segunda-feira, 9 de março de 2015

Uma Carta Marciana de Janeiro Alves

Caro Doutor Mara,

                   Encontro-me preso numa casa de banho de um centro comercial, e aproveito para lhe escrever. Já tentei escapar por debaixo da porta, mas quando tinha o corpo já quase todo do lado de fora, a cabeça não passou. Foi por pouco. Já bati à porta, já gritei por ajuda, e acabei de ligar para o 112, pois estou na posse de um telefone. Infelizmente não me levaram a sério. De resto ninguém me atende o telefone, e aqui estou. A olhar para quatro paredes sentado na sanita. Há alguns minutos entrou um indivíduo a assobiar, fez de conta que não me ouviu. Não entrou mais ninguém. De repente as pessoas deixaram de vir à casa de banho, de propósito, para me deixarem aqui.
                   Há já alguns dias que pressentia que me andavam a preparar alguma. Mas eu finjo que estou bem, que não é nada comigo. Já nem faço barulho. Não lhes quero dar o prazer de observarem a minha angústia com um prazer perverso, como quem vê o National Geographic e se deleita a observar um herbívoro galopante a ser encurralado por uma cambada de leões esfomeados. Não dou o braço a torcer. O Doutor Mara sabe como sou um osso duro de roer. Enfim, a noite aqui é garantida, pois já é uma da manhã, e os poucos que ficaram para o cinema já saíram concerteza. Os seguranças devem estar a enviar mensagens, aborrecidos por não se passar nada. E eu aqui. Eles sabem que eu estou aqui, eu sei que eles sabem. Mas não querem saber, de propósito. Eu também não quero saber, tenho mais que fazer. Tenho assuntos para tratar. Não lhes vou dar o prazer de passar pela vergonha decorrente de uma libertação ridícula, de me virem salvar como se fossem uns heróis. De ser o bombo da festa enquanto eles são condecorados com medalhas de mérito. Já me convenci que passarei aqui a noite. Na verdade isto é uma espécie de suite desprovida de quarto.
          Apesar desta situação embaraçosa, escrevo-lhe para saber de si. Como tem passado o meu amigo? Já tive conhecimento que figura de novo no portfolio das ilustres figuras Fayalenses, que regressou à casa partida, que deu uma volta de 360 graus, que afinal o filme era uma saga de duas partes, que suprimiu o espaço físico que o separava da origem, que se voltou a banhar nas águas tropicais da exótica baía de Porto Pim, e que o Pico agora o volta a perseguir como um vulto incontornável.
          Também sei que aguarda ansiosamente novidades dos Manaias. Estão falidos. Filomeno Manaia, o gestor de toda a herança acabou por investir acções num banco que faliu e falaciosamente mudou de nome. Neste momento, alguns Manaias já estão a trabalhar em call centers, enquanto que outros fazem espera na fila do centro de emprego. Uma calamidade social, Dr. Mara. Todo o património da família está agora nas mãos de gestores de insolvência, homens vestidos de negro, com barbas escorridas e pasta na mão, que cheiram a môfo e levitam à volta dos velhos Manaias. Miriam soube disto em Inglaterra, e regressou de emergência a Viseu, a tempo de evitar que Clemêncio Manaia pusesse termo à vida com uma corda ao pescoço. Passou por Lisboa logo após. Almoçou comigo e pôs-me a par de toda a história. Filetes de pescada, junto ao rio, em sua homenagem, Dr. Mara. Miriam confessou-me que tem saudades dos velhos tempos, quando passeava consigo de mão dada pela Matriz, e dos choques que apanhavam quando tocavam em metal. Ela quer visitá-lo em breve. Registe.
          O Solar dos Manaias está agora à venda. É uma machadada na história, Dr. Mara. É o fim de infindáveis acontecimentos antológicos, do baluarte de muitos serões que figurarão nos anais da cultura nacional. É o fim do próprio Dr. Mara, produto de fino recorte, intelectualmente renascido e recriado no Solar. É uma catástrofe Dr. Mara, e por isso lhe escrevo, preocupado consigo. Presumo que ainda não soubesse desta notícia, e dou-lha com pesar. Antes presidiário de uma casa de banho pública do que estar na sua situação, Dr. Mara.
          Bom, está a acabar a minha bateria, e portanto vou dormir. O chão está coberto de papel higiénico de folha dupla, e encostarei a cabeça ao sanitário.
          Peço desculpa por esta escrita de retrete, um tanto ou quanto atabalhoada, fruto da situação embaraçosa em que me encontro. Dentro em breve, já no meu apartamento, tratarei de lhe enviar impressões sobre as minhas vivências citadinas, assim como algumas situações que ando a preparar de forma a alterar o curso dos acontecimentos. Os projectos estão em efervescência, e porei o Dr. Mara a par de tudo. Até lá, não cometa nenhuma loucura!

Com Amizade,
Janeiro Alves