sábado, 15 de fevereiro de 2014

Nuvem Nómada

         Por onde anda a nuvem nómada? Da janela é fácil avistar o halo da hélice em aflição e neste atlântico veio o espraiar da largueza deste olhar que consente a lonjura e a desmesura deste oceano. Este movente pássaro transporta um ser a levitar de uma ilha a outra e é como se remetesse um dolente fardo, um aéreo corpo em fuga, magoado, estendido, confinado à sua existência de assento e de passageiro em trânsito. Um cagarro apavorado e à deriva. Atento unicamente à luz e ao seu arco proveniente da janela onde o carregado da cor do mar e do celeste céu é suficiente para afinar as agulhas da melancolia encoberta. Sem horas de sono, a imaginação tende a derreter e a discorrer sobre os minutos, os segundos, o tempo veloz e o ar rarefeito, contraído, para daqui a pouco regressar ao horizontal leito em dormência acelerada. Desligar o lastro de fogo e lume dessa boémia estada, ainda que ilustrada, é agora caminho lento que se percorre até aos motivos de um promissor presente. No fim da viagem é na  curva descrição da asa, em plena queda, que se instala a ambicionada  fadiga e daqui de cima se abraça a aproximação à pista deslocando  por momentos o devaneio de um quarto ao fundo, um lugar interior para repousar a cabeça e poisar o ombro, enfim pernoitar. Beneficiar por instantes do ampliado desenho na aterragem é já um contentamento atmosférico. Já não adianta conjecturar ilusões sobre o fundo do mar ou fantasiar com os barcos a afastarem-se ao longe. De súbito, estrear no vidro o toque da nómada nuvem a conflituar com o vento na descida.  Medo. E já nem a advertência do sonho chega com a queda de água oriunda desse céu coberto de nuvens negras, por sinal sedentárias, que obrigam a acordar. A despedida da nuvem nómada.

Invocações

hoje
os naufrágios nas gavetas
tomam o ritmo dos dias
na neblina de seu seio
a nudez e a luz
confundem-se nas camadas
do agnosticismo natural das coisas

(deus não é eterno

 por detrás das colinas do medo)

a distância
sobejando as trevas
feitas da prata e dos teus ossos
numa escura condensação
de ecos
e silêncios

germina-se ou derrama-se
o interior das coisas
conforme o sangue
ou as lágrimas
quando se adia o silêncio ofegante
das consequências
invocamos casas
melodiosamente desconhecidas
nas esquinas
quando surgem teus olhos
tua voz
inteiros concretos palpáveis
e juntos rompemos as palavras
das extensas narrativas do tempo

Leonardo Sousa in “há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”, Letras Lavadas, 2013.