domingo, 20 de janeiro de 2013

Memóriacracia


DM: Foi numa manhã solarenga e de céu cor azul anilina que, ao contrário do passeio prometido de sábado, decidimos rumar à biblioteca pública. Foi lá, no entanto, que encontramos o Doutor Mara, sentado numa cadeira oitocentista e debruçado sobre uma mesa de madeira, de árvore criptoméria, por sinal, com folhas brancas espalhadas por tudo o que era sítio. Espantoso, Doutor Mara, é, sem qualquer dúvida, a primeira vez que o vimos por cá, não é assim?
Doutor Mara: Bom, vocês sabem que eu sou um frequentador diário de bibliotecas públicas. Não consigo perceber essa admiração, sinceramente. No entanto, é verdade, meus caros amigos, concedo-vos algum crédito nessa informação. Nos últimos cinco anos, devo ter permanecido nesta sala uma mão cheia de vezes. O gabinete que ostento e o volume de trabalho que possuo não me permitem ficar por aqui mais do que os habituais cinco minutos diários. Porque hoje é sábado, posso dar-me a este luxo contemporâneo, evidentemente.

DM: É uma pena, Doutor Mara, não podermos contar com a sua presença muitas mais vezes…
Doutor Mara: É um facto, com muita tristeza e pena minha. Durante os últimos anos requisitei e devolvi centenas, para não dizer milhares de livros. E assim saudava parcimoniosamente as senhoras bibliotecárias, tropeçava no degrau da entrada e punha-me na alheta. Às vezes, é certo, lá ia dando uma escapadela para ler o jornal da minha terra, uma piscadela aos diários desportivos ou então fui espreitando as capas das revistas cor-de-rosa. Por vezes, fiz também uma pequena pausa para ler o meu horóscopo. Quem sabe um dia destes ainda acertam!?!

DM: Desconfia-se que deve ter muitas histórias da sua juventude em bibliotecas. Umas mais divertidas que outras, certamente, não é verdade?
Doutor Mara: Sem dúvida, meus caros. Comecei por vir para este depósito de narrativas muito antes das novas tecnologias terem invadido estes espaços de leitura funda. Lembro-me de um período da vida – muito jovem, claro! - em que tinha ouvido falar nos textos visionários e fecundantes de Plutarco. E, estava, por isso, inquieto por lê-lo. Foi quando decidi entrar na biblioteca nacional e pedi para consultar este literato romano do período clássico. Levaram-me para uma sala repleta de algum livros cheios de pó e de caruncho. Foi o tempo suficiente para que duas pessoas me trouxessem um livro escrito em latim, tal era o peso e o tamanho do livro. Recordo-me que ali fiquei a olhar para o livro umas boas duas horas sem saber o que fazer. Como não percebia nada do que lá estava escrito, agradeci a experiência de carácter místico-espiritual e vim-me embora. Outra vez, no interior do país, em que uma biblioteca local abria aos sábados de tarde, fui surpreendido com um estalo de uma criança de oito anos. Esta disse-me, estarrecida, que eu não podia ler o livro que ela tinha lido na semana anterior. Um absurdo, evidentemente. Chamei o funcionário e pedi o livro de reclamações. Recentemente, há cerca de menos de duas horas atrás, fomos surpreendidos com o grito de um bibliotecário que obrigou o leitor do livro "Peito Grande, Ancas Largas", de Mo Yan (o mais recente Nobel da Literatura) a interromper a sua leitura para este retirar a bicicleta que estava encostada à parede do edifício de utilidade pública.

DM: Soubemos que obteve um convite dos “amigos do livro e da biblioteca” para lançar um livro de memórias. Não sabíamos é que irá fazê-lo muito em breve. Confirma-se assim a brevidade e urgência deste seu acto?
Doutor Mara: Tenho um enorme e imaculado respeito por estes lugares de silêncio e respeito pelos livros, como poderão imaginar. Na realidade, não pude recusar a gentileza do convite efectuado bem como meu passado civil ligado à bibliofilia. Por outro lado, tenho uma dívida enorme para com as bibliotecas que nem o dinheiro do FMI conseguiria pagar. No entanto, quero-vos dizer que não será bem um livro de memórias mas sim um acto provocatório com que brindarei os amigos do livro e da biblioteca. Esta ideia surgiu-me há dias em conversa com um amigo músico, excelente músico, aliás, que nos abandonou para ir viver para o Lago di Como, em Itália. Se quiserem, conto-vos de memória essa rica história, caso queiram ouvir.

DM: Conte-nos, Doutor Mara, estamos ansiosos por saber tudo sobre este livro seu novo livro…
Doutor Mara: Então foi assim… há dois anos um grupo de estudantes questionou esse meu amigo músico como tinha sido a sua adolescência musical, ao que este respondeu que tinha sido um pouco alternativa pois ouvia muita música clássica e, que, então, tinha perdido o comboio do pop, do rock e do punk que se ouvia na altura, apanhando os restos do chão, alguns anos mais tarde. A mim sucedeu-me exactamente o contrário, pois só agora redescubro o prazer e a intensidade da música clássica, relegando para segundo plano o pop, o rock e até mesmo o punk. No entanto, há alguns dias atrás, num barracão de madeira, descobri através de um grupo punk uma enorme empatia não só pela música que estes tocavam, como adquiri uma sensibilidade especial com a espécie animal, neste caso os toiros, numa das suas canções. A partir daquele momento, nunca mais consegui assistir a touradas ou às célebres marradas que se podem comprar ou  assistir em profusão pelos diferentes estabelecimentos comerciais. Quando vejo a dor e a aflição de quem apanha com uma marrada de um toiro bravo à solta, faço o exercício de chamar à memória a história da “Branca de Neve e os sete Anões”. É uma forma de eu me reconciliar com o presente e travar o meu passado activista de político e militante. Foi assim que cheguei ao livro que pretendo apresentar...

DM: Daí alguém ter dito à “boca pequena” que este seu livro se intitularia “Branca de Neve”, o que seria um plágio do título do livro de Robert Walser? 
Doutor Mara: Pois, deve ter sido o rumor que correu pelos estaminés etílicos da cidade. No entanto, para vossa informação, já existia também o filme português do João César Monteiro com esse nome. Um filme lunar, diga-se. Ouvi, enquanto bom ouvinte, umas dez vezes esse maravilhoso filme radiofónico. Por outro lado, a editora corria o risco dos adultos comprarem o livro para oferecer às crianças no próximo Natal, o que não seria mau de todo. Para a editora, claro.

DM: Sendo assim, será que agora já nos pode revelar o título, ou ainda está no segredo dos deuses? 
Doutor Mara: Eu preferia, sinceramente, que tivessem sido as deusas a guardar segredo, dada a pureza deste meu acto. É um título correspondente ao formato e páginas a apresentar: “Branco e Tão Leve”. É um livro sob o signo do branco, com o título gravado em iões de prata para que tenha algum valor comercial adquiri-lo.

DM: Há quem fale de trezentas páginas de absoluta leitura voraz, sôfrega e entrega intensa ao acto primordial de ler. Há também quem diga que é um simples livro de intriga e maledicência e há outros ainda que dizem tratar-se mesmo de uma jogada de marketing moderno. De uma vez por todas, Doutor Mara, só a verdade importa nos tempos que correm...de que trata verdadeiramente o seu opúsculo?
Doutor Mara: Posso garantir-vos que este livro é uma súmula de páginas de memórias que ainda não existem, por assim dizer. Um livro de memórias falhado, evidentemente, pois ainda não tenho experiência (s) de vida nem resenha biográfica digna desse nome. E que, por isso, não tenho lá nada escrito. Páginas em branco sem uma única palavra. Uma homenagem rápida e eficaz às minhas memórias presentes e futuras que estão por escrever. Quero-vos dizer, entretanto, que era o que mais faltava, agora ao fim de meio século de existência, desatar a escrever livralhada memorial. Creio que não tardaria a que me passassem a tratar por “Senhor Doutor Mara” ou então a fazer a pergunta de ocasião nos programas vespertinos de televisão: “Por favor, reverendíssimo Doutor Mara, para quando o segundo tomo das suas memórias?”. Acreditem, neste momento, era o pior que me podia acontecer, dedicar-me a destilar palavras por metro quadrado e a encher as livrarias com a minha verborreia narcísica e sentimental dos tempos antigos e dos dias passados. Poupem-me, por favor.

DM: Isso é inédito, Doutor Mara, com esta ninguém contava, é um facto. Ninguém conseguirá prever a reacção do mundo editorial português bem como os comentários da sua crítica aquando da publicação deste seu novo livro.
Doutor Mara: Por favor, não exagerem! Será uma pequena coisa para amigos, sem grande alarido. Eu sei que aproveitarão para tornar esta obra numa “besta célere” mas todas estas coisas me escapam, estão fora do meu controle, como sabem. A partir de uma certa idade e de um certo reconhecimento público, é necessário alguma paciência e alguma tolerância face aos gorgulhos do espectáculo de toda esta sociedade.

DM: E para quando é que está previsto o dia do seu lançamento?
Doutor Mara: Não há data marcada, nem consigo saber exactamente quando é que este livro estará pronto, depende da disponibilidade tipográfica. De qualquer modo, desconfio que vocês serão avisados com o respectivo convite. Um convite branco e em branco, como não podia deixar de ser.

DM: Muito obrigado, doutor Mara, pela sua memorável atenção para connosco.