quarta-feira, 1 de abril de 2015

Missiva do Primeiro de Abril de Janeiro Alves

Estimado Dr. Mara,
          Espero que esta carta lhe possa fornecer uma ideia concisa e rejuvenescida do quotidiano deste velho amigo na metrópole, agora dedicado ao comércio e indústria, obviamente na óptica do observador. Há muito que o Dr. Mara não dá notícias, pelo que certamente deve estar a preparar alguma. Todo este silêncio que o envolve cheira-me a esturro, a madeira queimada em tempo de chuva, fazendo antever que algum efeito pirotécnico está a ser preparado no seu laboratório das coisas do pensamento, e concerteza não será a pensar nos encontros da filosofia. Mas sei que me porá ao corrente, poupando-me à despesa de ir ao seu encontro almoçar os habituais filetes de peixe.
          Posto isto, não tenho mais nada de relevante para lhe dizer, à excepção de pequenos acontecimentos, tão pequenos que apenas todos juntos poderão dar algum vislumbre das mudanças que o tempo e o espaço operam em nós.
          Um dos acontecimentos recentes foi o de combinar um encontro com um mestre em artes marciais debaixo duma varanda de um edifício antigo numa das ruas movimentadas da cidade para uma conversa séria, e tudo o que então se desenrolou. Eis que ao passar na zona baixa da cidade para cortar caminho, um pombo capitalista defecou categoricamente em cima do meu fato de asas de grilo, o que me levou ao cancelamento imediato do referido encontro por telefone. Não se podem ter conversas sérias com o fato sujo de merda. Então, na precisa hora em que supostamente nos encontraríamos, a varanda colapsou. O pombo, que na altura foi rigorosamente insultado, acabou por me salvar a vida. Este singelo porém revelador episódio ocupou-me o pensamento por uns dias, levando-me a concluir que não existem acasos, e que por detrás de um facto negativo poderá estar algo de bom. É necessário tempo e dedicação, caro Doutor, para compreendermos a importância dos pequenos acontecimentos. No dia seguinte comprei um pombal para o meu pequeno quintal das traseiras, onde actualmente alimento e educo 88 bonitos e felpudos pombos. Dou-lhes uma alimentação equilibrada, e se continuarem a crescer assim saudáveis, vou transformá-los em pombos-correio. Espero no ano que vem ter dez mil pombos-correio prontos a voar pela cidade e espalhar mensagens de bom humor por toda a gente, como quem dá milho aos pombos, mas de forma invertida. Espero ver resultados dentro de dois anos, onde quero chegar ao milhão de pombos, e estender o seu raio de acção por todo o país. Será uma revolução sem precedentes em matéria de sorrisos. Isto digo-lhe eu, Dr. Mara, que não sou nenhum especialista, apenas um observador deste tipo de fenómenos.
          Outro pequeno acontecimento destes últimos dias poderia ser apelidado de incidente, mas eu prefiro dizer tratar-se de um insólito. Andava eu a passear pelo Rossio, quando avisto uma girafa, a comer as folhas de uma árvore junto a uma esplanada conhecida e famosa ao mesmo tempo. Mas isto não constitui a parte insólita da história. Curiosamente nenhum dos transeuntes deu especial atenção a este fenómeno animal, e nem os nipónicos de férias invernais dirigiram as suas câmeras para este acontecimento. Isto preocupou-me, como pode imaginar, pois por momentos, breves, pensei que podia não estar no meu juízo perfeito. Felizmente, em certa altura um empregado do estabelecimento levou numa bandeja um pastel de nata ao animal, fornecendo-me todas as garantias testemunhais de a girafa era de facto real. Depois imaginei que caso a minha imaginação gerasse ali um animal ilusório, mais facilmente geraria um empregado entregando-lhe um pastel de nata. Mas não me alonguei neste pensamento, pois tinha coisas combinadas à porta do jardim zoológico em Sete Rios.
          Por fim, e para o Dr. Mara fazer uma pequena ideia de como é vibrante e surpreendente a vida na cidade, fiz algumas anotações que partilho consigo: “Os dias são de sol, as fachadas renovam-se e as pessoas vestem roupas leves e esvoaçantes. A rua está cheia de saltimbancos, fadistas, retratistas, proxenetas e transformistas. Há turistas vindos de outros países, e até de outros planetas. Tocam as cornetas e a banda passa, os comerciantes esfregam as mãos com o dinheirinho a entrar e os empresários confiantes com o que se está a passar. A festa já começou, e desde que a agonia acabou, são palhaços, malabaristas, e tudo o que é artista. São famílias inteiras, repartidas, repatriadas, repetidas e recuperadas. São lojas e luzes e cafés e fogo de artifício. São as meninas a crescer e os meninos a aprender. Os velhos já largaram as bengalas e dançam canções revivalistas. Está bom é para os carteiristas e artistas de variedades. É uma feira de vaidades e de quezílias bairristas, cada um a puxar a brasa à sua sardinha, e é bonito o Verão que se avizinha.”
          E por aqui me fico Caro Dr. Mara. Para esta Páscoa, sugiro-lhe um bom bacalhau Pascoal em posta, adquirido em local apropriado, e devidamente confeccionado, para desenjoar dos filetes.
 Janeiro Alves

Da Voz das Coisas

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão