quarta-feira, 20 de março de 2013

Coragem


Cartaz do filme "Má Raça" de 1986


“Mas acho por bem encarar cada filme como o primeiro e último. Talvez seja preciso ter coragem para isso, mas coragem temos todos muito pouca, o que me preocupa. E aqui não estou só a falar de cinema, mas de coragem física. De coragem civil. De coragem lírica. Devíamos ter aulas de coragem na escola. O certo é que o mundo virtual não ajuda a criar coragem. Aquilo a que chamamos redes não são redes de resistência, mas sim redes de cumplicidade. As pessoas sentem-se muito bem, assim escondidas, mas na verdade são muito pequeninas.”





Leo Carrax, in Ìpslon, Público.

Três Sacrilégios no Peter

1.“Senor, is this Horta, is this Peter Island?” Não percebe nada de mar e veio aqui dar à costa, este inglesinho que, de certeza certa, fugiu à escola para brincar aos barquinhos. “And Faial Island, if you don´t mind”, digo eu. Não sossegou e acredito bem porquê: estou na catedral dos iatistas e pediu a Mr. Peter Azevedo uma coca-cola com muito gelo. Estava cometido o primeiro sacrilégio.
2.Sentado a uma bela e ossuda mesa de castanho roseira, ia deixando que o fresco gin me aquecesse a garganta “Lembras-te, José” – perguntava já meio tonto ao José que sou eu – “do Peter velho aqui ao lado com o velho Peter todo branquinho naquela cabeça a preparar gins porreirinhos às escondidas para ninguém saber o truque? Lembras-te, José, da tua primeira vez? Foi uma, foram duas, foram três e à quarta, pifaste! Tão novinho e pifaste José!.. Pifei, José!” – respondo eu ao José  que sou eu. Um puto em idade colegial e em férias pascais, entornar de uma só vez quatro torneiradas de gin-tónico, é cá um pifo e tantas. Sonhar com o que foi bom no passado, também é um sacrilégio. Este é o segundo da crónica.
3.Decididamente, não gosto dos “Cruzeiros”. Dói-me na alma olhar ali para a acrobática “Espalamaca” e vê-la na bancada, como menina trapezista de circo arrumada na prateleira. Sentado no muro em frente ao “Peter” e olhando defronte o Pico, falta-me as “lanchas” e os mestres e os marinheiros e os cestos de duas asas chegarem carregados de ameixas vermelhas e de homens e mulheres de chapéu-abeiro. E falta-me também aquelas testas tisnadas de mar do pessoal das “lanchas”. Nesta nostalgia, o terceiro sortilégio agora é meu: É pecado estar de costas seja para que altar for. É que eu já não sei se hei-de olhar para o Pico, ou vê-lo reflectido numa vigia do “Peter-Café Sport”.

José Daniel Macide, Junho de 1989, in Crónicas da Portugália