quarta-feira, 2 de março de 2016

Barco ao Sol

São Miguel, Jorge de Oliveira e Tereza Arriaga (1972)

Fellini e Rimini

         “A noite passada sonhei com o porto de Rimini, que abria para um mar ondulante, verde, tão ameaçador como um prado em movimento, sobre o qual corressem nuvens baixas, tocando o solo.
          Eu era um gigante, nadando para o mar alto, a partir do porto, que era pequeno e estreito. Disse a mim mesmo: “Posso ser um gigante, mas o mar é sempre o mar. Vamos supor que não sou capaz?" Mas não estava preocupado. Nadei em grandes braçadas pelo porto fora. Não me podia afogar porque tocava com os pés no chão. No mar já poderia ser; mas continuei a nadar como se não fosse nada comigo.
          Era um sonho tipo alimentício, que tendia para restabelecimento da minha confiança no mar. Um convite para uma sobrevalorização pessoal; ou melhor, para subestimar as frágeis condições protectoras que poderiam suster-me. De qualquer modo, não compreendi se deveria desistir da ideia de abandonar o porto ou se estaria a sobrevalorizar-me.
        Seja como for, uma coisa é certa. Não gosto da ideia de voltar a Rimini. Tenho de admitir isto: é uma espécie de bloqueamento. A minha família continua a viver lá, a minha mãe, a minha irmã: estarei com receios de alguns dos meus sentimentos? O que me parece é que regressar é sobretudo uma insistência complacente e masochista da memória: uma acção literal, teatral. É claro que pode ser aí que reside o seu encanto. Um encanto turvo, sonolento. Mas não consigo considerar Rimini com um facto objectivo. É uma dimensão da memória, nada mais. De facto, quando estou em Rimini sou sempre assaltado por fantasmas que já havia arquivado, colocado no seu devido lugar.”

in Fellini conta Fellini, Livraria Bertrand, Tradução de Maria Dulce e Salvato Teles Meneses, 1974.

Ontem, escrito numa parede da cidade

Ao escritor doía-lhe o corpo de tanto escrever e, quando entrou na biblioteca, sentou-se descansado a ler.