quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Carta a Janeiro Alves no Findar de Fevereiro

Caro amigo Janeiro Alves,

Gostaria de dizer-lhe o quanto venerei a sua missiva em meados de Fevereiro, talvez porque há muito não lia um escrito em língua portuguesa tão livre e serenamente escorreito. Os meus sinceros encómios para si e para os seus mestres de longa data, obviamente, pois tenho a certeza que esta epístola amiga será guardada secretamente debaixo de um colchão de uma cama setecentista, à semelhança do que realizava na infância com os maços de notas do monopólio, após várias vitórias consecutivas. Ando, portanto, há alguns dias impaciente para lhe responder, mas, como o meu caro amigo bem sabe, as minhas austeras e vigorosas rotinas, deixam-me sem tempo nem espaço para fazer seja o que for. Escrevo-lhe, por isso, agorinha mesmo, antes de me recolher no meu leito de Morpheu, logo após comer as minhas papas de flor de aveia e efectuar somente dois sopros no narguilé.
Tenho levado, nos tempos mais recentes, uma vida demasiado frugal e tranquila, longe evidentemente dos tempos de apostas em casinos e demais investimentos obscuros nos concursos de tiro ao alvo, ou partidas de columbofilia, procurando nesses momentos de estúrdia e evasão a necessária ataraxia que a vida moderna exige. Estou mais calmo, é certo, mas acumulo picos de angustia e euforia, sendo este período marcado por uma felicidade incrível, no entanto pouco ou nada criativa da minha existência.
Há dias, fui pago a peso de cortiça para apresentar uma exposição de fotografia de um jovem altamente promissor, um artista obcecado em fixar manequins existentes nas montras das cidades e os seus mais que desinteressantes olhares e posicionamentos verticais. Agradou-me sobretudo ver que há artistas para tudo bem como a forma como croquete e bolinho de bacalhau invadiu os salões e as vernissages da actualidade. Sem mais, fiquei estupefacto, estarrecido e algo enfartado.
Estou quase a adormecer, amigo Janeiro Alves. Sinto que vou sonhar com a fatia de salmão que comerei bem cedo pela manhã. Da janela do meu quarto vejo um jardim resplandecente, na rua não há vivalma, e a vida por aqui sabe-me a estrelícias em flor e araucárias solitárias! A Primavera ameaça, mas fica-se por aí…à espera que as suas novidades sejam uma evidência, despeço-me…

com elevada estima e reconhecimento,
este seu eterno amigo,


       Doutor Mara 

Somos a Língua que Falamos

          “Todo o grupo que seja objecto de preconceito tem isto a dizer: somos a língua em que somos falados, somos as imagens em que somos reconhecidos, somos a história que estamos condenados a recordar porque fomos impedidos de ter um papel activo no presente. Mas somos também a língua em que questionamos estas suposições, as imagens com que invalidamos os estereótipos. E somos também o tempo em que vivemos, um tempo do qual não podemos estar ausentes. Temos uma existência própria e já não queremos continuar imaginários.”
Alberto Manguel

Diminuição da Espessura Afectiva dos Laços

          Há uma maior quantidade de traços de psicose, narcisismo, borderline. Porque há uma menor intimidade entre as pessoas. As relações são mais superficiais, menos íntimas, menos vinculadas, mais anónimas. De maneira que não há familiaridade. Deixou de haver confiança, a colaboração mútua. (…)  Hoje as pessoas só são íntimas entre dois ou três amigos. No meu tempo, era íntimo de todas as pessoas da aldeia. Mesmo nas cidades, havia aquela coisa de bairro, as pessoas iam a casa uns dos outros. Hoje temos mais conhecidos do que amigos. Há uma diminuição da espessura afectiva dos laços.”


                             Entrevista de Carlos Vaz Marques a Coimbra de Matos, in Jornal Público, dia 21 de Fevereiro, 2016.