terça-feira, 5 de maio de 2020

Chegou Primavera

“Chegou a Primavera. O vale de lágrimas que se espraia à frente da minha janela volta ao verde e floresce. A relva viçosa cobre o chão, esconde lixeiras e a geena transforma-se no vale de Saron onde crescem, além dos lírios, lilases, rubínias e paulownias.
Sinto uma tristeza de morte mas o riso alegre das raparigas que brincam, invisíveis, debaixo das árvores, toca-me o coração e desperta-me para a vida. E a vida corre, e a velhice aproxima-se; mulher, filhos, lar, tudo foi devastado. Outono por dentro, Primavera por fora. (...)”

August Strindberg (1849-1912)in “Inferno”, tradução de Aníbal Fernandes.

"A Herdade": um filme de Tiago Guedes

O filme “A Herdade”, de Tiago Guedes, acabou de ser exibido na RTP 1, em quatro episódios. Esta longa metragem teve um enorme impacto aquando da sua estreia, registando 70 mil espectadores em sala, venceu inclusive um prémio Bisato d´Oro (Melhor Realização) no Festival de Veneza tal como ainda foi nomeado enquanto película representante de Portugal nos Óscares do ano passado.
Tiago Guedes compôs aqui um retrato vivo do Estado Novo até ao Portugal contemporâneo através de uma família proprietária de um latifúndio a sul do Tejo. O filme incide sobretudo no final da ditadura, os acontecimentos do pós 25 de Abril até à normalização europeia, com a entrada na CEE. O realizador contou nessa tarefa com a colaboração do argumentista Rui Cardoso Martins, sendo que a tessitura psicológica e dramática das personagens esteve a cargo do realizador. Ressalte-se deste modo a representação do actor Albano Jerónimo, com trejeitos de galã irascível, ao interpretar o papel de João Fernandes, o dono da herdade, e que tem o condão de prender e seduzir o espectador nessa travessia à volta da nossa história recente. O “dono disto tudo” não poderia ter sido melhor representado num país e num mundo em transformação, aliás, numa mudança que não teria mais retorno. Curiosamente, a sua personagem faz muito lembrar outra do cinema português - a de “Tomás Palma Bravo”, obra de Fernando Lopes/José Cardoso Pires, em o “Delfim”. A acompanhá-lo estão também Sandra Faleiro (Leonor), Miguel Borges(Joaquim) João Pedro Mamede (Miguel),  entre outros, numa produção de Paulo Branco. “A Herdade” é, pois, um filme suado e bem trabalhado, com garra e uma banda sonora que cria tensão suficiente, para lá de uma fotografia que apela a um tempo lento e delicado.