sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Uma Missiva de Janeiro Alves no Cair do Pano

Caro Dr. Mara,
            Espero que esta carta de Fevereiro esteja à altura da sua magnífica intelectualidade e superior interesse, para que não a leia na diagonal como é habitual, e não deixe assim escapar os pequenos detalhes das entrelinhas, decisivos para que perceba que nem tudo espelha o que à partida aparenta.
            No Vislumbre está o erro.
            Imagino-o bem, na sua vida pacata, entre a casa, a biblioteca, e o café. Em casa descansa, na biblioteca trabalha e no café convive, embora também conviva em casa, trabalhe no café e descanse na biblioteca. Poderá também trabalhar em casa, conviver na biblioteca (baixinho) e descansar no café, desde que tenha boas poltronas para se recostar. Este seu triângulo é já uma rotina, e quem disser que não precisa de uma rotina fá-lo por inócua rebeldia, ou por manifesta incompetência. É essa rotina que lhe permite por em prática o seu método de trabalho, a sua nobre missão de compor palavras através de letras, frases por junção de palavras, textos como compilação de frases, e ideias por intermédio de textos. Expresso portanto um sentimento de ampla satisfação por ver o Dr. Mara, na plenitude de todas as suas capacidades físicas e mentais, e sempre com os olhos postos na construção do universo futurista, a produzir matéria literária relevante para as gerações futuras. Agrada-me sobretudo ver que abandonou, num definitivo provisório, os seus comportamentos pouco ortodoxos que tão lamentavelmente abalaram os pilares da sua idoneidade social e dignidade pessoal. O dia em que largou o degredo e a luxúria e decidiu regressar à sua promissora carreira, deveria ser feriado nacional! Longe vai o tempo dos clubes nocturnos e dos negócios obscuros. Faça-se luz nas suas ideias
          Mas já chega de falar de si, Dr. Mara, pois daqui a pouco, de tão inchado rebenta. E se rebentar pelos ares, milhões de palavras desordenadas se soltarão e serão arrastadas pelo vento para parte incerta, como pequenos murmúrios eternos espalhados pela cidade à procura de bocas.
            Este seu admirador por aqui vai andando e observando. Andando pelo jogo da cidade, observando transeuntes a arrastarem-se por entre os destroços da sua própria existência, chorando mil lágrimas vazias no culto permanente da sua impotência de amar. Na avenida passam autocarros repletos de amargura disposta em filas de rostos adormecidos de olhos abertos. As pessoas andam tão cabisbaixas que parecem tentar encontrar a lente de contacto que perderam no chão, e por cima das nossas cabeças cai uma chuva torrencial de depressão e angústia.
            Estava a brincar, Dr. Mara. Apenas senti que esta minha carta estava a necessitar de um momento de tensão. A cidade está resplandecente, as pessoas caminham com um sorriso aberto pelas ruas, e a vida por cá é um grande festim!
           Aguardo notícias suas em breve, se não for antes.
Com consideração e auto-estima,
Janeiro Alves