo os cristãos,
pois tem uma relação menos materialista 
com o "american dream".
Quando olham as notas verdinhas do tio Sam,
chamam-lhe uma dólar 
com a ternura de quem faz amor
com uma couve tronchuda
depois das geadas de Janeiro (tão tenrinha!)

domingo, 21 de agosto de 2022

Falar da Vida

     "(...) O que é a vida se não fossem os livros, os espectáculos, se não fosse o cinema, a música? A vida é isso. A vida não é ir para uma praia e olhar para o mar. Esse é um lado melancólico da vida. Claro que é óptimo ir para a praia, seja no verão ou no inverno. A vida, na verdade, são as coisas que podemos fazer com ela, e a forma como absorvemos outras influências. As minhas influências não vêm da fotografia."

Entrevista a Daniel Blaufuks por Cristina Margato, in Revista Expresso, 19 de Agosto de 2022. 

Ontem, escrito numa parede da cidade

 A esperança é um avião atrasado 

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

"A Bicicleta" de Mário Rui de Oliveira

" Já não assobias à passagem dos barcos. Cada vez mais, as mãos recolhem aos bolsos. A bicicleta repousa, talvez para sempre, na velha garagem. Os húmidos campos amarelos sucumbem às queimadas. Os dias, esses, impiedosamente, azuis.
Só a música de um fiozinho de luz te sustenta." 

in "O Vento da Noite", Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.