terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Futurofagia

DM: Caro Doutor Mara,  soubemos que passou o ano no seu gabinete à espera das doze badaladas e só algum tempo depois é que abriu uma das janelas que dá para a rua. Alguma superstição?
Doutor Mara: Nada disso. A verdade é que desde pequeno que sou muito sensível ao barulho dos relógios de corda, julgo que aquele som remete a minha imaginação para a adorada e irrecuperável infância que eu tive. Nestas alturas da entrada de um novo ano, sinto sempre uma fina e doce aragem infantil que me invade a alma, deixando-me completamente letárgico, desassossegado e anestesiado, o que pode parecer contraditório. Julgo que foi o tempo suficiente para acender um puro e desfrutar do amável aroma das fábricas de tabaco da minha Havana querida. 

DM: Doutor Mara, compreendemos. Sinceramemente, diga-nos, o que espera de 2013?
Doutor Mara: Sinceramente, preferia entrar já em 2014. Como o próprio número indica, temos que ser cautelosos com o que aí vem. Sabem que não sou de dar palpites nem gosto de abusar de prognósticos, como devem calcular. Nós, latinos, somos dados ao pessimismo, o que por um lado é muito bom, mas há que ter em conta que nestes momentos é muito importante agir. Ainda que com uma boa dose de preguiça, pois claro. Sou, como se costuma dizer um "pugilista" dos novos tempos, portanto, quem tiver um quintal deve começar já a fazer a sua horta, quem tiver bicicletas deve levá-las ao mecânico, quem tiver relógios deve voltar a andar com eles no pulso, quem tiver uma enxada no sótão deve ir buscá-la, quem gostar de democracia deve comprar um guarda-chuva e quem for adepto do cinema iraniano deve comprar um viagem de avião para o Festival de Berlim. 

DM: Sente que a cultura em Portugal está ameaçada?
Doutor Mara: Creio que nunca deixou de estar. O meu avó, que não era propriamente um intelectual, dizia sempre que ainda havíamos de acabar todos a jogar matraquilhos. Estou confiante que as suas previsões vão chegar mais cedo do que o previsto. Tenho receio, no entanto, que esta crise irá, no entanto, agravar a variedade e diversidade de equipas em disputa. O Sporting se continuar a jogar assim no campeonato corre o risco de desaparecer do mundo dos matrecos, o que é uma autêntica desgraça, e o Sporting de Braga que substituirá o Sporting, muito provavelmente  terá que usar o seu equipamento alternativo para não ser confundido com o Sport Lisboa e Benfica. A ser assim, ficamos com mais um problema de economia real para os detentores destes jogos de sorte e azar espalhados pelo país e ilhas.  É caso para dizer: o que mais nos irá acontecer?

DM: Soubemos, no entanto, que ficou bastante desiludido com a escolha dos melhores livros, filmes e álbuns de 2012?
Doutor Mara: Talvez tenha havido aqui alguma fuga de informação. Não foi bem desilusão, é não chegar a perceber para quê que aquilo serve. É como aquelas estrelas que os críticos atribuem...uma coisa é expressar uma opinião a outra é atribuir bolinhas ou estrelas consoante a boa ou má disposição com que se acorda pela manhã. Um músico, um cineasta, um actor, um poeta ou um escritor não deviam ter este tipo de escrutínio redutor, simplista e faccioso. Todos os anos lá estão as listas, as bolinhas e as estrelas...eu prefiro as serpentinas, os cigarros de chocolate e os rebuçados do doutor Bayard para a tosse.

DM: Por pouco quase que tocava a sua irritação com o ranking anual das escolas?
Doutor Mara: Sim, é verdade, esta foi de raspão. São simplificações que servem uma determinada opinião pública e que visa tornar ainda maior o fosso entre as escolas públicas e as  escolas privadas. É uma espécie de  nouvelle cuisine...misturar alhos com bugalhos, lançar a confusão e depois  dizer que não tem nada a ver uma coisa com a outra e que as escolas saem beneficiadas deste tipo de julgamento e escrutínio. É típico da xico-espertice lusitana, pois todos sabemos que estamos a avaliar pessoas de contextos sociais, culturais e económicos diferenciados em contexto de exame.  Por outro lado, a maior parte de nós aprendeu na escola a não querer uma data de coisas que são hoje para nós bens essenciais à existência, tais como o direito à diferença, ler e aprender o que não está nos programas, sonhar com outro tipo de escolhas para lá daquela que a escola nos oferecia, enfim, coisas que escapam aos rankings e aos topes contemporâneos.  Ou será que alguém vai lançar o ranking das escolas com os melhores resultados na sua relação com o meio e relevância para a cultura de todo um povo? 

DM: Doutor, uma pergunta bastante pessoal: o que espera de Portugal em 2013 ?
Doutor Mara: Um barco e uma flor. 

DM: Um barco e uma flor???
Doutor Mara: Um dia explicar-vos-ei porquê. Um bom ano para todos vós e que não vos falte a voz! Um amplexo Doutor Mariano!

DM: Muito obrigado, doutor. Esperamos vê-lo pela cidade um destes dias...

Diários de Angra

        Não há aqui nada contra os automóveis. O que é um facto é que os carros não deviam ter mais direitos que os cidadãos ou prioridade  em relação aos peões e transeuntes, mas têm. Sabemos o quanto os carros  são úteis, demasiado até,  na forma como diminuem as distâncias e encurtam o espaço e o tempo de um sítio para o outro, tornando a vida e os dias mais aceitáveis com temperaturas aziagas e chuvas persistentes. No entanto, da mesma forma que as praias não deviam servir para colocar bares e restaurantes em cima do areal para não importunarem a vista e o desfrutar do areal e da paisagem de quem ali vive ou gostaria de ali estar, o que é verdade é que não é concebível o estacionamento dos carros em cima de passeios ou a invasão destes no centro histórico de cidades de pequena dimensão, impedindo o passeio e usufruto do espaço e da via pública por parte de quem ali vive e passa. Estacionar  carros em cima dos passeios não é, nem nunca será uma situação ideal, não é aceitável, o mesmo se pode dizer dos milhares de carros que invadem o centro  num abanar constante da terra e do barulho que torna possível a vivência e o usufruto do espaço citadino. Deste modo,  seria desejável que  as cidades fossem lugares prazenteiros de descoberta e fruição dos seus espaços arquitectónicos, lugar de  encontro com suaves e amenos passeios diurnos e nocturnos, dados à contemplação e observação do comércio, recheado de conversas sobre o passado e o presente, espaços entregues aos  passeantes e respectiva contemplação. Para quando?