terça-feira, 30 de novembro de 2021

Van Gogh por Van Gogh de Jorge Sousa Braga

Gostaria de ter sido um girassol. Um girassol hirto no seu caule, de
longas folhas verdes desajeitadas e uma enorme corola doirada, se
guindo cegamente o sol.
Estou só e a minha cabeça explode em milhões de girassóis.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Fim de Semana Musical no Arquipélago


     Os WE SEA apresentaram-se em palco nesta última sexta-feira, com Rui Rofino (voz), Clemente Almeida (sintetizador e baixo), Rómulo San-Bento (guitarra) e Pedro Rodrigues (bateria) perante uma blackbox do Arquipélago disponível e com a sala há muito esgotada. A audiência estava, por isso, pronta para aderir com rapidez, pois estava completamente sintonizada com o cancioneiro, notando-se que estes jogavam em casa dada a familiaridade que se sentia tal era o ambiente de festa pressentido a cada canção concluída. Com os temas dos álbuns anteriores intercalados com o a apresentação do seu novo trabalho, “Cisma” revelou-se um disco mais consistente, aprimorado e repleto de canções seguras e prontas a ser trauteadas e acessíveis a qualquer playlist de uma rádio bem perto de si. Foi, sem qualquer dúvida, um concerto muito bem conseguido, evidenciado uma etapa diferente e com um espírito de banda que se pretende que continue e solidifique. Houve tempo para alguns momentos a roçar a perfeição, com alguns novos temas ao vivo a soarem orelhudos, bem audíveis e ritmados, como são os casos de “Seja como For” ou “Cisma”. Por isso, há que dar os parabéns à banda pelos seus cinco anos de existência, esperando que a novidade se repita a cada novo disco e concerto ao vivo. 
      No domingo, ao fim da tarde, foi a vez de Luís Senra subir ao palco da blackbox para tocar e dar azo ao seu saxofone navegante, permitindo-se este a um diálogo da sua barca sonora de forma serpenteante e experimental no violino e poesia de Filipa Gomes. Desse empreendimento em palco, resultado da oficina intuitiva com o objetivo do concerto "Reflexos da Origem", há que ressaltar a graciosa construção erguida em pedras de basalto negro, sugerindo aqui uma experimentação cenográfica baseada na união dos músicos presentes. Uma prestação curta, é certo, mas sincera na expressão musical e do amor necessário a um mundo em colapso e em que cada um de nós se encarcerou e perdeu o norte mas que lentamente não tardará a voltar a abrir-se. E que, por isso, haja permanentemente música em redor.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Cinema Polaco: "Ida" de Pawel Pawlikowski

       Está disponível na RTP Play e é uma das continuadas surpresas que nos chega de um país com uma longa tradição cinematográfica: a Polónia.  Ida" (2013) pertence ao realizador polaco Pawel Pawlikowski, actualmente com 64 anos de idade, e contou com o argumento de Rebecca Lenkiewicz. Após conhecimento do nome do realizador, havia, então, o risco da desilusão depois de saber da autoria do belíssimo, para não dizer magnífico filme, “Cold War”, de 2018.
         "Ida" conta a história de uma jovem freira que é aconselhada no convento a visitar a família antes de fazer os respectivos votos. Ao descobrir que é de origem judaica, Ida (Agata Trzebuchowska) decide partir com a sua tia, Wanda Gruz (Agata Kulesza), em busca das suas raízes pessoais. A partir daqui é todo um mundo novo que se revela e desvela à sua frente. O ambiente claustrofóbico é facilmente reconhecível nos edifícios, carros, cidades e paisagens presentes no cenário desse período da Polónia do pós-guerra. Quem viajou nos anos noventa pelo Leste europeu, após a queda do muro de Berlim, já tinha visto certamente "A Insustentável Leveza do Ser"(1987), de Philip Kaufman, e, também este, um filme impregnado de fotografia a preto e branco, assente numa narrativa amorosa e de melancolia amarga desse período pesado associado ao fracasso do socialismo real. São imagens fortes marcadas pela nostalgia e pequenas libertações desses momentos repressivos, pontuados aqui e ali por momentos de esperança que viriam a resultar em "democracias" que viriam a afirmar-se promissoras neste novo contexto político  europeu. 
          Ida” é, sem dúvida, uma obra de grande intensidade, com a presença e atmosfera do jazz daquele período, por isso há aqui uma espécie improviso interior. Esta explosão da tensão só damos conta no fim do filme, dado que de tanto segura e serena é a personagem que decide implodir no seu caminhar em frente. O que morre em nós quando queremos saber a verdade do que fomos? Porque é que nos deixaram viver quando a obrigação era ter ficado sepultada naquele buraco?, perguntamos nós!
         De qualquer forma, passados estes anos todos do fim do  bloco de leste,  este cinema parece surgir fora do tempo, sem lugar, ainda que carregue dentro de si uma pulsão e nervo que impressiona pela força das suas imagens e rostos. Curiosamente o filme ganhou vários prémios: óscar para melhor filme estrangeiro em Hollywood, melhor filme para a Academia de Cinema Europeu e melhor filme para a Academia Polaca de Cinema. Merecidos, evidentemente.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

"a pão e água" de Joaquim Castro Caldas

ainda há gente boa, de cabeça deslumbrada, o coração em cima

da mesa com uma pistola descarregada, a contar a última aventu-

ra sem medo que lh´a levem, ainda gente pura que partilha

a aventura e empresta a pistola, carrega o coração às costas com

a cabeça à mostra: ainda há gente, e bem haja, com quem se

pode abrir a vida toda e a quem se deve o prazer de ser gente,

não só a bem de quem mas à maneira de ser gente pura e mais

nada. Ainda há gente rija e linda que demora mais a amar do que

é amada. um grande amor ainda espera pelo amor mais do que

uma vida inteira.

in Mágoa das Pedras, Deriva Editora, 2008.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

WE SEA: "Cisma" no Arquipélago da Ribeira Grande


Cinco anos volvidos desde a sua apresentação e com um novo álbum pronto a estrear eis que os ribeiragrandenses, WE SEA, estão de volta ao Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande.  O encontro dar-se-á no dia 26, sexta-feira, às 21h30. Com os habituais Rui Rofino (voz) e Clemente Almeida (sintetizador e baixo) estarão também em palco  Rómulo San-Bento (guitarra) e Pedro Rodrigues (bateria) na apresentação de “Cisma”, 2021, o disco que substitui “Basbaque”, editado em 2019, e que será o mote para reunião alargada da sua legião de seguidores neste seu regresso a casa!

Desta feita, aguarda-se com expectativa, para lá da estreia dos temas de "Cisma", o entoar de canções como “Ser de Ver”, “Basbaque”, “Tantos mas, mais quantos Nós?”, “Verde Seco Feito Negro” na voz distinta e arrojada de Rui Rofino! É sabido que Rui Rofino continua a escrever de forma livre, divertida e desempoeirada! Este canta com muita alma e é seu costume entregar-se em palco, destilando a verve e o charme na língua de Antero de Quental, mantendo incólume o seu sotaque açoriano. Quem o ouviu e viu pela primeira vez, há cinco anos, soou de imediato a descoberta e augúrios de encantamento. É previsível, agora, que haja uma maior maturidade e desenvoltura em palco, uma diversidade na explanação no cardápio das narrativas e versos tal  como maior plasticidade na luz e no timbre das canções. Por isso, ouvidos à escuta, dado que não já não há muito que cismar até à próxima sexta-feira!

domingo, 21 de novembro de 2021

Do Riso

           "Passamos a vida a perguntar se passámos os limites  e se há limites se há alguma coisa sagrada da qual ninguém se deve rir. Eu acho uma boa pergunta e acho que não. Não há nada que não mereça ser alvo de risada. Algumas coisas não vão ter piada, mas não é por isso que devam ser clean"

Gregório Duvivier, Revista Expresso, 20 de Novembro de 2021.

"as algas e o musgo" de Joaquim Castro Caldas

o fim do verão deixou
debaixo das pedras vento
vísceras e sol
 
não há sombras
e a meio do Outono
as gaivotas rompem a neblina
com o bico
 
os barcos brincam em dueto
ao apito com eco
 
para a claridade
há um biombo
e a silhueta de uma mulher
despe-se
 
mergulho no desenho
azul medo do mar
bebemos buio
fumamos breu
 
conservas o coração
quente para sobreviver
aos rigores do Inverno
e tudo se passa por dentro

 in Mágoa das Pedras, Deriva Editores, 2008.

Junto ao Canal

 









Foto de Tânia Neves dos Santos

sábado, 20 de novembro de 2021

"Na Ilha de Porto Santo" de Ana Hatherly

Por sobre a esmeralda líquida do mar 
o poeta espraia lentamente o olhar 
e enquanto as pequeninas ondas 
correndo para a praia se abatem 
por sobre a areia quase distraidamente
o espírito do lugar penetra-lhe os sentidos
e no seu pensamento subitamente brilha 
o perfil mágico, mítico, da ilha.  

in Itinerários, Quasi Edições, 2003. 

Um Verso de Adrianne Lenker

And I don't wanna talk about anything.

Meia de Mar










Fotografia de Tânia Neves dos Santos 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Arquipélago: Há Arte no Centro!

    O Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas - está situado na cidade da Ribeira Grande e encontra-se em funcionamento há seis anos. No passado dia 23 de Outubro inaugurou-se ali uma exposição intitulada “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, do artista açoriano João Amado - aberta ao público até ao dia 16 de Janeiro. O criativo esclarece, através das suas 36 colagens em madeira, a razão porque se tornou um “colagista” ascendente em tão curto espaço de tempo, fazendo das suas “narrativas policromáticas” os elementos pictóricos essenciais da sua composição plástica. O seu modus operandi caracteriza-se pelo seu arreigado trabalho de bisturi, cirúrgico, revelador de processos ousados de figuração misturados com signos e símbolos da natureza primordial. Um momento de felicidade partilhamos nesta sua primeira exposição. No interior do Arquipélago constam ainda diversos lugares expositivos, no espaço central está patente “Lugares de Fractura” de Maria José Cavaco e noutro dos espaços inferiores, e em forma de pequenos estúdios, encontra-se a colectiva “Quatro Quatro”. Uma clara ideia de exposição criativa que lançou para exposição 20 artistas num ciclo expositivo de 4 artistas X 5 momentos de exposição (cada 4 artistas convidavam 4 artistas para o momento seguinte). O resultado, uma diversidade e riqueza de propostas artísticas expostas num hino à camaradagem e companheirismo. Ainda no mês de Outubro foi possível assistir à apresentação de mais uma edição do “Fuso-Insular”, evento marcado pela perspetiva divulgadora e formadora da videoarte, sendo o Arquipélago o centro de apresentação e visualização de seis propostas de videoarte pelos formandos de Susana de Sousa Dias, com a acompanhamento de André Laranjinha. Durante o evento, assistimos aos filmes “Natureza Morta” (2005) e “48”, (2008), de Susana de Sousa Dias, nesse encontro duro e arriscado com a memória coletiva do passado ditatorial, assente essencialmente nas fotografias do arquivo da PIDE guardadas na Torre do Tombo e demais registos fílmicos de arquivo ou mesmo pessoais. Pena apenas por ambos os filmes terem sido mostrados na mesma altura, todavia o facto não retirasse o vigor presente nas imagens e narrativas explicitadas. As sextas-feiras tem vindo também a ser ocupadas pelos novos sons e ritmos propostos pela recém-criada editora de nome singular: Marca Pistola! Desde o concerto de “PS.Lucas” - um encontro com a guitarra deambulante e melancólica de Pedro Lucas, ou a bateria amplificada e potente de Ricardo Martins, até à apresentação do novo disco dos ribeiragrandenses WE SEA, no fim deste mês - abriu-se a contenda das novas sonoridades também neste local. Para além de tudo isso, ressalte-se ainda a marca arquitectónica deste edifício que merece uma visita pela força da sua memória, pela sua beleza e harmonia estética, pela sólida imponência das suas linhas de desenho, hoje pontuada por uma intervenção contemporânea de estrutura sóbria com os seus diferentes dispositivos codificados e bem definidos.
    Por fim e, agora que este espaço parece, finalmente, aberto à comunidade artística local e, não só, seria de bom tom receber diferentes tipos e modalidades da arte contemporânea presentes nas restantes ilhas do Arquipélago, bem como de Portugal Continental, tal como continuar esse esforço de formação e convivialidade entre os artistas locais e os que se encontram em residência. Sugere-se, por isso, a valorização da sua biblioteca cada vez mais renovada e especializada, o provimento de um serviço educativo dinâmico e inclusivo e uma programação dinâmica, diversa e abrangente.
    Estamos, pois, na presença de um espaço pluridisciplinar que tem sido capaz de se reinventar, finalmente, exercitando as suas múltiplas valências e propenso à ocorrência de diversa e prolífica atividade artística contemporânea. Certa também, é a proximidade e integração do edifício com o mar e a luz da cidade, a necessitar, por isso, de fazer parte do mapa diário de todos habitantes insulares, permanentes e nómadas.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

"Avec le Temps" de Ana Hatherly

 Com o tempo

tudo passa

do possível ao improvável

 

Com o tempo

desabitamos

as condições do corpo

a sua assinatura

 

Com o tempo

descobrimos o sentido fractal –

na face do Banquete

as coisas conhecidas

tornam-se sussurro

 

O futuro é um despiste amargo

um vértice truncado

que se esfuma

 

Divorciados do acaso

afastamo-nos calados


No deserto

surdamente gritamos

 

in “Itinerários”, Quasi Edições, Março de 2003

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

"Tenerife ao Longe" de Ana Hatherly

As nuvens parecia 
que tinham sido penteadas
com pentes de largos dentes 
que deixavam
largos riscos no toucado do mar
Ao longe 
o vulto difuso da pequena ilha 
emergia 
acima de uma bruma rósea
com seu pico nevado 
Sonhei estar a teu lado
falar-te 
ouvir-te
Mas o vulcão está mudo
e tudo me afasta de tudo


in Itinerários, Quasi Edições, Março de 2003. 

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

" - Como é que é conhecido?

 - Como blagueur. Um tipo com graça. E é o contrário, porque se graça resiste, ela é um bocado amarga. Até me arrumarem apressadamente com o Tolentino, o Junqueiro."

in "Diz-lhe que Estás Ocupado - Conversas com Alexandre O´Neill", Edição, organização e introdução de Joana Meirim, Tinta da China, Maio de 2020.

domingo, 7 de novembro de 2021

Um Poema de Óscar Outono

 Houve uma precipitação na rima

A queda e gosto pela declinação 

Desse teu corpo poroso em demasia

O desgaste eufórico da decepção   

"Half-Heard" no Teatro Ribeiragrandense

       

       "Half-Heard" é um espectáculo de dança contemporânea pertencente ao Rocha Dance Theater. Este foi apresentado na noite de sábado, dia 6, no Teatro Ribeiragrandense com uma sala atenta e bem composta, num ambiente desperto que seria necessário para esses primeiros quarenta minutos de pura representação dos vícios, visões e meandros do poder, manifesto nos tiques e linguagem gestual dos poderosos, e que se foi tornando evidente aos nossos olhos. Pergunta: qual é o papel da mulher no meio disto tudo? "Half-Heard" exalta o mundo feminino, a delicadeza, o compromisso, e por isso há muita energia em palco, com as performers a cativarem o público pela sua cadência obsessiva dos gestos masculinos num ritmo tonitruante que as faz lutar pela única cadeira em palco. Conseguirão?
        A primeira parte de "Half-Heard" é, simplesmente, absorvente e intensa com os corpos femininos em uníssono mascarados pelos habituais fatos e trajes masculinos em poses que debatem no ridículo e ultrajante foco pelo altar do poder, sucumbindo apenas ao grito e frémito latente da tortura dos que permanecem submissos ao seu jugo e violência. Como cantava Zeca Afonso: “Mulher na democracia não é biombo de sala”. Seguiu-se  depois a peça estudantil, com muita ousadia e policromatismo em palco, e ainda o "Running Time" para fechar em beleza este hino ao corpos em movimento onírico. 

         Esta coreografia teve a direção de Jenny Rocha, com ligações familiares à comunidade açoriana, a música original de Joseph Rivas, por sinal, grave e profunda, que marcava o compasso, esclarecendo a exaltação dos gestos das bailarinas em palco, num elenco composto por: Alexandra Bitner, Dervla Carey-Jones, Nikki Ervice, Jamie Graham, Nicole Lemelin que assim se expunham de forma enérgica e clara, revelando  a tirania dos gestos viris, as feições carregadas da opressão em curso e que se manifestam ao longo dos tempos. Continuarão?

     E, por instantes, foi assim que, ainda que durante muito pouco tempo, Nova Iorque invadiu São Miguel em pleno Outono! Valeu a pena! 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

"P.S. Lucas" no Arquipélago da Ribeira Grande

 


Diogo Lima: o Cineasta Irónico!

 

         

          Diogo Lima tem 28 anos e nasceu na Ribeira Grande, em São Miguel. Desde muito cedo quis fazer filmes para mudar o mundo, transformar o lugar onde cresceu, ser conhecido pelos registos audiovisuais que realiza. Ele era muito novo, quando aos dezassete anos, decidiu partir para Lisboa e estudar Cinema na Universidade Lusófona. Logo no segundo ano da universidade, realizou o documentário “PDL-LIS”, que acabou por vencer o Prémio Açores e o de Novo Talento Regional/ Restart no Panazorean Film Festival de 2012. Depois, prosseguiu o seu percurso em torno das imagens num registo pontuado pela ironia e crítica aos seus contemporâneos, mantendo o seu elo de ligação aos Açores, participando com regularidade com diferentes documentos visuais para o Festival Tremor ou Walk and Talk.
                Passou, entretanto, uma década desde o seu primeiro documentário "PDL-LIS", e agora Diogo Lima acabou de realizar o “Os Últimos Dias de Emanuel Raposo", uma média metragem de 46 minutos centrada na vida de um apresentador de televisão nos Açores, isto é, focada no aparecimento e desenvolvimento da televisão no arquipélago. O filme foi já apresentado no Teatro Micaelense, em Julho último, e, teve uma participação honrosa no Doc Lisboa, aguardando estreia na RTP Açores. É uma paródia sobre a vida deste apresentador cheio de trejeitos e manias, que vive ao sabor dos seus humores e feitio e é, sobretudo, uma crítica ao meio televisivo da altura, ainda que, também ele, o próprio meio, carregado de energia, criatividade e boa disposição.

"Lúcia e Conceição": À Luz da Camelia Sinensis!

 

Ainda hoje o hábito contemporâneo do chá caracteriza-se por ser bebido às cinco da tarde numa chávena de porcelana. O chá terá sido introduzido nos Açores por via das naus e caravelas provenientes do oriente no século XVIII. Depois, foram chegando biólogos e botânicos que aprofundaram o conhecimento da planta camelia sinensis e tornaram o chá um fenómeno insular…até hoje!~

“Lúcia e Conceição” é um documentário produzido pela “Cinequipa”, um grupo de cineastas da RTP, liderada por Fernando Matos Silva. A realização do documentário “Lúcia e Conceição” ocorreu no ano de 1974, um ano antes da primeira emissão de televisão nos Açores, que teve lugar a onze de agosto de 1975.  Este documentário retrata as crianças e adolescentes que trabalhavam nas plantações de chá, na Gorreana, freguesia da Maia. A Fábrica da Gorreana é, ainda hoje, dos locais mais antigos da produção de chá na Europa, com data da fundação de 1893. Em 1974, à altura deste registo documental, o vencimento diário destes adolescentes que recolhiam a planta do chá situava-se nos 36 escudos diários. Era um período social e histórico duma zona rural marcada essencialmente por parcos recursos financeiros, pouca ou nenhuma mobilidade social e ausência de luz elétrica.

As adolescentes Lúcia e Conceição, que dão título à aventura cinematográfica em pleno momento do advento da democracia, falam, sobretudo, em emigrar para o Canadá, dada a ausência de trabalho remunerado na ilha. O pai de Conceição, agricultor e camponês, plantava nessa altura essencialmente milho e beterraba. O milho era um elemento fundamental para ser usado em casa para a feitura de massa sovada, depois de ter ido à moagem comunitária. Conceição tinha mais quatro irmãos, sinal de outros tempos em que os agregados familiares eram bem mais alargados. Os hábitos quotidianos, ao final de cada  dia destes adolescentes também, pois após os trabalhos duros na recolha do chá, ainda havia tempo para ler “romances de amor”, caprichos, publicações que deviam circular de mão em mão, dizemos nós. Os adolescentes retratados neste documentário tinham maioritariamente a quinta e a sexta classe da altura. Estes trabalhavam cinco meses na apanha do chá e depois deslocavam-se para mais dois meses na atividade da apanha do tabaco. Após visionamento do documentário, constatamos que estas crianças e adolescentes tinham como único horizonte continuar as profissões dos progenitores, sendo que eram raras para estes a oportunidade de prosseguir os seus estudos.  Este trabalho da apanha do chá era feito essencialmente pelas mulheres das zonas rurais, já que as da Ribeira Grande se apartavam dos labores agrícolas, e tão só a dedicação às atividades de costura e bordados, implicando por isso uma distinção com as mulheres das freguesias que se dedicavam à agricultura e demais lides domésticas. Quando se lhes pergunta pela alimentação que tinham em casa, estas desmancharam-se a rir. Porque será? A alimentação destas crianças e adolescentes que trabalhavam nas plantações de chá era feita sobretudo à base de peixe e batatas, apesar da abundância de vacas na ilha, sendo a carne para dias especiais.  

No início do documentário ouve-se ainda a voz do narrador assegurar que estes adolescentes nunca verão este filme e que por isso não terão oportunidade de fazer o seu autorreconhecimento. Passou entretanto quase meio século, o chá permanece naquele lugar como elemento essencial e motor da economia local. A vida das pessoas e das crianças, por sinal, mudou e bastante. O que dizer agora depois de vermos o filme tantos anos depois?

O Designer Omnipresente!

            Foi e será sempre o meu designer português favorito. Só recentemente me apercebi como ele esteve sempre presente. A sua leveza e humor nas publicações a que eu fui lendo ao longo destes anos de consumidor de jornais e revistas. Descobri, há dias, que ele povoou a minha existência e me acompanhou, sobretudo,  na minha adolescência e na juventude com a sua linguagem inventiva e apelativa. Por vezes, nem sabia que era o Jorge Silva que estava por detrás destes projectos, a maioria das vezes com coisas arrojadas e nos limites do risco e da imaginação. Eram, essencialmente, as suas linhas inovadoras, os seus traços soltos, a composição do espaço, os seus sinais lúdicos que me cativavam e entusiasmavam. Por isso, tenho e trarei  comigo edições do Jornal "Combate", outras do Jornal "Independente", ainda da revista "Adufe" ou do saudoso "Mil Folhas" do Público que me agarraram e que delas nunca me conseguirei desprender ou desfazer. Assim se coseu, pois, a minha ligação ao design e a este desenhador de páginas que sempre me encantou e fascinou. Obrigado por tudo isto e por muito mais, Jorge!

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Sobre dois adolescentes que esta tarde atravessaram a rua de mãos dadas

 Foi depois do fim das aulas.
Passaram o portão de ferro da escola
e deram as mãos
para atravessarem a rua.
E, de mãos dadas, formaram
uma corrente
tão poderosa, tão compacta,
que o trânsito teve mesmo de parar
e ficou completamente imobilizado. Não vou ceder
agora à tentação
de afirmar que assisti
à materialização de um milagre,
afinal é coisa
que deve estar sempre a acontecer,
em algum lugar, ao fim
da manhã ou da tarde, logo
depois das aulas,
dois adolescentes dão
as mãos, atravessam a rua, bloqueiam
a circulação rodoviária
de uma cidade.
Mas pensa nisso por um segundo,
pensa na força dessa corrente.

Luís Filipe Parrado