sábado, 30 de janeiro de 2016

Saída

temos na terra um dizer
Que é diferente do de fora
Temos as vogais bem cheias
Encanadas pelo vento
Do tempo que se demora

nesta terra temos tempo para gastar
Nesta terra temos tempo
Nesta terra vemos o tempo passar
Nesta terra somos tempo

vem à ilha
Só para ver o que ela tem
nesta terra temos tempo para gastar
Nesta terra temos tempo
Nesta terra vemos o tempo passar
Nesta terra somos tempo

vem à ilha
Só para ver o que ela tem
Quatro tempos num só dia
Cada minuto são cem

vem à ilha
Talvez fiques mais um dia
Porque o avião não vem

música dos Bandarra (Letra: Miguel Machete), in álbum Bicho do Diabo, 2012.

O Mapa da Minha Experiência

       "Quando fiz 50 anos, deixei de contar os lugares em que tinha vivido. Às vezes por poucas semanas, às vezes durante uma década ou mais, o mapa mundo consistiu, para mim, não na sua convencional representação num globo, como o que tinha na minha mesa de cabeceira quando era criança, mas numa cartografia pessoal em que as maiores massas de terra eram os lugares em que eu passava períodos maiores, e as ilhas os locais de passagem mais curta. Tal como o modelo do eu concebido por fisiologistas em que o tamanho de cada traço corresponde à importância que lhe atribuímos na nossa cabeça, o meu modelo do mundo é o mapa da minha experiência."

Alberto Manguel

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

À Procura da Biblioteca Ideal


As bibliotecas são, por vezes, lugares demasiado solenes, cerimoniosos e, porventura, ainda bem. Uma biblioteca é uma casa de cultura viva, guardiã máxima do saber e da memória e, porque não dizê-lo, ponto de descoberta de mundos novos, espaço, portanto, de vários encontros entre quem lê e quem escreve, impulsionador da troca de saberes e de experiências e, quem sabe, um lugar propício ao aparecimento de novas vozes literárias, podendo estas ir de encontro ou não ao que sentimos e queremos deste mundo em que vivemos. Esperemos, entretanto, que novas utopias brotem.
A memória de infância que guardo de uma Biblioteca não é a melhor. Estou ainda a ver uma senhora bibliotecária numa minúscula sala com livros, ali com os seus cabelos brancos encaracolados, o rosto duro e fechado, os seus olhos negros enfiados pelos óculos de vidro de garrafa, a instigar terror quando os livros passavam o prazo de entrega. Era vê-la aos berros a ver se envergonhava os faltosos, a controlar a ficha dos incumpridores e a verificar o estado dos livros um a um (maioritariamente, banda desenhada), chegando mesmo a ruborizar tudo e todos, só para que víssemos o sacrilégio que tínhamos acabado de cometer, fosse aquilo que fosse. Devo ter demorado alguns anos até voltar a entrar numa biblioteca pública.
Os anos passaram e, à volta das cidades portuguesas, as novas bibliotecas abriram-se aos novos tempos e diversificaram a sua actividade, imprimindo diferentes funcionalidades, deixando assim de ser exclusivamente depósitos de livros ou consulta de documentos, para ser também lugares de estudo ou pesquisas de livros, deslocando espaços para a fruição e prazer associado à leitura, tais como salas  dedicadas à Hemeroteca (material periódico) ou videoteca (cinema e documentários), para além de outras salas dedicadas às crianças, com leituras de histórias e conto infantis, preparando assim novos e futuros leitores! As bibliotecas poderiam ter também um espaço consagrado ao absoluto silêncio, à leitura e introspecção pura, onde nem sequer fosse possível ouvir a voz humana.
Ultimamente, partilho com frequência e com muitos outros a Biblioteca Municipal e Arquivo de Ponta Delgada, em São Miguel, apreciando deste modo a beleza e largueza do seu edifício, trata-se de um projecto de recuperação do antigo Colégio Jesuíta, contém no seu interior diferentes espaços, sendo visitada diariamente por centenas de estudantes e investigadores, possui pátios exteriores muito bonitos (um deles, conta com uma escultura do João Cutileiro). Proporciona também um agradável serviço de bar, com uma gastronomia cuidada e diversificada e um serviço de empréstimo de livros vasto e bastante actualizado, pois como diria o físico, Carlos Fiolhais, “investir em belos livros é investir na beleza e a beleza é sempre consoladora”. Consolemo-nos, pois!

...

Con los dias contados
chaval, así vivimos
todos. Esperando
a que nos tachen
de la lista. Distrayendo
la espera con tragos
y canciones. No hay más.
Puedes llorar o morirte
de risa. Como prefieras.

Karmelo C. Iribaren

Açores, seis anos depois...

           Eu era novo, demasiado novo, quando vim aos Açores pela primeira vez. Foi um pouco depois dos célebres protestos estudantis na República Popular da China e um mês antes da queda do muro de Berlim. Passaram-se, portanto, vinte anos, pude confirmá-lo agora com as fotografias guardadas no silêncio da gaveta. Foi amor à primeira vista. À semelhança dos amores duradouros, há dias com maior paixão e intensidade, dias claros e luminosos, outros nem por isso. Quando aqui estive, em 1989, ainda não tinha lido o livro de Raul Brandão “As Ilhas Desconhecidas”, nem o arquipélago açoriano era considerado o segundo lugar dos melhores destinos do mundo no turismo sustentável (segundo a revista “National Geographic Traveler”). Porque nasci à beira-mar, fiquei com uma memória viva desse primeiro encontro, daí a nunca mais ter esquecido foi um passo de gigante ou o tamanho da montanha do Pico.
           Há duas décadas fazer uma viagem a quatro ilhas dos Açores: Faial, Pico, Terceira e São Miguel, foi um profundo acaso na vida de um adolescente. Tudo aconteceu após ter escrito um artigo para a Antena 1, o programa “Os Jovens Encontram a Europa”, sobre um tema que gostaria de ver discutido no Parlamento Europeu: o desemprego. Três meses depois, tive direito a um prémio. O prémio foi uma viagem/visita com tudo pago ao arquipélago dos Açores durante oito dias, com estadia incluída. Era uma comitiva de estudantes muito novos: portugueses, espanhóis, italianos e alemães para além dos organizadores, todos eles ligados às emissoras radiofónicas dos países organizadores do respectivo concurso. Com a bagagem retida em Lisboa, a primeira ilha a visitar foi o Faial com o seu vulcão dos Capelinhos, o Cabeço Gordo, a Caldeira e a passagem natural pelo Peter Café Sport. Tudo isto superou a possível irritação com os haveres, tendo dado origem a uma grande aventura até ao aeroporto em carrinha de caixa aberta, um dia depois, dada as constantes alterações climatéricas que se faziam sentir e as oscilações naturais do percurso, pois nem tudo estava naquela altura alcatroado.
       Recordo-me, muito para lá do postal turístico, da presença esmagadora do verde enquanto reflexo da força e poder dos elementos naturais: a abundância da água que caía, a irradiação da luz e as suas variações cromáticas e, claro, as nuvens em constante mutação. E, evidentemente, a visão do Pico que também naquele momento nos enchia a vida…para além dos licores, que lá fomos beber dois dias depois. Os Açores assemelhavam-se, portanto, à “policromia orgiástica”, que mais tarde viria a descobrir no livro de Brandão. Os Açores eram assim a infância renovada, a possibilidade de reencontrar uma natureza ainda intocável e virgem que, para desencanto de muitos continentais, foi desaparecendo nas terras do litoral e, quem sabe, no interior. E, embora hoje se sinta um sentimento de “continentalização”, é o progresso dizem-nos, a paisagem é perene e imutável, continuando por isso sempre bela e de fácil contemplação.
            Os Açores, para qualquer ser melancólico em crescimento, prolongavam e prolongam o espelho. Pode-se afirmar que, passados tantos anos, os Açores continuam a ser lugares imaculados de silêncio e de natureza rica na sua expressão mais vital e fulgurante, os tais “montes de fogo, vento e solidão”, descritos pelos primeiros navegantes. E, talvez por isso, há quem goste de contemplar e se sinta bem por aqui.

in "Re(faial)izar", Boletim Cultural Fazendo(https://issuu.com/fazendofazendo), Janeiro de 2010

Ontem, escrito numa parede da cidade

Não devia ser permitido ir a uma biblioteca de barriga vazia.

Brumário


quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Dizer Poesia à Lua

             Uma vez questionado sobre se seríamos ou não um país de poetas, Alexandre O´Neill respondeu que estaríamos mais próximo de um país de lunáticos. Nada contra os lunáticos, demais poetas e todos os outros cultores das palavras ditas e escritas. Certo é que falamos uma língua com 170 milhões de utilizadores, somos o sexto idioma mais falado no mundo como primeira língua. Perante os que não são portugueses, e a todos os outros que se mostram curiosos da nossa poesia e literatura, dizemos sempre que lemos e gostamos do Camões, Pessoa, Bocage, Sophia, Alexandre O´Neill e, agora, o Herberto Helder. Lemos, gostamos, de facto? E aquilo que se faz de novo na poesia portuguesa, temos sido, suficientemente, curiosos? Como é que podemos aceitar que uma boa edição de poesia ronde apenas os trezentos exemplares? E os livros circularão pelos lares portugueses tal e qual os jornais desportivos?
           Durante anos, patenteei uma salutar desconfiança perante leituras públicas de poesia, talvez fosse o hábito de ler ao meu próprio ritmo, ou porventura, atribuir aos poemas uma solenidade e secretismo que de facto estes bem merecem e que uma leitura pública pouca ou nada preparada pode perturbar. Nunca fui, por isso, seguidor de leituras espontâneas de poesia, e, inclusive, fiquei já incomodado ou mesmo algo convulso por leituras que se fizeram ou fazem de poemas dos quais gosto muito. No entanto, já houve também audições de poemas que me fizeram ir à procura dos textos, concederam entrada directa no universo poético dos seus autores, ou ainda nutrir por estes um afecto ainda maior na minha hierarquia. Deste modo, quando ouço alguém ler um poema satisfaz-me quando este/a conhece o autor em questão ou entendeu os modos e o tempo em que este escreveu os poemas, descobriu-lhe os gestos possíveis ou imaginários, ou sonda penetrar a fundo nos temas e encarnar um possível tom. E é, a partir desse conjunto de possíveis, que experiencia individualmente os poemas antes de os dizer publicamente. Um texto poético deverá, em primeiro lugar, funcionar para quem o lê, trabalhá-lo enquanto ritmo, tempo e entoação e, só depois, tornar pública a sua apresentação.
            Recentemente, tornei-me um leitor comum de poesia na TASCÀ, uma antiga taberna e mercearia, bastante particular do ponto de vista estético, e dada a conversas e demais tertúlias, sendo aqui que se dão as noites de poesia micaelense. O poeta Fernando Pessoa afirmou que “a minha pátria é a língua portuguesa”, concedendo assim a hipótese da língua ser cultivada, divulgada, exteriorizada nas suas mais diferentes expressões. Certo é que a poesia deveria ser mais lida, partilhada e guardada no interior de cada um, decorada, se possível. Mas, entre aquilo que é ou poderia ser, prefiro ler com e para os outros em oposição àquilo que se ouvia muito no “basfond” lisboeta dos anos 80 – “coisíssima nenhuma”.

Troféu

Como quem percorre uma costa
maravilhado com a abundância do mar,
recompensado pela luz e pelo pródigo espaço,
eu fui o espectador da tua beleza
durante um longo dia.
Despedimo-nos ao anoitecer
e em gradual solidão
ao voltar pela rua cujos rostos ainda te conhecem,
 a minha felicidade ensombrou-se, pensando
que de tão nobre acervo de memórias
iriam perdurar escassamente uma ou duas
para decoro da alma
na imortalidade do seu rumo.

Jorge Luís Borges, (Trad. Fernando Pinto do Amaral), OBRA POÉTICA, Vol. 1, Quetzal, 2012

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A Amizade e a Inutilidade da Arte

             Há muitos anos, numa passagem por Constância, após presença e vivência na zona da raia, visitei a Biblioteca Alexandre O´Neill, e, para lá de ter encontrado um arquivista/bibliotecário apaixonado e encantado com as histórias deste poeta, pude certificar-me que a biblioteca era detentora do espólio da casa de férias do autor de “Um Adeus Português”, encontrando por ali as suas paixões literárias (alguns italianos, como Sandro Penna, Giovanni Raboni, Quasimodo, etc). Ainda as suas fixações poéticas patentes em dedicatórias, sobretudo uma bem especial assinada pelo seu amigo, Ruy Belo, na primeira página de “Homem de Palavras”: "Ao Alexandre, condenado a só ver de longe em longe, mas sempre camarada e amigo, com um abraço do Ruy". Alguns anos depois, posso confirmar que nenhuma biografia pode devolver de forma tão abrupta aquela afinidade, a porção de afecto e camaradagem entre aqueles dois poetas de eleição, patenteada naquela amostra de caligrafia.
             Há três anos atrás, na ilha Terceira, mais concretamente na cidade de Angra do Heroísmo, fiquei a conhecer a amizade superlativa que existia entre um poeta, Rui Duarte Rodrigues, e o maravilhoso autor de “O Cantar Na M´Incomoda”, o músico, Carlos Medeiros. Dessa convivência, tomei nota dos dias passados em conjunto no café “Portugália”, a partilha de músicas e de versos, a cumplicidade esmagadora, quase febril, a comunhão entre personalidades tão opostas. Foi certamente uma alegria poder comprová-la, essencialmente através do depoimento de amigos, saber de tão profícua união, geradora de encontros, discussões, controvérsia, criatividade. Uma satisfação criadora, de facto.
           Entretanto, uma amiga de confiança, deu-me a conhecer um poema que o poeta micaelense, Armando Côrtes Rodrigues, dedicou ao seu eterno amigo, o pintor Domingos Rebelo, reforçando assim a ideia de amizade desmedida entre ambos e a cumplicidade expressa em simples dedicatória que abre o respectivo texto poético, agora digitalizado: “a ti, que vives o sonho da tua arte, inútil para a maioria dos homens, a sinceridade destes versos”. Decorria o ano de 1931 em São Miguel, a ilha não era o que é hoje, vive-se, é certo, um período de globalização acelerada pautada pela rapidez das tecnologias e das redes sociais, continuando a existir amigos que pintam e escrevem. Será que a amizade ainda hoje se mantém fecunda?

Das Utopias

    "O que me parece forte em algumas utopias sociais ou artísticas do século XX é que o centro da utopia não era viver mais tempo, era viver de forma diferente."

Gonçalo M. Tavares, in Público, 8 de Janeiro de 2015.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O Quarteirão de PDL

               Uma ideia de um quarteirão citadino formado por quatro ruas - D`agoa, Pedro Homem, Carvalho Araújo e Guilherme Poças Falcão - relevantes do centro histórico de Ponta Delgada, caracterizado pelos limites do seu casario à escala humana, ainda por cima concentrando dentro de si locais de memória e do saber, tais como espaços museológicos, biblioteca e arquivo municipal, só poderá suscitar em nós curiosidade sobre o que se irá passar a seguir. Desta forma, se verificarmos que já existem galerias de arte, lojas de roupa, um jardim, um restaurante vegetariano, cafés, bares, hostels para diferentes gostos, vários supermercados, dentista, farmácia e cabeleireiro, tudo leva a crer que essa mesma ideia tem tudo para se desenvolver e sedimentar.
Senão, vejamos, nos últimos anos verificarmos que uma boa parte das cidades portuguesas foi surpreendida por um turismo aos magotes trazido pelas companhias de baixo custo e, em certa medida, pelo forte travão que a crise financeira imprimiu à construção civil e à especulação imobiliária, obrigando a uma reflexão séria dos poderes públicos sobre a desertificação dos centros históricos e a fraca densidade populacional daí decorrente. À medida que outros lugares habitacionais deram espaço a novas centralidades, os ditos centros históricos foram ficando degradados, negligenciados e sem influência perante outras forças económicas que emergiram em seu redor, condenando estes espaços a uma existência exânime, visitados somente pelo turismo apressado, sem qualquer vida dentro. O que fazer? Em primeiro lugar, perceber a dimensão e gravidade deste problema, compreender a origem e razões desse abandono, bem como o consequente desinteresse das populações pela vida nesses antigos locais, tentando captar e atrair de novo o pequeno comércio, fomentando a economia social e assumir a recuperação e requalificação arquitectónica entre mãos. Os arquitectos, no actual contexto deficitário e criativo da sua profissão, podem ser eles próprios os incentivadores e agitadores dessa renovação necessária. Como? Ao apresentarem, eles próprios, soluções e propostas aos donos de casas abandonadas ou degradadas, propondo e discutindo soluções estéticas que visem dignificar o conjunto e o casario deste quarteirão. A partir desse momento, podem e devem contar com os poderes públicos, também eles na vanguarda do interesse da revitalização do seu centro histórico.
             Se entendermos que uma cidade são as pessoas que lá vivem, os seus anseios e desejos, ainda o seu conjunto edificado e alargado de habitações, monumentos, igrejas, uma ideia de “quarteirão” no centro histórico de Ponta Delgada, parece-nos, sinceramente, uma ideia com asas e com energia para voar. É que quando olhamos em volta e vemos que estas ruas repletas de história, únicas pela sua arquitectura ao longo dos séculos, é fácil de constatar que poderão vir a ser novamente pólos de vida, trabalho e criatividade. Basta querer. Devemos, portanto, reflectir sobre o que queremos deste quarteirão e de que modo todos possamos granjear o céu e boa aventurança. Assim, teremos “Quarteirão”, certamente.

Os Milagres Acontecem

Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.


Ana Paula Inácio

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A Pé por PDL

            Quando o Inverno se instala, só é possível chegar a São Miguel de avião. Depois, começamos facilmente a percorrer as ruas de Ponta Delgada pelos próprios meios, usando os pés à velocidade do tempo que mais nos aprouver. É impossível passear por terra micaelense sem visitar o jardim António Borges e, se conseguirmos visitá-lo com uma visita guiada tanto melhor. Foi isso que aconteceu com a disponibilidade do funcionário Paulino, que teve o condão, a gentileza de mostrar árvore a árvore, recanto a recanto, tendo começado logo por apresentar o criador e desenhador daquele espaço - o paisagista, António Borges, erigido em busto à entrada, apercebendo-nos de imediato desse seu entusiasmo em reunir diversas espécies em cerca de 2,5 hectares, mesmo no centro da cidade insular. De imediato, a atenção foca-se numa “Phicus Macrophyla”- normalmente apelidada por Figueira Australiana, ostentando várias raízes externas como se fossem rugas salientes a marcar a passagem do tempo e da velhice. O Jardim António Borges é a imagem de marca do romantismo pitoresco do séc. XIX, tendo sido concretizado entre 1858 e 1861, passando para o domínio público na segunda metade do séc. XX, mais concretamente a 11 de Setembro de 1957. O responsável pela introdução deste riquíssimo e vasto património arbóreo, verdadeiro amante de botânica, dedicou uma boa parte da sua vida à preservação destas espécies, exóticas na ilha. Todo o espaço do jardim é um encantado passeio pela diversidade e variedade, onde podemos encontrar a Palmeira das Canárias, a Araucária Colunária, o Eucalipto-Limão, Jacarandá, Maciço de Bambu, etc.
          Depois de visitarmos aquela floresta encantada, e, continuando o percurso pedonal em redor da cidade insular, é agora tempo de visitar o Coliseu Micaelense, representante centenário da monumentalidade da época em que foi erigido, contém também um pólo museológico, possibilitando assim o acesso ao seu acervo histórico que data de 1912. Actualmente acolhe peças teatrais e concertos musicais, sendo a maior sala de espetáculos do arquipélago açoriano. Segue-se o périplo em direcção ao Teatro Micaelense, espaço destacado da vida social e cultural da urbe insular, com a apresentação pública em 1951, obtendo um projecto de requalificação no ano de 2004. Outro lugar de interesse histórico, desta feita de cariz religioso, é a sinagoga "Sahar Hassamain”, recentemente aberta ao público, após tantos anos encerrada. Trata-se da mais antiga sinagoga portuguesa, situada na rua do Brum, nº16, a sua recuperação tem sido feita de forma gradual e consistente, no sentido de manter no seu interior os traços, os sinais e as memórias da passagem da cultura hebraica pelas ilhas. De seguida, ainda antes que a noite caia, é necessário frequentar a Galeria Fonseca e Macedo, criada no ano de 2000 e com o propósito de servir a arte contemporânea. Neste momento, a galeria pede-nos para convocar o olhar no caleidoscópio de imagens/pinturas de Miguel Branco, um autor fascinado com a paisagem e fauna das ilhas, evidenciando a sua atenção e sensibilidade para uma síntese de pequenos quadros intitulados de “Ínsula”.
          Por último, para terminar este calcorrear escorreito pelas artérias da cidade, conviria visitar a rua de Pedro Homem e a galeria…Miolo. É um novo ponto de paragem e observação na rua de Pedro Homem, no centro histórico de Ponta Delgada. Segundo reza a história, Pedro Homem foi escrivão do Ouvidor do rei D. João III, viveu e morreu por ali, caracterizando-se por possuir capacete ou adaga e terá sido o introdutor de várias aves - falcões, cisnes e milhafres - na Ilha de São Miguel. A nova galeria que passa agora a existir no número 45 desta rua pretende ser, cinco séculos depois, mais um ex-libris de forte atracção e interesse, não só histórico, mas também cultural e turístico. E porquê? É que nesta rua já existe o restaurante vegetariano “Rotas”, o "Hostel The Nook", o Bed and Breakfast “By Lapsa” e, para além de tudo isto, há também um cabeleireiro, um dentista e uma farmácia na esquina.

Um pelo Menos

"Acredito no que faço, e que nos cabe honrar o que fazemos. É uma luta diária, antes de mais contra a facilidade, e se cada um não acreditar não sei por que os outros hão de acreditar. No caso das crónicas, será também, muitas vezes, uma forma de intervenção no colectivo. Não escrevemos para ter muitos leitores, mas acredito  em escrever para (e talvez por) um, pelo menos."

Alexandra Lucas Coelho, in Público, 24 de Janeiro de 2015.

sábado, 23 de janeiro de 2016

66-12-ZZ

Como um velho comerciante de carros falido
parecias saído de um filme de Tarantino.
Com as minhas plumas em forma de asas
e a maquilhagem de anjo doente
parecia saída de um filme de Wenders caído.
Relativamente às plumas, em forma de asas,
trazia os cálculos anotados
da distância a manter do Sol
e a imagem de Ícaro em chamas.
Mas naquele dia tudo correu mal.
O que poderíamos fazer de diferentes filmes saídos?
E choveu.
E o nevoeiro nem um cometa deixou ver.
A minha maquilhagem desfez-se,
confundiu-se com os veios das plumas
que se colaram à minha coluna vertebral
como um colete de forças.
E tu velho comerciante
já não me pudeste enganar
e vender um artefacto voador
por um coração ferido.

Ana Paula Inácio

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Missiva a Janeiro Alves antes do Findar do Mês

 Amigo Janeiro Alves,

    Estranhamente hoje acordei com o refrão de “Voyage, Voyage”, dos Desireless, e dei por mim com chuveiro junto da boca a cantar: “Plus loin que la nuit et le jour,/(voyage voyage)Voyage (voyage)/ Dans l'espace inouï de l'amour./ Voyage, voyage/ Sur l'eau sacrée d'un fleuve indien,/ (voyage voyage)Voyage (voyage)/Et jamais ne revient”, um tema pertencente à dupla Rivat e Dubois. E, é verdade, lembrei-me de si, o meu magnífico viajante Janeiro Alves, amante do norte, ainda que sempre envolvido em grandes mariscadas, já para não dizer “suomices”. 
         Aceitei, portanto, de bom grado a embalagem de filetes de peixe que me enviou do norte europeu. Adorei, adorei, adorei. Sinceramente não me custou interceder perante o embaixador dada as circunstâncias em que o meu amigo se encontrava e a sua necessidade urgente de anonimato bem como essa sua inusitada vontade de emanar divagações de bolso. No entanto, deixe que lhe diga que o amigo Janeiro deveria fazer um retiro por aqui, mais concretamente no conhecido “Cu de Judas”, longe de qualquer avistamento ou proximidade humana. O que me diz sobre isso?
                Escrevo-lhe também para dizer que atravesso um momento crucial da minha existência pois decidi fazer um périplo por diversas universidades e centros do conhecimento com o intuito de proferir a seguinte conferência: “O Fim do Trabalho: Um Futuro de Ouro?” e em que pretendo elucidar a sociedade em geral sobre o que irá surgir depois do trabalho, tal e qual o conhecemos. O meu amigo bem sabe que as máquinas produzem muito mais e em pouco tempo, não parando de produzir desempregados. É urgente, à laia do que escreveu o Paul Lafargue, em “Le Droit de La Paresse” (O Direito à Preguiça), corria o ano de 1883, reclamar de baixo para cima: “E os filantropos da indústria continuam a aproveitar as crises de desemprego para fabricar mais barato.” É tempo de abandonarmos o trabalho como obrigação/dever e voltarmos a defender o trabalho enquanto livre escolha de fazermos o que gostamos e queremos. Não concorda, meu caro amigo?
            Aproveito também, agora que sei que voltou ao seu tugúrio no Estoril, para lhe augurar um “Soft Power Relaxante”, enquanto bebo por aqui o poderoso néctar das montanhas de Kowatunturi que o meu amigo colocou no pacote. E agora vou ao correio pagar a sua encomenda, a amizade longínqua com o meu amigo Janeiro fica sempre mais cara que as demais.

Ampexo com estima,
Doutor Mara

Ontem, escrito numa parede da cidade

Antes "Woody Allen" que "Amália".

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Ettore Scolla

      O cinema mais belo do mundo perdeu mais um dos seus grandes:Ettore Scolla. Recordarei sempre o inacreditável e audível riso provocado pelo seu “Feios, Porcos e Maus”, tal como a alegria de saber que o cinema pode falar da vida e das pessoas que vivem ao nosso lado, as pessoas que vivem connosco.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Janeiro Alves apanha um avião para o quotidiano...

Caro Dr. Mara,
          
       Devo-lhe, antes de mais, o facto de ter exercido a sua influência perante o embaixador, permitindo assim a minha libertação de tão intrincada circunstância. Nos meus últimos dias de Lapónia, houve ainda tempo para a cerimónia da minha canonização, com a inauguração da minha imagem em bronze por parte do bispo local, e o descerramento da placa que renomeou a Igreja luterana local com o meu nome – Holy Tammikuu (São Janeiro). O meu sósia tem sido capa de todas as revistas da especialidade, como um bucólico camponês que foi pulverizado pela graça divina. Acontecimentos bizarros estes Dr. Mara, que contados, ninguém acredita.
Felizmente fui resgatado com sucesso deste insólito. Após combinação estratégica, o corpo diplomático apanhou-me às 5 da manhã junto às bombas de gasolina locais, e ninguém me viu sair. Actualmente já deram pela minha falta e segundo me constou, fala-se por lá do milagre da minha ascensão. Subi aos céus Dr. Mara! Por esta é que eu não esperava, eu que sou uma geométrica besta mundana.
Já refeito deste episódio, regressei à vida quotidiana, apreciando o esplendor de todos os seus rituais. Voltei ao meu sossego, e ao anonimato. O anonimato faz-nos voyeurs do mundo, permite-nos ter a liberdade de nos mantermos presos ao fascínio dos acontecimentos, e transformá-los em matéria da nossa inspiração. Os mundos que habitam na nossa mente... O corpo divaga pelo vaivém das coisas, no crepúsculo da cidade, e cá dentro carregamos um mundo ainda maior, que às vezes transborda em esplendorosas manifestações. São as diferenças entre todos nós, Caro Dr. Mara, que abrem as portas do deleite, que são criadoras e construtivas. São essas diferenças, às vezes minúsculas, de pormenor, outras arrebatadoramente grandes, que a sociedade inconscientemente tenta suprimir, ao massificar os objectos, os sonhos e os comportamentos. A sociedade criou uma auto-estrada, confortável e espaçosa, com protecções metálicas dos lados, para todos caminharmos em segurança no mesmo sentido. E como é difícil sair da auto-estrada. Alguns, em desespero, até circulam em contramão, mas são rapidamente apanhados. Mas há outros caminhos, muitos caminhos, ramificações, atalhos e miradouros, para que cada um siga aquele que lhe for mais conveniente e agradável. Pela auto-estrada chegamos mais depressa, mas onde? E quando chegarmos pode ser o caos. Será que haverá estacionamento para toda a gente? Será que não haverá selvagens com fome a lutar por um pedaço de pão? Talvez a auto-estrada dê a volta ao mundo em círculo e nunca pare. E nela ficaremos quando acabar o combustível, até nos tornarmos pó.
Aqui pela metrópole, todos os mecanismos desta grande engrenagem estão bem oleados, com combustões de rara beleza visual e explosões de cor e alegria, apesar do dia, cinzento, e do vento, esta ventania, que ora nos traz, ora nos leva a agonia. Isto digo eu, que não sou de cá.
Perdoe-me estas divagações de bolso, Dr. Mara, mas como sabe, é a única pessoa que me ouve (com olhos de ler). E como já se faz tarde, tenho de ir dar milho aos pombos, no sentido figurado, claro. Aguardo notícias Marianas, e garanto-lhe que após alguns acontecimentos que efectivamente denegriram a sua imagem pública, é bem hora de sair do cativeiro e dar um ar da sua graça, pois o povo tem memória curta, e para além disso todos têm direito a uma segunda oportunidade.

Com admiração e reverência,
Janeiro Alves

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Da força

"As pessoas fortes são pessoas que raramente falam, que ouvem. Essa disponibilidade para receber é uma força."

 Gonçalo M.Tavares in Revista Ler.

sábado, 9 de janeiro de 2016

As Charlas na Galeria Arco 8

       "O texto incide essencialmente sobre uma entrevistadora, por sinal, bastante curiosa, que numa pose bastante reverente, pomposa e, até enfatuada, quer saber tudo a propósito deste cientista social que dá pelo nome de Doutor Mara. Um personagem meia louca e lunática que adora viver em cidades marítimas e campestres, dividindo assim a sua vida entre o isolamento –  hábitos de anacoreta e o seu gabinete citadino onde se dedica a estudos antropológicos de longo alcance. Este texto que se quer, tanto dramático como cómico, tem como ideia base contrariar aquela ideia muito presente de que os seres humanos têm sempre muitas ideias e factos significativos  para dizer ou contar, reforçados e ampliados pelos meios de comunicação social e redes sociais, isto é, o “hipermediatismo” dominante. Servimo-nos por isso deste Doutor Mara, habitual frequentador de tugúrios inimagináveis, que vão desde os jardins públicos, discotecas, tascas e afins, e que, aproveitando-se do seu estatuto de figura pública sem mácula, para dialogar e dissertar com o público sobre este mundo em que vivemos, não muitas vezes muito mal frequentado. Os actores Tiago Vouga e a Aurora Ribeiro estrear-se-ão em Ponta Delgada com os capítulos Ginecomagia, Tarantoterapia e Enomátria que terão palco na Galeria Arco 8, no dia 15 de Janeiro, sexta-feira, pelas 23 horas." 

(o autor do texto As Charlas Quotidianas do Doutor Mara)

Seis Poemas na Ilha de São Miguel

1- Clínica da Alma
a Alberto Manguel
Os egípcios avivaram com cuidado,
no mistério revelado, agradecidos,
antes de qualquer roubo ou guerra
sem ruína de outra sobrevivência
dicionários, livros e compêndios
perenes depositantes de memórias
Desse lugar infinito agora observamos
o secreto abecedário das estantes
em geografia de línguas alcandoradas
e nas remediadas doenças do presente
as perguntas inquietas por fazer

2-Da Caloura, as pedras

Trazem com elas o tom e o silêncio
delicadas brechas, destroços vários,
líquidas vozes desavindas
aspiramos ondas e demais histórias
Modelamos nuvens, entoamos metáforas
a fúngica bruma patenteada
nos lábios e nos dentes
e na tardinha tudo abafamos
com o marítimo som das evidências.

3- Queijadas de Papoila e Chá Verde

Houve vagas silenciosas em crescendo
e momentâneos enganos
Talvez possamos inventar um paradoxo
folhas frescas em verdes águas
No céu o paladar bem destilado
e o boca a boca reencontrado
caem grainhas da incerteza
à lenta paz dos órgãos
a virtude dos passos dados.

4-Momentâneos Empenhos

Professar ao vento a inspiração
declarar instantâneos empenhos
essa súbita vontade fulgurante
a impressão do tempo que passa
nas linhas ditadas e coser
os múltiplos desafios do devir
decididos incitamos a potência
num traçado augúrio preferido.

5-Tácita Recusa

Uma tácita recusa dos dias frios
como horas no tempo crepitam
dão o corte e o contraste
à erosão dos desvios consumados
rumor implícito nos gestos
uma vaga cobertura de promessas
na união sobejamente anunciada.

6-Vadia Epopeia

Consumamos um velho vício
mortiço fado espelhado na madeira
A luz nocturna sobre a mesa, 
condição, desolação, desarrumado
como uma seda fina a laborar
enfrentar essa suprema ilusão
confiança de ouro na tomada e
no brilho
exaltação dos ombros na partida. 

Ontem, escrito numa parede da cidade

"Não há festa nem festança que não entre Maria na dança."

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Uma Carta de Janeiro Alves em Janeiro de 2016

Caro Doutor Mara,
       
       
     Neste Natal, ao contrário dos restantes, resolvi enviar-lhe os votos de boas festividades desta terra longínqua onde me encontro, e um pedido de ajuda. Não imagina ainda o Doutor Mara o interesse circunstancial desta carta, verdadeiro manifesto da experiência que aqui tenho vivido. Se esta carta manifestasse algum interesse para o progresso da humanidade, o seu conteúdo seria comparado à ida do homem à lua, imaginário inverosímil mas agitador das mais assolapadas paixões. 
        Como sabe, nunca fui dado a Natais. Nunca me invadiu o espírito do bacalhau, e sinto um nervoso crepitante na espinha sempre que oiço “ho-ho-ho”. Como o Doutor Mara deve imaginar, não é que eu tenha nada contra o natal, é que nada tenho a favor.
       Este ano no entanto, encontrei um paradoxo nesta forma de estar. Sendo eu um experimentalista, não podia deixar de viver uma vez que fosse a experiência do natal, de forma a estudar a sua repercussão emotiva no indivíduo. Assim rumei à Lapónia, onde me encontro neste momento. Aluguei um pequeno casebre no meio da Floresta de Rovaniemi e levei comigo mantimentos para alguns dias. Fiquei numa pequena e confortável casa nórdica de madeira, com lareira e sauna exterior. Nos primeiros dias não saí, pois nevava muito. Passei-os a ouvir os Christmas Crooners, a ler alguns livros de natal, e a embrulhar alguns presentes para oferecer a mim próprio. Passados três dias decidi sair. Parara de nevar e aventurei-me pela floresta. Saí de casa às onze da manhã, altura em que nasce o sol, para aproveitar as duas horas de luz até ao por do sol da uma da tarde. No meio da floresta de gelo e luz ténue sem pontos de referência, engendrei uma forma de não me perder, desenrolando desde casa um grande novelo de lã que tinha levado para o efeito. 
       Depois de meia hora de caminho surgiu repentinamente uma matilha de glutões, e comecei a correr para me afastar deles. Não são perigosos para o homem, mas em matilha não arrisquei. Fugi desesperadamente, perdi o novelo e muita neve começou a cair. Depois de muito me afastar, os glutões acabaram por desaparecer no horizonte, e ali me vi, perdido e sem qualquer orientação. Começou então a escurecer e a densificar-se o meu receio de ali acabar os meus dias. Caminhei perdido à procura da casa, e o cenário parecia-me cada vez mais inóspito. Tinha poucas horas de vida. Acabei por cair de cansaço. 
      Acordei numa casa desconhecida. Embrulhado em cobertores, abri os olhos e uma rapariga fixava-me estupefacta. Começou a falar comigo em Finlandês, em tom aflito. Eu disse “I don’t understand Suomi! Do you speak English?”. Ela não falava Inglês, e falava comigo com lágrimas nos olhos. De repente, foi buscar uma fotografia para me mostrar. Era eu, vestido com roupas estranhas. Mas o que fazia a minha fotografia na sua casa? Perante o meu espanto, foi buscar mais algumas, ainda mais estranhas. Eram fotografias onde estávamos os dois, eu e ela, em várias situações do quotidiano.Enquanto eu olhava incrédulo para as fotos, ela abanava-me, chorava, e falava em finlandês num tom desesperado. O auge do irrealismo foi quando observei que numa das fotografias nos beijávamos, eu e aquela heidi das montanhas. Imaginei que deveria estar com sérias lesões cerebrais, ou com delírios febris. 
       Toda esta história culmina com a explicação para o sucedido, não menos insólita. Ouve-se a chave a rodar na porta de madeira velha, e uma voz grossa em finlandês. A rapariga, ainda com lágrimas nos olhos sobressalta-se. Seria obviamente o marido que chegava a casa. Eis que entra um homem igual a mim, fotocópia, cara chapada, sem tirar nem pôr. A rapariga observa-o, volta-se para mim, e para ele, e para mim, e desmaia. Encontrei um sósia de Janeiro Alves, Dr. Mara. E veja só onde o fui encontrar. 
        Acabaram por me salvar a vida, pois a rapariga tinha-me encontrado quase a desfalecer na neve, e trazido para casa pensando ser o seu marido, e que o mesmo estaria com amnésia. Acabámos os três a jantar bifes de rena com vinho quente, a comunicar por gestos e a rir de toda esta situação. Deram-me guarida nessa noite, e no dia seguinte, quando me preparava para zarpar, toda a aldeia me veio ver. Transformei-me na atracção de natal da aldeia, Dr. Mara, numa espécie de freak show escandinavo. Saí em todos os jornais da região, e muitos turistas começaram a aparecer passados alguns dias, engodados pelo fenómeno. Segundo os jornalistas, que falavam inglês, os locais viam a minha aparição como algo sobrenatural, e era intenção do chefe da aldeia erguer uma estátua com duas figuras em bronze: a do sósia Lapão, e a minha ao lado com umas asas de anjo.
Neste momento ainda não consegui sair daqui. Peço-lhe ajuda para que interceda pela minha deportação para Portugal, pois tenho receio que me utilizem para experiências científicas. Imagine a ironia Dr. Mara, um experimentalista alvo de experiências científicas. Peço-lhe que fale para a embaixada de Portugal em Helsínquia com a maior brevidade possível. Se tudo correr bem, será compensado com os melhores filetes de peixe que eu próprio transportarei das águas frias para o seu paladar. 
      Na esperança que esta carta lhe chegue às mãos, desejo-lhe os mais sinceros votos de vigor físico e intelectual para enfrentar de cara erguida os desafios que se levantam imponentes e categóricos neste ano de 2016.

Janeiro Alves, em Rovaniemi - Lapónia