terça-feira, 21 de junho de 2016

Verão: Ainda agora Começou!

Não devia ter mais de dez anos naquele verão, naquela rua com nome de Ferreiros, uma rua com título de profissão há muita desaparecida daquele lugar de origem piscatória. A leitura ameaçava e crescia logo bem cedo, pela manhãzinha com a ida à Taberna do Senhor Miguel comprar pão e permanecer por lá até cansar as vistas. O taberneiro era um indivíduo polido, simpático q.b, um nada provinciano e austero, quase sempre com um semblante carregado e marcas de religiosidade profunda, dado que se vestia sempre de preto e não permitia conversas em tom muito alto ou o uso do calão e do vernáculo.  Até hoje penso que nunca me advertiu sobre a minha presença em tal estabelecimento comercial pelo facto de conhecer bem os meus pais, pensando talvez que ter por ali um miúdo de tenra idade a ler o jornal conferia dignidade a quem frequentasse o estaminé, sobretudo um antro de gente adulta com mais sede do que juízo. No entanto, eu sabia que estava sob a mira do seu olhar atento e punitivo, ainda que com a consciência exacta do imediato com que estes seriam avisados de qualquer infracção matinal que ali tivesse lugar. Sendo assim, a partir de certa altura tornei-me uma figura de tal modo assídua que alguns clientes se queixavam de já não ter o jornal diário disponível naquela única mesa em frente ao balcão. Como pediam as regras da concorrência, eu chegava mais cedo, comprava o pão, sentava-me e ficava por ali até que não houvesse mais nada para ler. Eu sabia que notícias novas e fresquinhas só viriam depois da praia, do gelado de gelo, das corridas de rolamentos e da bicicleta, das idas à videiras e às espigas ou então do competititvo jogo da carica ou do berlinde. Uma delícia.
Naquelas manhãs de leitura estival fazia-me, portanto, companhia o "Nia Congros", diminutivo de Agonia, um pescador rude já com alguma idade, que se caracterizava por ser muito alto e bastante magro, usando sempre um boné numa cara cheia de rugas tisnada pelo sol. Saía-se sempre com uma expressão que já trazia engatilhada: “Saia uma preta fresquinha, senhor Miguel!” Enquanto ele curava as mágoas duma noite de faina marítima em sobressalto junto da tripulação ou a ausência de descanso junto da casa das máquinas a cheirar a gasóleo por tudo o que era sítio, eu ia dando os primeiros passos na política nacional e internacional, descobrindo os crimes de faca e alguidar, os pequenos furtos e zaragatas, as aquisições do Varzim e do Sporting, a vida dos actores e das actrizes, a programação televisiva, a descoberta das das oito diferenças, etc. De vez em quando, o Nia perguntava-me se o mundo estava igual ao dia de ontem, ao qual eu respondia de forma perentória – “Ainda agora comecei”. Quem começava e não terminava de bebericar era este homem que aprendi a ver bêbado sem julgar nem confiar. Em duas horas era capaz de beber uma grade de cerveja tal era a secura que ostentava. Encostado ao balcão não era capaz de enunciar muitas frases, balbuciando nomes de peixes ou ficando a maioria das vezes pelas onomatopeias e por alguns piropos a quem entrasse um tanto ou nada atarefado.
Passados tantos anos, penso com redobrada ternura no Nia, um homem entre tantos outros que recusava o equilíbrio que a planura e a terra firme lhes concedia, optando assim pela contínua agitação líquida das marés. Aos dez anos, os adultos pareciam-me todos muito altos e muito proféticos nas suas inclinações e por esse motivo não me esqueço das suas saídas aflitas e baloiçantes por aquele corredor da taberna, tal e qual uma traineira à deriva. A luz do sol do meio-dia atirava-o para um descanso tardio enquanto que para mim era apenas o início. O despertar de um verão longo e comprido. A evocação de uma infância inesquecível e interminável.