quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O Mar em Grande Plano

"Falésias-do-Mar era uma estância balnear em decadência. De favorita da classe aristocrática do século passado, transformara-se, agora, num areal envergonhado, onde as famílias modestas levavam os rebentos nos domingos de descanso. As ruas estreitas tinham sido concebidas para os peões descansados ou, quando muito para alguma carroça que fornecesse os moradores da zona. Por isso, as centenas de carros que sazonalmente, infestavam os caminhos, atropelavam-se, inevitavelmente, num buzimbué infernal.
Era assim todos os domingos de estio. As melancias tomavam o lugar dos brioches enquanto as toalhas de plástico tomavam de assalto o lugar dos linhos antigos.
Em Setembro, finalmente, o povo resignava-se a voltar à mediocridade da sua vida e as coisas sossegavam. Os hotéis, quase a fecharem portas, baixavam as suas tarifas. E os descendentes aristocratas desciam de novo ao mar, embrulhados nas suas cambraias verdes e nos seus fatos brancos de linho.
Com a nobreza vinha, como antigamente, uma outra espécie: os artistas. Pintores, à procura de paisagens desertas; actrizes a descansar de uma temporada exigente; cantoras a dar ar à voz.
Esta colecção de gente instalava-se, quase toda, no hotel Almaroz, uma ruína modernista, a precisar de restauro. A carpete vermelha estava desbotada e os degraus da escadaria rangiam. Mas as suas janelas continuavam a dar sobre a praia e as estátuas de um famoso escultor permaneciam ali para deleite dos frequentadores mais sensíveis. Além disso, os seus preços de final de estação eram metade dos praticados nos outros (raros) hotéis.
Nesse ano, com as cantadeiras e os diseurs, chegaram um cineasta envelhecido, a amante e o filho dela.
Waldemar Guimarães era um realizador quase esquecido. Por razões que escapam à inteligência, tinha tido um grande sucesso com os seus filmes, vinte anos atrás. As criadas e os magalas faziam bicha à porta dos matinés para verem os seus medíocres devaneios. Outros tempos. Agora, só no Ministério da Propaganda e Fitas era conhecido. À custa de favores e diplomacia, lá ia fazendo um filme de dois em dois anos. Coisas inócuas, que nem chegavam às salas de montagem, quanto mais aos cinemas, mas que lhe iam pagando as mordomias.
Todo o santo ano lá vinha ele ajaezado de mulher bonita. “Há sempre uma estúpida para ir na conversa”, dizia ele e com razão, que as coisas são mesmo assim e quem tem unhas é que toca guitarra.
Gracinha andava à nora quando o encontrara. Dois dedos de tanga e a citação com meia dúzia de nomes conhecidos foram suficientes para lhe passar a perna."

in Materna Doçura, Possidónio Cachapa, Assírio&Alvim, 1998.