“A noite passada sonhei
com o porto de Rimini, que abria para um mar ondulante, verde, tão ameaçador
como um prado em movimento, sobre o qual corressem nuvens baixas, tocando o
solo.
Eu era um gigante,
nadando para o mar alto, a partir do porto, que era pequeno e estreito. Disse a
mim mesmo: “Posso ser um gigante, mas o mar é sempre o mar. Vamos supor que não
sou capaz?" Mas não estava preocupado. Nadei em grandes braçadas pelo
porto fora. Não me podia afogar porque tocava com os pés no chão. No mar já
poderia ser; mas continuei a nadar como se não fosse nada comigo.
Era um sonho tipo alimentício, que tendia
para restabelecimento da minha confiança no mar. Um convite para uma
sobrevalorização pessoal; ou melhor, para subestimar as frágeis condições
protectoras que poderiam suster-me. De qualquer modo, não compreendi se deveria
desistir da ideia de abandonar o porto ou se estaria a sobrevalorizar-me.
Seja como for, uma coisa
é certa. Não gosto da ideia de voltar a Rimini. Tenho de admitir isto: é uma
espécie de bloqueamento. A minha família continua a viver lá, a minha mãe, a
minha irmã: estarei com receios de alguns dos meus sentimentos? O que me parece
é que regressar é sobretudo uma insistência complacente e masochista da
memória: uma acção literal, teatral. É claro que pode ser aí que reside o seu
encanto. Um encanto turvo, sonolento. Mas não consigo considerar Rimini com um
facto objectivo. É uma dimensão da memória, nada mais. De facto, quando estou
em Rimini sou sempre assaltado por fantasmas que já havia arquivado, colocado
no seu devido lugar.”
in “Fellini conta
Fellini”, Livraria Bertrand, Tradução de Maria Dulce e Salvato Teles Meneses,
1974.
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