quinta-feira, 30 de abril de 2020

Oráculo

o que aí vem?
o que vem lá?
quem saberá?

ninguém sabe onde está quem saberá

dizem que só deus sabe 
mas ninguém sabe de deus
onde andarará?

ninguém sabe o que deus sabe 
e ele disse saberá?

quem saberá 
o que aí vem e o que depois virá?

entre tantos enganos alguém acertará?

entre o que aí vem é o que vem lá

Luís Xarez, in "assim", Dezembro de 2019. 

Da Racionalidade

"A racionalidade é uma obrigação  que temos como espécie."

Carlos Fiolhais, Jornal de Letras, Artes e Ideias, Abril 2020.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

O “Ardina” Chega Sempre à Hora Certa


Não se avista ninguém nas ruas e, subitamente, há um homem que canta, mal e desafinado, é certo, mas canta, há outro que grita frases soltas e desconexas e há ainda quem distribua, sempre que pode, jornais aos amigos. Os jornais encontram-se agora sem compradores, a versão impressa vende muito pouco. E desde que o confinamento começou, aguentam-se os mais robustos financeiramente, os que já estavam instalados há mais tempo ou aqueles que sempre tiveram um grande grupo económico por detrás. Os jornalistas são pessoas que vivem de palavras, têm que comer, vivem com famílias ou necessitam de pagar as suas contas e encher o frigorífico. Os quiosques abrem a horas certas para que os leitores possam ler as notícias, tactear o virar das folhas, pressentir o cheiro a tinta do jornal impresso.
O “Ardina”, habituado à sua disciplina e hábitos matinais, valoriza os pequenos gestos e este tipo de coisas, já que dá a sua volta higiénica para fazer as suas compras diárias e manter os músculos activos, ao mesmo tempo que faz a radiografia matinal da cidade, acompanhado pela sua objectiva. Uma coisa é certa, ele parece conhecer de ginjeira as pessoas que gostam de ler, aqueles que, tal como ele, não passam um dia sem folhear as páginas de um jornal actual, ou mesmo antigo. Talvez, por isso, habituou-se recentemente a bater-lhes à porta, ou então, a deixar os periódicos e as revistas na caixa do correio. “Depois faremos contas!”, diz, despedindo-se com um sorriso nos lábios, como quem sabe das virtudes e dos vícios humanos, ou somente do simples e permanente prazer de ler um jornal. Este ardina não é um ardina qualquer, ao contrário dos ardinas tradicionais ele distribui os periódicos no seu carro, por iniciativa individual, por amizade, por mera atenção ao outro. Sem que ninguém lhe peça ou lhe faça alguma exigência. Este “ardina” é um amigo, um bom amigo, mas contas são contas!

Ananás "Smooth-Cayenne"


"-Onde alimenta a esperança no futuro nestes dias?

-Nos jovens. No céu, à noite. Nos livros."

Alberto Manguel, entrevista de Luís Ricardo Duarte, Jornal de Letras, 8 a 21 de Abril de 2020.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Estou profundamente humilhado

Estou profundamente humilhado
com o silêncio das acácias.
Porque permanecerão assim
estupidamente enigmáticas,
quando eu sei que elas escondem
o infinito das raízes?...
Graníticas, catedrais, transfiguradas,
embrulham-se na bruma 
e riem-se de mim perdidamente 
com seus cabelos verdes,
longos cabelos sensíveis,
simulando ao vento.
......................................
.....................................
Estou muito, muito magoado
com o silêncio das acácias. 

Heitor Aghá Silva, in "Nove Rumores do Mar"- antologia de poesia contemporânea, selecção de Eduardo Bettencourt Pinto.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Um Verso de Lluis Llhac

Compañeros, si buscáis las primaveras libres

Dois Poemas de Daniel Faria

Histórias do País de Helena

Havia marinheiros
No país de Helena
Que morriam ao pôr do sol

E havia Helena que sonhava
Fazer um dia tranças às ondas
E um berço muito grande para o mar

Ítaca

O que dói
É não poder apagar a tua ausência
e repetir dia após dia os mesmos gestos

O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos

O que dói
é tudo e mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos

in "Poesia", edição de Vera Vouga, Quasi edições, 2009.

Dessa Silente Artéria...

Uma espécie de anjo ferido na raiz

Examinemos também a escrita
O solo negro deixado pelo fogo
O mecanismo semelhante às queimadas
Deixando a terra arável na sua devastação.
Tudo isto serve para retomarmos a pedra onde está escrita
A palavra nova
A pedra onde corre o sangue.
Enquanto perguntas pelas dez palavras.
Põe a boca na palavra líquida
Examina o coração de carne em vez da escrita antiga
O verbo onde jorra a palavra incessante

Há dentro dela uma palavra nupcial

Daniel Faria, in Poesia, Quasi Edições, 2009.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

“Maria do Mar”: Cuidado com as Miúdas!

"Maria do Mar" de João Rosas, 2015
(imagem daqui:Icateca.ica.ip.pt)

“Sembra un angelo caduto dal cielo
com'è vestita quando entra al "Sassofono Blu"
ma si annoia appoggiata a uno specchio
tra fanatici in pelle che la scrutano senza poesia
sta perdendo, sta perdendo, sta perdendo, sta perdendo

Nada

        Maria do Mar” é uma curta-metragem de João Rosas, realizada em 2015, que se encontra disponível na plataforma da TerraTreme Filmes, uma produtora de cinema que tem disponibilizado semanalmente alguns dos seus filmes para (re)ver nesta quarentena cinéfila.
Da sinopse ficámos a saber que Nicolau (Francisco Melo) é um adolescente que acompanha o irmão mais velho e amigos, num fim de semana de estio até Sintra. Pelo meio há contadores de histórias familiares de engate, uma rapariga misteriosa e voluntária de esquerda e, que vê filmes de autor, e ainda um jovem personagem com indumentária de ursinho, este no apogeu da dor e sofrimento por desilusão amorosa. É ele quem avisa Nicolau - "Cuidado com as miúdas!" E quem vê o resto do filme outra coisa não seria de esperar.
Desta feita e, sem nos apercebermos imediatamente do que está em jogo, à semelhança dos amores na adolescência ou do nascimento das flores na Primavera, Nicolau é quem nos guia na descoberta desse desejo e encantamento primordial. Enquanto típico adolescente, atento e observador, vai subindo até ao cimo das árvores, realiza truques com baralhos de cartas ou faz uso das mãos ou do lápis para ludibriar, observando e contemplando o irmão e seus amigos de modo complacente, como se nada tivesse a ver com estes. João Rosas filma os subterrâneos da paixão, já que subentendemos em Nicolau o aflorar dos sentidos, a seiva a despontar nos tecidos, convocando-nos para esse  “Eros” estival que é, sem espinhas, a confirmação do anseio sexual perante aquela figura feminina enigmática.
Esta curta-metragem é, por isso, uma agradável surpresa, com momentos de grande cinema e em que dá mesmo gosto ter aquele olhar ingénuo, melhor, poder dormir ao relento depois do momento em que a rapariga italiana narra a origem e configuração da massa tortellini. Aparentemente, sem criar muito alarido, à semelhança da personagem feminina que lhe dá o título - “Maria do Mar”, este filme é penetrante e cativante, sobretudo pelo apelo à cumplicidade dos olhares que Nicolau vai estabelecendo com o espectador. Isso e…todos os silêncios que se vão formando e crescendo!
Depois, o filme encerra da melhor forma possível, isto é, conosco a intuirmos e acedermos secretamente à paixão de Nicolau por Maria do Mar (Mariana Galvão), quando ficamos todos confinados no interior do carro com música à escuta, num provável regresso à outra casa - será esta a casa do amor? “Maria do Mar” é, sem qualquer dúvida, um filme caído do céu!

Carta a Janeiro Alves num Confinado Abril

Caro Janeiro Alves,

Meu caro amigo, prolixo, padrinho, pintor, profeta, poliglota, profícuo, pastor e profissional da escrita, diga-me: o que é que tem feito? Será que há novidades desse seu confinamento e isolamento social? Soube, entretanto, por fontes fidedignas, que Janeiro Alves se tem dedicado à pintura entre dez a quinze horas diárias. O que é que tem andado a aprontar nas catacumbas do seu ser? Perdoe-me esta minha curiosidade excessiva, mas anseio por novidades suas, tal e qual a chegada dos cagarros muito em breve.
Estamos ainda no mês de Abril e sabemos que é tempo de transformação e liberdade. Depois virá Maio que é, entre todos, o mês mais belo, superando em pulcritude os restantes meses. Poucas letras compõe o nome deste mês que irá robustecer os dias primaveris há muito aguardados. Daqui a muito pouco tempo, celebraremos a ascensão da temperatura e renunciaremos a roupa quente que, entretanto, guardaremos nas gavetas pesadas de bolor. Juntos permaneceremos na presença dos dias que admitimos maiores, ampliando o tempo ao gosto das horas e do calor. Assim, visionaremos a metamorfose do azul e contemplaremos luscos-fuscos memoráveis.
Eu, por aqui, vou conversando com a Miriam, que está de regresso após longa viagem pela Índia. Partilhamos a meias o Solar dos Manaias, ainda que nos encontremos somente no jardim para bebericar um chá verde, oriundo das melhores folhas de Camélia Sinensis. Sempre dá para dividir o pacote de bolachas Maria, ler o horóscopo e trocar impressões sobre as cores crepusculares do entardecer. Comunico-lhe que Miriam está diferente, mais bonita, é certo. A viagem tornou-a mais tolerante e dócil. No entanto, medita várias vezes ao dia, o que torna os nossos encontros demasiado dolentes e silenciosos. Às vezes julgo estar na presença de uma sombra, de um fantasma de outrora, sem rasgo ou chama. Quase ausente. 
Despeço-me com a sensação que talvez ainda possa chegar uma missiva na caixa do correio por estes dias. Regurgito, melhor, anseio por um passeio e pelo sorriso imaculado e galante das donzelas que despertam na fulgência primaveril. Por agora é tudo o que me ocorre, e quero, simplesmente, sugerir-lhe que me envie um tupperware com filetes de pescada confecionados pelo meu querido amigo. Será que é possível?
Com  elevado apreço e estima,
Doutor Mara

Verso de Nada

Sembra un angelo caduto dal cielo

quarta-feira, 22 de abril de 2020

"Roma, Cidade Aberta" de Roberto Rosselini

         Aldo Fabrizi, Marcello Pagliero e Ana Magnani são alguns dos atores que fazem parte do elenco do filme "Roma, Cidade Aberta", de Roberto Rossellini. Este filme, obra debutante do neorealismo italiano, trata a ocupação durante nove meses da Itália pela Alemanha nazi durante a Segunda Guerra Mundial. A película retrata a vida italiana, pobre e desesperada, unida contra o invasor, criando redes de solidariedade social e disseminando a luta clandestina, envolvendo tipógrafos, padres e activistas políticos. Ana Magnani (Pina) é uma mulher solitária, que se descobre grávida, e que morre no dia do seu próprio casamento. A revolta alastra, no entanto as perseguições e o cerco vai aumentando a repressão.
          "Roma, Cidade Aberta" esteve disponível nesta quarentena pela Medeia Filmes, possibilitando acesso a uma obra imprescindível e fundamental do cinema mundial. 

Terra

“Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens...

Terra! Terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria? (…).”

Terra” de Caetano Veloso

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Ilha Revisitada

Perto do mar
de novo estou perto de mim
fecha-se o cerco o lugar
retoma o princípio e o fim

brisa de infância
ao cair da tarde assim
se encurta a distância
entre o que sou e mim

Desejado vai-vem discreto
das marés  ritmo secreto
do tempo sem tempo livremente

espelho d´água imagem
solidária companheira de viagem
rumo à ilha novamente

Artur Goulart, in "nove rumores do mar- antologia de poesia açoriana contemporânea", organização de Eduardo Bettencourt Pinto. 

domingo, 19 de abril de 2020

Pequenos Trabalhos de Domingo

não saio antes
que tudo esteja pronto

a loiça a escorrer na cozinha
o aspirador cheio
a varanda lavada pelo dia
o rádio em off

nessa hora em que 
a noite se aproxima devagar
do meu rosto
escrevo poema nenhum
falta-me língua

sento-me num banco do jardim 
mais próximo
onde (que perfeição)

nada acontece

Miguel-Manso, in "Santo Subito", 2010.

Crepúsculo

Já ninguém percorre este caminho
a não ser dois petroleiros
com os porões vazios

Jorge Sousa Braga in"O Poeta Nu" (Poesia Reunida), Assírio&Alvim, 2007.

"Vidas Íntimas" de Noël Coward pelos Artistas Unidos

      
Vidas Íntimas de Noël Coward
          "Ora, a longo prazo, não há ninguém que não diga senão disparates. Temos de ser superficiais, e ter piedade dos pobres filósofos. Vamos mas é soprar trombetas e apitos e gozar  a festa ao máximo que pudermos, como se fôssemos crianças da escola. Vamos apreciar o gozo do momento. Venha cá beijar-me, querida, antes que o seu corpo apodreça e os vermes saltem das suas cavidades oculares."

Elyot in "Vidas Íntimas", de Noël Coward, 1930, trad. Miguel Esteves Cardoso, Livrinhos de Teatro, Artistas Unidos, 2019.

sábado, 18 de abril de 2020

No teu amor por mim há uma rua que começa*

*Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates".

Canção do Crepúsculo

O dia anuncia o seu fim, a derradeira luz cai, o azul celeste vai desaparecer e sobra muito pouco tempo para contemplar o céu e duas pequenas nuvens, estas concebidas como farrapos, parecendo imóveis. Assim como se tratasse de uma viagem interrompida, lograsse também tudo isto findar, acaso sossegar os créditos dessa dor. Comprometidos ficariam apenas uns versos simples e compreensíveis tal e qual a tua presença fugaz, ainda que atribulada por aqui.
Pus-me, entretanto, a imaginar que se ainda vivêssemos naquela rua sem gente à janela, talvez possuíssemos coragem para evocar a liquidez de outrora, esqueceríamos a distância assídua dos mapas, o medo que agora nos impede os movimentos ou os segredos virtuais conservados pelas biografias. Certo que desceríamos aquela calçada robusta para alçar aquela bandeira com uma folha de bordo em teu clamor.
A nuvem vai agora desaparecer, juntando-se em circulo rodeando a lua, parece suplicar um leve aconchego, embrulhando dedos delicados em seu redor. Por instantes, ouve-se ao de leve uma canção de um autor conhecido. Qual de nós é que se esqueceu de acender a luz?
Atravessaremos a noite como quem persegue a linha do horizonte. Quem chegar primeiro, avisa.  

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Física Inexplicavelmente Platónica

O nosso amor
é igual à coluna de sorriso
que nos une
dois traços encarnados de união
no ar.

Rui Duarte Rodrigues, in "Os Meninos Morrem Dentro dos Homens", 1970

O que o viajante vê nas bicicletas da Holanda?

“Os outros povos do planeta consideram a bicicleta um aparelho destinado ao jogo e ao desporto. Permite uma velocidade extraordinária com meios simples, exige algum esforço e, ao mesmo tempo, o seu uso implica um certo risco. Todas estas características confinam o velocípede ao âmbito das actividades desportivas e, entre elas, às que requerem juventude.
            Apesar disso, verificamos que por todo o lado aumenta o seu uso em serviços meramente úteis. O operário que vive em distantes subúrbios vai para o trabalho e regressa dele de bicicleta. O distribuidor de certo tipo de mercadorias e o estafeta também recorrem a ela. Mas é precisamente esta generalização utilitária, que por todo o lado se verifica, que sublinha a consciência predominante de que não é esse o adequado objectivo da bicicleta, mas outro. Isso é sublinhado pelo facto de este aproveitamento secundário está reduzido ao estritamente inevitável: só a ele se recorre quando não há outro remédio ou quando a hulmidade dos meios económicos o impõe como uma triste necessidade. É por isso que não estranhamos: o operário mal vestido que pedala para ir para casa proclama tacitamente que preferia outro meio transporte e que usa esse precisamente não por ser o desejável mas por uma triste imposição. E com isso fica resolvida a incongruência, vemo-la explicada e não sentimos estranheza.
            Mas na Holanda toda a gente anda de bicicleta, qualquer que seja a sua idade, sexo, volume, posses. E agita as pernas sobre pedais, ia dizer que cinicamente, isto é, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se fosse o que é preciso fazer. Pois bem, é isso que irrita o viajante, que causa estranheza e incompreensão: considerar-se natural e perfeito o que lhe parece inadequado e erróneo.
            Ao chegar aqui, o nosso intelecto, lutando dialecticamente consigo mesmo, faz a seguinte objecção: não será que considero natural e correcto simplesmente o que me é habitual, o que vi noutros povos? Porque não há-de ser a Holanda o povo eleito pelo deus das bicicletas, aquele a quem foi revelado o seu mais autêntico destino.”

Ortega y Gasset in “De Bicicleta – Antologia de Textos”, Relógio D´Água, 2018.

Avec le temps

Via em volta como
os melhores da sua época 
se iam corrompendo num conservadorismo
sem consciência. Confundiam a crítica com 
a desilusão e mediam o mundo com os critérios
da geração anterior.
Dariam por eles, se ainda lhes restasse lucidez,
apontados a dedo pela geração seguinte.
Esta, nem melhor nem pior,
era apenas diferente, ajustada a um tempo
que era sempre outro e a submergia,
enquanto esbracejava para sobreviver.
Demoraria ainda 
até que ela 
medisse o mundo
com os critérios da geração anterior.

Madalena de Castro Campos, in"A Gun in the Garland", Companhia das Ilhas, 2019.

Um Verso de Marianne Faithfull

I'm known by many different names

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Quatro Poemas de Jorge Sousa Braga

O Último Girassol

Hoje  vomitei um líquido esverdeado
Eram as primeiras  folhas 
Estou prestes a florir

Sono de Primavera

Adormeço sempre com o teu mamilo
entre os dedos da minha mão
E o meu sono é tranquilo
como o das rosas.

Strip-Tease

Quanto mais me dispo

menos nu 
me sinto

Post-Scriptum

Estou mesmo a precisar 

de uma injecção
de essências de rosas 

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Ontem, escrito numa parede da cidade

Quem está à beira do lume sempre se aquece

Potro

Existe já em ti
aquilo que tudo há de ser:

um cavalo a arfar, um potro a nascer.

 João Habitualmente, in "Um dia tudo isto será meu (uma antologia)", Porto Editora, 2019.

"Tarrafal": documentário de Pedro Neves


             Todos nós sabemos que o género de documental não é potenciador de grandes audiências em salas de cinema. Aliás, o seu interesse e curiosidade em vê-los em sala resulta do imenso trabalho e muita persistência dos festivais de cinema que trouxeram este género cinematográfico de novo para a ribalta. Em Portugal, a situação não é muito diferente, ainda que cada vez haja mais documentários a estrear e alguns chegam mesmo a permanecer uma ou duas semanas em exibição. Dado esse crescente interesse, há, por isso, um aumento da produção de documentários bem como o interesse demonstrado por jovens cineastas em aproximar-se deste tipo de trabalhos. Daí que o documentário português tem sabido criar o seu espaço e fidelizar uma nova franja do público interessada no conhecimento da realidade portuguesa. 
Por isso, quem quiser ainda pode assistir a “Tarrafal”, documentário do portuense Pedro Neves, que está disponível na RTP2 Play. Para quem nada sabia do trabalho anterior do cineasta, digamos que se trata de uma inusitada e, por que não afirmá-lo, de uma entusiasmante descoberta! Pedro Neves sabe filmar os corpos, os esquecidos, melhor, os deserdados deste mundo! Há por aqui muito trabalho, muita dedicação e grande energia em filmar a vida e o que resta dela. É um cinema em estado puro, inteligente e indomável!

Verso de J.P.Simões

Em casa tenho amor, à noite canto o mar

terça-feira, 14 de abril de 2020

Três Poemas de João Habitualmente

Amor é...

Óleo de amendoim
Óleo de milho
Óleo de fígado de bacalhau
Óleo Fula
Óleo de palma
Óleo de soja
Óleo de girassol
Óleo need is love

Primavera

O louva-a-deus 
na sua paralisia de pedra verde

Fita no céu 
a valsa verde do pirilampo

Noite de insectos 
chamando-se entre si num clamor

A terra range 
cedendo aos caules que anseiam luz 

Tédio

Estou por aqui
a ver passar os navios

Tardes tão longas 
as visitas dos tios

Estou por aqui 
a olhar p´ró balão

Passa um político

Afinal é o meu cão. 

"I am Your Man"- A Vida de Leonard Cohen por Sylvie Simmons

        
        Sylvie Simmons escreveu uma biografia sobre Leonard Cohen, intitulada "I am your Man". A jornalista musical traça em seiscentas páginas o retrato interior deste cantautor canadiano. É uma narração ampla e tenaz, sobretudo na quantidade de informação apresentada e detalhes pessoais do biografado, e que nos parece tão bem feita que a sua leitura só faz aumentar o nosso conhecimento e curiosidade à volta do cantor. Cohen foi e será sempre recordado por canções como "Suzanne", "Famous Blue Raincoat", "So Long, Marianne", "I am your Man", sendo que ficará também na História como uma personalidade influente na poesia e na música durante muito, muito tempo.  

domingo, 5 de abril de 2020

“Cafarnaum”: O Mundo pelo Olhar de Zein


Cafarnaum”, que significa caos ou lugar de turbulência, é um filme árabe de origem libanesa, que venceu o Prémio do Júri do Festival de Cannes, em 2018. Nadine Labaki escreveu e realizou este filme, tendo, também ela, um pequeno papel enquanto actriz. Este é uma história de uma criança de um bairro pobre de Beirut que decide processar os pais por ter nascido, melhor, pelo mau viver e maus tratos infligidos por estes. Não é, por isso, uma história banal ou mesmo espectacular, o facto de ser tão crua e realista é revelador de que há ali qualquer coisa muito próxima e tocante das personagens ali caracterizadas.
A realizadora filma o seu Zein do início até ao fim do filme, as suas peripécias e anseios, como se estivesse a escalar o Monte Olimpo. Ela não larga o seu pequeno actor, plano atrás de plano, aproveitando a sua destreza e diálogo fácil junto da câmara. Abas Kiarostami dizia que o seu cinema pretendia ser uma visão do mundo através do olhar das crianças. Nadine Labaki parece ter escutado as suas sábias palavras, seguindo este lembrete da melhor forma possível, ou então reviu muitas vezes filmes como "Pixote", de Hector Babenco, ou ainda "Los Olvidados", de Luís Buñuel. É que "Zein" parece não representar e, por isso, é por demais convincente e autêntico, cativando e prendendo o espectador num turbilhão de emoções, daí que o resultado só poderia ser belo e pungente.
Esta película conta ainda com a banda sonora de Khaled Mouzanar, num registo de enorme arrebatamento e delicadeza e tal, como já foi anteriormente referido, com um "actor" irrepreensível e  magnetizante - Zain Al Rafeea. Caso para perguntar: quem pode ficar indiferente  este retrato cruel de uma infância perturbadora e dolorosa? O filme, no entanto, não pode ser visto como um dramalhão, sendo que as cenas passadas no parque de diversões ou no carrossel são pura magia cinematográfica, para além de uma fotografia que nos convida a intuir os cheiros, lugares e vivências ali representados.
Uma última nota para referir que, aquando da apresentação do filme em Cannes, o público presente prestou-se a uma ovação de quinze minutos na presença da realizadora, produtor e do seu  actor de doze anos, de origem síria, que vivia à altura em Beirut, mudando-se assim, à semelhança do que acontece no filme, não para a Suécia, mas sim para a Noruega, onde actualmente já vai à escola. Pura premonição?

sábado, 4 de abril de 2020

PDL: Um Coração Invisível

Fotografia Carlos Olyveira
E, subitamente, não há ninguém nas ruas da urbe principal de São Miguel. Ponta Delgada está agora deserta, desde que há cinco anos, com o aparecimento das companhias aéreas de baixo custo, se renovava de forma intensa e imprevista com tudo aquilo que o turismo podia mudar para melhor: iniciativa, criatividade e variedade na oferta de propostas, tanto comerciais como culturais.  
À parte as rendas para habitação de longa duração que dispararam em flecha, algumas mesmo para preços estratosféricos, foi muito interessante reparar na renovação de muitos edifícios e casas bem como no florescimento do comércio nas ruas do centro histórico. A cidade de Ponta Delgada ganhou, assim, uma nova dinâmica e colorido, pautada por um turismo muito eclético e diversificado. Deste modo, apareceram restaurantes para diferentes gostos e carteiras, alguns com muito bom gosto, cafés, lojas gourmet, galerias de arte e ainda outros serviços comerciais que se adaptaram e restauraram a sua montra e leque de oferta.  
Por esse motivo era, até há bem pouco tempo, muito entusiasmante constatar os diferentes linguajares à volta dos cafés e das praças, misturados com o sotaque local e ainda o ambiente de festa e de modernidade que por aqui se vivia. Por esta altura do ano, deveríamos estar todos a viver intensamente os dias do “Tremor”, um festival de música que todos os anos apresenta uma panóplia alargada de artistas oriundos das mais distintas partes do mundo, com um programa muito sui generis e eclético, marcado sobretudo por surpresas e descobertas. O dia principal do Tremor realiza-se a um sábado e é digno de registo e muito interessante verificar a dinâmica de que como a cidade interage com próprio festival, pois os concertos podem ser realizados, ora num café, igreja, estufa ou mesmo numa loja de roupa.
Ponta Delgada parece agora uma cidade adormecida, ainda que estes dias iniciais da Primavera com muita luz não deixem a cidade descansar de tanta beleza e comoção. O seu coração está, por agora, invisível, porventura aguardando com esperança e paciência que as artérias que lhe davam vida possam de novo fazer circular o seu melhor sangue.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Palavras

          "As palavras são uma coisa com que lutei muito em criança: ler, escrever, encontrar um sentido. Depois, tornou-se um jogo, um divertimento e agora posso usá-las para questionar algo."

Laure Prouvost