sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Carta de Janeiro Alves nos confins de 2021

Sintra, 31 de Dezembro

Benemérito Doutor Mara,

Antes de mais, agradeço o facto de me ter comunicado que estamos no fim de mais um ano. Como sabe sou propenso a distracções. Já tenho duas garrafas de Raposeira no frigorífico e o meu paletó hondurenho está neste momento a ser escovado a quatro mãos. Adivinha-se uma noite de arromba, Doutor.

Apesar de ter ficado com uma clara ideia de que o meu amigo se encontra no domínio total das suas capacidades físicas ao ponto de ostentar diariamente essa carcaça velha no pesqueiro de Ponta Delgada, fico por outro lado apreensivo com os dilemas que enfrenta relativamente à maquia que está prestes a receber. Neste momento tenho disponibilidade para o ajudar, e até já desmarquei coisas que tinha combinado para lhe oferecer todo o auxílio necessário. Os amigos são para estas coisas. Envio-lhe em folha anexa o meu nib para que possa transferir essa pequena fortuna que irá receber, livrando-se assim de transtornos relacionados com assuntos financeiros que não são do seu domínio. Doutor Mara, vá descansado para a casa do Burgau, e sente-se comodamente a beber o seu vinho enquanto eu lhe multiplico a fortuna! Verá que estará em boas mãos. Peço-lhe apenas que ainda este fim de semana me faça um adiantamento de alguns milhares de euros, para que eu possa já começar a montar um escritório de investimento, que será composto por uma secretária, uma cadeira, um computador, um candeeiro de pé desprovido de ornamentos, um poster da Sabrina em fato de banho molhado, e um mini-bar. Os dias estão frios aqui por Sintra, mas tratarei de levar o meu termo ventilador de casa para evitar mais gastos desnecessários nesta fase. Aguardarei impacientemente a transferência enquanto esfrego as mãos até a pele se gastar.

Resta-me agradecer-lhe toda a confiança depositada em mim neste assunto financeiro, e desejar-lhe uma passagem de ano condigna com a classe colossal da sua pessoa. Doutor Mara, você é um génio, e o melhor amigo que se pode ter. Não se engasgue com as passas que amanhã tem de ir ao banco. Um abraço acompanhado de uma lágrima de comoção. Se nos encontrarmos em Fevereiro, ver-nos-emos concerteza.

     p.s. Envio-lhe, à parte, os habituais filetes de peixe para a ceia de ano novo, agradecendo-lhe que posteriormente me devolva o respectivo recipiente já lavado.

 Do seu novo estratega financeiro e amigo em estado de permanência,

Janeiro Alves

Missiva para Janeiro Alves já com a Taça de Espumante na Mão

 Caro janeiro Alves,

 Escrevo para comunicar-lhe que estamos no fim de mais um ano. E que ano!  É mais um ano que passa e daqui a pouco lá contaremos as passas, não as do Algarve, mas aquelas que abrilhantarão o nosso futuro próximo. 2022 será um ano deveras glorioso, pleno de feitos esplendorosos e repleto de brilhantina para a nossa humanidade. Acabo de receber a novidade de que teremos a melhor safra de vinho das últimas décadas.

Não posso terminar o ano de 2021 sem deixar de lhe transmitir que recebi uma fortuna incalculável de dinheiro proveniente de uma parente que não vejo há anos, mas que se lembrava de termos ido várias vezes à Galiza, seis pessoas num FIAT127, comprar caramelos e bacalhau seco, durante a minha meninice. Descobri, assim, que esta familiar mantém-se viva e alegre, muito embora a sua longeva idade. Disse-me também que actualmente se encontra autossuficiente e que não tem a quem ofertar a herança acumulada de anos. Imagine, amigo Janeiro, que não se trata apenas dum verdadeiro saco de notas em dinheiro vivo dado que também me falou em conceder a chave da sua casa de férias em Burgau, no barlavento algarvio, onde diz ter passado os últimos invernos. Conta-me, assim, que já não possui paciência para descer até à praia e que pretende conservar-se pela sua Idanha-a-Velha querida, muito embora o frio acachapante das Beiras nesta estação. 

Deste modo, foram dias intensos nesta quadra passados ao telefone a relembrar memórias de tempos pueris não obstante permaneça demasiado reticente em aceitar tanto dinheiro, ainda por cima vindo de alguém que aparenta ter pouco juízo. Esta fez questão de assegurar que receberei o dinheiro nos próximos dias e que, caso decida não o aceitar, poderei doá-lo ou oferecê-lo a uma instituição ou até mesmo dá-lo de mão beijada a um amigo ou conhecido. A ausência de herdeiros a isso justifica e permite.

Por isso, pretendo que me diga onde posso realizar os melhores investimentos, as melhoras apostas nos anos vindouros que se seguirão ou até mesmo perguntar-lhe se o meu caro amigo continua com dívidas de grande estrondo ou necessita de comprar um novo esquentador.

Despeço-me e aguardo a sua resposta ainda no decorrer do ano em curso. Acredito que o mês de Janeiro se repita e que o meu amigo não reforce no mês homónimo os trabalhos do carteiro.

                     Aperto de falanges bem robusta

 Doutor Mara

"O Mesmo Número" de Paulo Ramalho

1. 
Antes do naufrágio eu vivia numa ilha
escondida entre os dedos do tempo
-oráculo de pedra ou chão recortado a sal
sem amarras no passado ou âncora de xisto 
mistério de lava com dias ímpares 
para escutar o rumor do sangue
e dias pares para ouvir melhor o clamor do mar
casa em forma de vela
onde o vento era uma janela aberta
com ondas a dançar ao longe 


2.
Depois o barco adornou
como uma profecia demasiado rápida
e eu agarrei-me ao possível: um casco 
com um vinho de trinta e cinco anos.

in Manual de Sobrevivência para Náufragos, Douda Correria,2020. 

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Dos debates

            As pessoas que debatem insistentemente sobre temas que lhes interessam...só pode dar bom resultado. 
                                                                                                                Rui Horta, RTP3.

Ontem, escrito numa parede da cidade

 Amanhã, encontrar-te-ei no Miradouro Raul Brandão

Um Verso de Lura

Nhamor bem dam razon di vivi

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Das Palavras

     "Aquilo que separa as pessoas é o facto de umas terem palavras e outras não as terem."

José Rentes de Carvalho 

O Beijo

Um rapaz beijou-me ontem à tarde
E o seu beijo era um vinho perfumado 
Tão longamente bebi nesses lábios o vinho o amor
que ainda agora me sinto embriagado.

Anónimo, Grécia, séc.I a.c, tradução de Jorge Sousa Braga 

sábado, 25 de dezembro de 2021

"Contigo aprendi coisas tão simples como" de Ruy Belo

Contigo aprendi coisas tão simples como 
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas 
só tu me acompanhaste súbitos momentos 
quando tudo ruía em meu redor 
e me sentia só e no cabo do mundo
contigo fui cruel no dia a dia 
mais do que mulher tu és já a minha única viúva 
Não posso dar-te mais do que te dou 
este molhado olhar do homem que morre 
e se comove ao ver-te assim  presente tão subitamente.

"Mutações" de Liv Ullmann

Daniel Lopes

    "
Eu procurava algo na Ilha. 
    As pessoas viviam perto da terra, perto do mar, perto daquilo que é natural e predeterminado para nós.
    O sinal que distinguia as pessoas que encontrei, quando os turistas partiam, no fim do Verão, era a sua simplicidade.
    Nenhum daqueles homens e mulheres, segundo percebi, poderia jamais ser humilhado. Viviam em harmonia com os seus eus, com tudo o que era bom e mau em si mesmos. Nenhum estranho poderia apontar para eles e fazerem-se sentir-se inferiores.
    Pessoas que confiaram no seu lugar na terra . Estavam longe de não ter complicações, não eram destituídos de exigências, ódios e agressões. Mas   possuíam orgulho, e uma dignidade que não permitiam a ninguém destruir. Tinham razões que ficaram plantadas no mesmo lugar da terra, durante toda a sua vida. 
    Muito velhos têm isso. Renunciaram a pretensões, deixaram de lados sonhos falsos, pararam com a louca corrida.
    Também são ilhéus na nossa sociedade.
    Como as crianças.
    Pessoas que não se preocupam em manter a máscara e a fachada em ordem. Que ousam mostrar quem são.
    Ilhéus.
    Pessoas que vivem de acordo com a sua maneira de pensar. Mesmo que esta não seja assim tão notável.
    De alguns deles emana uma sensação de segurança, uma coisa simples, que talvez seja a dignidade do coração." 
in excerto de Mutações, 1974, Editora Nova Nórdica, Lda.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Da Liberdade

          "Por exemplo, eu para me libertar tenho de me acorrentar a um projecto. E perante isso - como sou livre - digo a mim próprio: "Bom, não sei se o farei bem, porque sou estúpido. Deveria ter pesquisado mais". Liberto-me do facto de não ser um campeão. Sou o que sou, não mais do que isso. Sou simplesmente o que sou. E, quando aceitamos nos nossos próprios limites, somos livres. É esta a minha teoria sobre liberdade."

Oliviero Toscani em entrevista a João Pacheco, Revista Expresso, dia 23 de Dezembro de 2021.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

"Nas Nuvens" por João Decq

"1. Nuvens

Etéreas, voláteis, passageiras.
Carregadas de chuva. Contrastes de um céu azul.
Pretas ou cinza, brancas, lilases, rosa.
Sempre mutantes, sempre livres.
Prenúncios do que há de vir,
as nuvens são coisas de ver.
Se me oferecessem nuvens pô-las-ia no chão ou numa 
cama para poderem descansar. Dava-lhes chá ou
limonada. Abria-lhes todas as janelas e portas de casa
para que pudessem partir sempre que quisessem.
Toda a gente sabe que as nuvens adoram piqueniques." 
                  
                                         (...)

in Exposição de continuidade "Quatro por Quatro", Centro de Artes Contemporâneas, Ribeira Grande

"Três Andares" de Nanni Moretti no Teatro Micaelense

     “O ser espectador de cinema conta muito na minha vida. Quando, durante a pandemia, esperei que reabrissem as salas, não quis vender "Três Andares" à Amazon, à Disney, etc. Esperei que as salas abrissem. Fi-lo porque ainda antes de ser realizador, produtor ou exibidor, falo como espectador. Uma das coisas que mais me faltaram durante o lockdown foi ir ver os filmes em sala. Não é uma questão ideológica ou nostálgica. Faz parte estruturalmente da minha vida, dos meus dias.”
         Nanni Moretti,  Ípsilon, 5 de Novembro de 2021.

Tínhamos muitas saudades de ver filmes de Nanni Moretti no grande écran: a sua ironia, o seu desplante crítico, a sua forma prazerosa de fazer cinema e estar na vida. “Três Andares” não tem nada disso, não há ironia, nem identificação fácil com um único personagem. É um filme duro, tal como o tempo que nos encontramos a viver. Os seres humanos, ali evidenciados, colocam-nos questões, as vidas dos condóminos não são a preto e branco e, talvez por isso, saímos dali sem nenhuma certezas sobre o bem e o mal. Baseado num romance do israelita Eshkol Nevo, o filme “Três Andares” é um outro Moretti que emerge, muito mais próximo de Thanatos do que de Eros, ainda que haja redenção no fim de tudo isso. 

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

O Fim de Dezembro...


 

"It's four in the morning, the end of December

I'm writing you now just to see if you're better

New York is cold, but I like where I'm living

There's music on Clinton Street all through the evening"



Leonard Cohen in Famous Blue Raincoat. 

domingo, 19 de dezembro de 2021

Um Verso de Grafeno

 Se eu fosse de fora também queria cá morar

"Fim de Semana" de Alexandre O´Neill

Estirado na areia, a olhar o azul,

Ainda me treme o parvalhão do corpo,

Do que houve que fazer para ganhar o nosso,

Do que houve que esburgar para limpar o osso,

Do que houve que descer para alcançar o céu,

Já não digo esse de Vossa Reverência,

Mas este onde estou, de azul e areia,

Para onde, aos milhares, nos abalançamos,

Como quem, às pressas, o corpo semeia.

 in Ombro na Ombreira, Publicações Dom Quixote, 1969.

Faria hoje 97 anos


 









Alexandre  O´Neill nasceu a 19 de Dezembro de 1924.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

"Ser Ilhéu" de Blanca Martin Calero

Pergunto-me se nos podemos tornar ilhéus ou se devemos
nascer numa ilha para o sermos. Pergunto-me se é possível
adoptar uma terra mãe, substituir o espaço falsamente infinito
pelo limitado, em troca de um punhado de anos. Se serei sempre
um pedaço de espaço em colisão com outros pedaços, asteroide
 num mundo de água, ou, pelo contrário, poderei ensaiar
coreografias equidistantes, formando arquipélagos de números variáveis.
Aqui, ergo-me a observar a barreira do mar ao alcance da mão.
Tornar-me-ei no rapazinho de chupeta que vem à porta ver os carros que passam?
Na velhota que dia a dia sobe e desce o declive da rua principal, pernas arqueadas, camisa
de flores, sacos nas mãos? No rapaz rude que atira a beata para o espaço entre o passeio e o pé, recusando a vida no gesto?
Feita de uma terra seca e estirada, talvez nunca me transforme
em montículos, em vincos, em bruma sobre os ombros. É possível que nunca o consiga, mesmo que tenha plantado três bonitas sementes que me transformaram as veias em verde, verde
brilhante, verde húmido. A mente–ou será a alma? – voa sem
pouso. Poder-se-á dividir entre insular e continental? Poderei desenhar dois círculos e instalar-me a viver na sua intersecção, com uma perna a balançar em cada lado? Terão as palavras o dom de conciliar o irreconciliável?  
                                                                                 
                                                                             
                                                                   in Neste Mar Imóvel, Araucária Edições, 2019.

Ontem, escrito numa parede da cidade

Qual é a cor do frio? 

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Rogério Samora(1958-2021)

 











Cartaz do filme "Matar Saudades" de Fernando Lopes

(daqui: http://www.cinept.ubi.pt)

"O Fim de um Amor" de Rui Machado

É assim a nossa história. Dá a impressão de que nada

Acontece quando tudo se espera: duas cadeiras vazias

Junto a uma lareira que ninguém aquece. E por isso

Inclino-me hoje especialmente para o silêncio

Mesmo que tenham ficado pequenas lembranças

Memórias que parecem coladas a alguma coisa

Como as gravuras inscritas nas pedras.

Se servimos para algo, para quê as mãos no fogo?

E se esticarmos a luz pela tarde para quê a sombra?

As circunstâncias foram como foram, umas urgentes

Outras carregadas de malas ou adiadas para nunca

Mas sempre excecionais na sua imperfeição. Entretanto

Escuta como se aquietou em mim o teu coração

Num diálogo velozmente atravessado por distâncias.

Horta, 11.12.2021.

Verso de Caetano Veloso

Somos mulatos, híbridos e mamelucos

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Pensamento do Dia

     "Gostamos do homem que tem a franqueza de dizer, cara a cara, o que pensa...desde que estejamos de acordo com ele...-Mark Twain. (1835-1910) - pseudónimo de Samuel Langhowe Clement, escritor norte americano. 

    -Este é o tricentésimo quadragésimo nono dia do ano. Faltam 17 dias para o termo de 2021."

in Correio dos Açores, 14 de Dezembro de 2021. 

Um Poema de Fernando Moreira

do féretro que levo na vida
ao ovni da minha esperança
a ti é hélida dorida:
 Numa noite calada
     dos meus sonhos distantes
Teci teu corpo
     na miragem do meu nenúfar
Poisei tímido
      no teu gineceu errante
E vibrante ...
      derramei em êxtase
      na minha hélida dorida
      abatida e sem esperança
      ... o último espasmo do meu
                                       corpo
  Já caía o amanhecer!

 in "Mar Branco".

Praia do Guincho

 








Fotografia de Carlos Olyveira 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Mapear a Amizade

      Recebi há dias, via email, uma fotografia com a imagem de um exemplar artesanal do "Cavalas e Chicharros" junto de um livro intitulado "Mar Branco", com capa e badana "a sério", em que não consigo descortinar o nome do autor. Gostei da combinação, vi que ambos se ajustam na composição, coincidem no propósito de "falarem" de mar ou sugestão de aventuras piscatórias. É também uma fotografia enviada por dois amigos para este seu amigo, como quem quer provocar uma reacção, um gesto, uma emoção. O email era oriundo do grupo central do arquipélago açoriano, sítio de memórias e de baías partilhadas, mergulhos tardios depois das canseiras, canções à lareira de outros Outonos idos. Mapa e geografia de territórios de pertença emocional. Irei, por isso, omitir o nome dos autores da fotografia, aliás, sei que compuseram a fotografia em conjunto, dado que eles sabem do que falam quando se refere o valor da amizade, isto é, essa cumplicidade prolongada de que somos depósito e memória. 
    Por fim, esclareço que "Cavalas e Chícharos" é um conjunto de poemas policopiados e distribuídos a amigos próximos no início do último Verão, entregue em mãos como súmula poética de um determinado período ou fase. Este foi o segundo após "Os Poetas Também Dançam", com cerca de três dezenas de exemplares sujeitos à boa vontade e desenho gráfico do Diogo Aguiar. Será que há duas sem três? E...a faina continua!

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Andar a Pé...

            "No meu passeio da tarde, gosto de esquecer completamente as tarefas que realizei de manhã e as obrigações sociais. Mas acontece. às vezes, não consegui sacudir de mim a civilização com facilidade. Os pensamentos à volta de algum trabalho correm na minha cabeça e não me encontro onde o meu corpo está - perco a consciência. Gostaria de voltar a estar presente. Que faço eu nos bosques, se a minha concentração foge para algo que não é o estar ali? Recrimino-me e não consigo evitar um arrepio quando me reconheço tão abstraído, mesmo se são nobres os motivos da abstração - o que, de facto, acontece com frequência."

Henry David Thoreau in Alma dos Livros.

"Vírus" de Inês Lourenço

Há uma tristeza inerme nos feriados,

um entrega do pulso das cidades

a um vírus insidioso 

habitante das janelas onde 

nada está para chegar 

ou para partir. Lá dentro cumpre-se o decálogo

dos cansaços. Cá fora perdemo-nos 

no planetário do asfalto, na vã arritmia

dos semáforos acesos. As fachadas 

transbordam de umbrais vazios

e as frontarias bancárias da Baixa 

semelham basílicas fechadas ao culto. À beira-mar 

grupos de catalépticos auditores da Bola 

oriundos de algum centro comercial 

passeiam filhos, esposas e animais de companhia

até às esplanadas da outra margem,

para regressos na fila de escapes do crepúsculo. 

in "Um Quarto com Cidades ao Fundo", Quasi edições, 2000.

"Curta Açores" na Ribeira Grande

       Primeiro dia do Curta Açores-Festival de Cinema da Ribeira Grande com um filme belo e surpreendente oriundo da Sérvia: "Moon Drops", do realizador  Yoram Ever-Hadani. Uma narrativa cinematográfica feita de engenho e amor, evidenciando aquilo que o cinema possui de mais fantasioso e imaginativo. O Festival abriu ainda com outra curta sintonizada com o tempo actual - "Lista", da brasileira Luciana Oliveira e com argumento de Gustavo Pinheiro. Uma curta sobre a solidão do tempo presente agravada por um vírus desconhecido e em que a esperança é a última a morrer. Um texto que vive da força  e representação da actriz  veterana com origens micaelenses, Lília Cabral. 

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Foguetório

Há uma violência feroz no ar e depois há o mar
diz a antena, o écran, talvez o radar
é tempo do sacrifício, ossos contínuos
do ofício, desafios, por fios silenciamos
anda ver arder em Agosto o nosso sol
como um desgosto todo o ano
ninguém ganha uma pátria por acaso
ninguém nasce aqui por engano
ter um país é ter uma casa e não
um acaso de que só agora acordamos
Os teus dedos dão o sinal
há uma mão que o teu cabelo penteia
o país do risco ao meio no mapa
pisa o chão e calcorreia sem limite
é esse o nosso único propósito
depositar esperanças no sol e no vento
correria louca dos santos e dos mártires
desperta em nós floração
Quem viu a semente ser lançada?
pequena lembrança de um gesto
um balão rebenta em cores
cavalo rosa move-se a planar
subirá, subirá, subirá
Há um miolo de festa na boca
coro entrelaçado de gente
cai no chão aquecido embrulhado
urgente despe-se à luz de um tecido
levanta-se o véu sem escarcéu
e teme esta secular resistência
defendendo o corpo a corpo
enérgico o toque do sono
dá toque a reboque e cresce
entrada tardia em cena
riso cândido não é derrota
é o carrossel da animação
há a rapidez ao rodar da estação
entrou o Outono terminou o verão
desce à tristeza vem à melancolia
caro contentamento do adeus, enfim,
vitória ao vento, bóias ao mar,
pintar o quadro romper o círculo
Como foi possível chegarmos aqui?
Trazemos duas tábuas nos braços
chove tanto em Penafiel
laço antigo guarda-chuva caído
janela entreaberta e espreitar
vestidos e cortinados à porta
um raio contínuo de luz que entra
o capacete barroco ilude a queda, a morte,
veloz tirania do tempo presente
impaciente volúpia que rasga
gradação incerta da luta
graciosidade humana da criação
explode em brilho até o foguete cair
Nós?
Existimos.

(texto escrito a 27 de Setembro de 2012, enquanto assistia ao espectáculo "Arraial" da companhia Circolando no Mosteiro São Bento da Vitória, com o sonoro apoio dos Dead Combo)

domingo, 5 de dezembro de 2021

Um Poema de Ana Paula Inácio

 A mesa é feia e baixa, a cozinha escura e alta.

E elas? São duas, mulheres, estranhamente longilíneas.

O tampo limpo. Os copos secos. A lâmpada mal enroscada.

A roupa a bater nos vidros.

Batem à porta. Deixa entrar. É só o vento. Deixa passar.

Amanhã é domingo.

in "Vago Pressentimento Azul por Cima", Setembro, 2020 (Porto, Ilhas).

sábado, 4 de dezembro de 2021

Obrigado, Pedro Gonçalves!

Neste Mar...

 Fontes hidrotermais                               
  28 espécies de mamíferos marinhos
  6 espécies de tartarugas marinhas
  560 espécies de peixes
  10 espécies de aves marinhas nidificantes 
 » 400 espécies de algas 
 »1000 de espécies de invertebrados 
                                               in Blue Azores 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

"notas sobre um naufrágio" de David Enia

"Alguém tentou remar, usando os braços por cima da borda. Alguém saltou para a água, tentando arrastar o bote a nado.
Um homem de quarenta anos aconselhou Bemnet a não se lançar ao mar, a não remar com os os braços, a ficar quieto, a poupar todas as suas energias, a não gastar forças.
Soou quase como uma ordem.
Bemnet decidiu dar-lhe ouvidos.
Alguém tinha a garganta tão seca que tossiu sangue.
Alguém, transtornado com sede, bebeu água do mar.
Verificaram-se as primeiras agonias, seguiram-se os primeiros vómitos, dentro e fora do bote.
Surgiram os primeiros casos de alucinação e os primeiros desmaios."

Edições Dom Quixote, 2021.

Série Novos Vizinhos: 4ªTemporada

 

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Van Gogh por Van Gogh de Jorge Sousa Braga

Gostaria de ter sido um girassol. Um girassol hirto no seu caule, de
longas folhas verdes desajeitadas e uma enorme corola doirada, se
guindo cegamente o sol.
Estou só e a minha cabeça explode em milhões de girassóis.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Fim de Semana Musical no Arquipélago


     Os WE SEA apresentaram-se em palco nesta última sexta-feira, com Rui Rofino (voz), Clemente Almeida (sintetizador e baixo), Rómulo San-Bento (guitarra) e Pedro Rodrigues (bateria) perante uma blackbox do Arquipélago disponível e com a sala há muito esgotada. A audiência estava, por isso, pronta para aderir com rapidez, pois estava completamente sintonizada com o cancioneiro, notando-se que estes jogavam em casa dada a familiaridade que se sentia tal era o ambiente de festa pressentido a cada canção concluída. Com os temas dos álbuns anteriores intercalados com o a apresentação do seu novo trabalho, “Cisma” revelou-se um disco mais consistente, aprimorado e repleto de canções seguras e prontas a ser trauteadas e acessíveis a qualquer playlist de uma rádio bem perto de si. Foi, sem qualquer dúvida, um concerto muito bem conseguido, evidenciado uma etapa diferente e com um espírito de banda que se pretende que continue e solidifique. Houve tempo para alguns momentos a roçar a perfeição, com alguns novos temas ao vivo a soarem orelhudos, bem audíveis e ritmados, como são os casos de “Seja como For” ou “Cisma”. Por isso, há que dar os parabéns à banda pelos seus cinco anos de existência, esperando que a novidade se repita a cada novo disco e concerto ao vivo. 
      No domingo, ao fim da tarde, foi a vez de Luís Senra subir ao palco da blackbox para tocar e dar azo ao seu saxofone navegante, permitindo-se este a um diálogo da sua barca sonora de forma serpenteante e experimental no violino e poesia de Filipa Gomes. Desse empreendimento em palco, resultado da oficina intuitiva com o objetivo do concerto "Reflexos da Origem", há que ressaltar a graciosa construção erguida em pedras de basalto negro, sugerindo aqui uma experimentação cenográfica baseada na união dos músicos presentes. Uma prestação curta, é certo, mas sincera na expressão musical e do amor necessário a um mundo em colapso e em que cada um de nós se encarcerou e perdeu o norte mas que lentamente não tardará a voltar a abrir-se. E que, por isso, haja permanentemente música em redor.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Cinema Polaco: "Ida" de Pawel Pawlikowski

       Está disponível na RTP Play e é uma das continuadas surpresas que nos chega de um país com uma longa tradição cinematográfica: a Polónia.  Ida" (2013) pertence ao realizador polaco Pawel Pawlikowski, actualmente com 64 anos de idade, e contou com o argumento de Rebecca Lenkiewicz. Após conhecimento do nome do realizador, havia, então, o risco da desilusão depois de saber da autoria do belíssimo, para não dizer magnífico filme, “Cold War”, de 2018.
         "Ida" conta a história de uma jovem freira que é aconselhada no convento a visitar a família antes de fazer os respectivos votos. Ao descobrir que é de origem judaica, Ida (Agata Trzebuchowska) decide partir com a sua tia, Wanda Gruz (Agata Kulesza), em busca das suas raízes pessoais. A partir daqui é todo um mundo novo que se revela e desvela à sua frente. O ambiente claustrofóbico é facilmente reconhecível nos edifícios, carros, cidades e paisagens presentes no cenário desse período da Polónia do pós-guerra. Quem viajou nos anos noventa pelo Leste europeu, após a queda do muro de Berlim, já tinha visto certamente "A Insustentável Leveza do Ser"(1987), de Philip Kaufman, e, também este, um filme impregnado de fotografia a preto e branco, assente numa narrativa amorosa e de melancolia amarga desse período pesado associado ao fracasso do socialismo real. São imagens fortes marcadas pela nostalgia e pequenas libertações desses momentos repressivos, pontuados aqui e ali por momentos de esperança que viriam a resultar em "democracias" que viriam a afirmar-se promissoras neste novo contexto político  europeu. 
          Ida” é, sem dúvida, uma obra de grande intensidade, com a presença e atmosfera do jazz daquele período, por isso há aqui uma espécie improviso interior. Esta explosão da tensão só damos conta no fim do filme, dado que de tanto segura e serena é a personagem que decide implodir no seu caminhar em frente. O que morre em nós quando queremos saber a verdade do que fomos? Porque é que nos deixaram viver quando a obrigação era ter ficado sepultada naquele buraco?, perguntamos nós!
         De qualquer forma, passados estes anos todos do fim do  bloco de leste,  este cinema parece surgir fora do tempo, sem lugar, ainda que carregue dentro de si uma pulsão e nervo que impressiona pela força das suas imagens e rostos. Curiosamente o filme ganhou vários prémios: óscar para melhor filme estrangeiro em Hollywood, melhor filme para a Academia de Cinema Europeu e melhor filme para a Academia Polaca de Cinema. Merecidos, evidentemente.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

"a pão e água" de Joaquim Castro Caldas

ainda há gente boa, de cabeça deslumbrada, o coração em cima

da mesa com uma pistola descarregada, a contar a última aventu-

ra sem medo que lh´a levem, ainda gente pura que partilha

a aventura e empresta a pistola, carrega o coração às costas com

a cabeça à mostra: ainda há gente, e bem haja, com quem se

pode abrir a vida toda e a quem se deve o prazer de ser gente,

não só a bem de quem mas à maneira de ser gente pura e mais

nada. Ainda há gente rija e linda que demora mais a amar do que

é amada. um grande amor ainda espera pelo amor mais do que

uma vida inteira.

in Mágoa das Pedras, Deriva Editora, 2008.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

WE SEA: "Cisma" no Arquipélago da Ribeira Grande


Cinco anos volvidos desde a sua apresentação e com um novo álbum pronto a estrear eis que os ribeiragrandenses, WE SEA, estão de volta ao Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande.  O encontro dar-se-á no dia 26, sexta-feira, às 21h30. Com os habituais Rui Rofino (voz) e Clemente Almeida (sintetizador e baixo) estarão também em palco  Rómulo San-Bento (guitarra) e Pedro Rodrigues (bateria) na apresentação de “Cisma”, 2021, o disco que substitui “Basbaque”, editado em 2019, e que será o mote para reunião alargada da sua legião de seguidores neste seu regresso a casa!

Desta feita, aguarda-se com expectativa, para lá da estreia dos temas de "Cisma", o entoar de canções como “Ser de Ver”, “Basbaque”, “Tantos mas, mais quantos Nós?”, “Verde Seco Feito Negro” na voz distinta e arrojada de Rui Rofino! É sabido que Rui Rofino continua a escrever de forma livre, divertida e desempoeirada! Este canta com muita alma e é seu costume entregar-se em palco, destilando a verve e o charme na língua de Antero de Quental, mantendo incólume o seu sotaque açoriano. Quem o ouviu e viu pela primeira vez, há cinco anos, soou de imediato a descoberta e augúrios de encantamento. É previsível, agora, que haja uma maior maturidade e desenvoltura em palco, uma diversidade na explanação no cardápio das narrativas e versos tal  como maior plasticidade na luz e no timbre das canções. Por isso, ouvidos à escuta, dado que não já não há muito que cismar até à próxima sexta-feira!

domingo, 21 de novembro de 2021

Do Riso

           "Passamos a vida a perguntar se passámos os limites  e se há limites se há alguma coisa sagrada da qual ninguém se deve rir. Eu acho uma boa pergunta e acho que não. Não há nada que não mereça ser alvo de risada. Algumas coisas não vão ter piada, mas não é por isso que devam ser clean"

Gregório Duvivier, Revista Expresso, 20 de Novembro de 2021.

"as algas e o musgo" de Joaquim Castro Caldas

o fim do verão deixou
debaixo das pedras vento
vísceras e sol
 
não há sombras
e a meio do Outono
as gaivotas rompem a neblina
com o bico
 
os barcos brincam em dueto
ao apito com eco
 
para a claridade
há um biombo
e a silhueta de uma mulher
despe-se
 
mergulho no desenho
azul medo do mar
bebemos buio
fumamos breu
 
conservas o coração
quente para sobreviver
aos rigores do Inverno
e tudo se passa por dentro

 in Mágoa das Pedras, Deriva Editores, 2008.

Junto ao Canal

 









Foto de Tânia Neves dos Santos

sábado, 20 de novembro de 2021

"Na Ilha de Porto Santo" de Ana Hatherly

Por sobre a esmeralda líquida do mar 
o poeta espraia lentamente o olhar 
e enquanto as pequeninas ondas 
correndo para a praia se abatem 
por sobre a areia quase distraidamente
o espírito do lugar penetra-lhe os sentidos
e no seu pensamento subitamente brilha 
o perfil mágico, mítico, da ilha.  

in Itinerários, Quasi Edições, 2003. 

Um Verso de Adrianne Lenker

And I don't wanna talk about anything.

Meia de Mar










Fotografia de Tânia Neves dos Santos 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Arquipélago: Há Arte no Centro!

    O Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas - está situado na cidade da Ribeira Grande e encontra-se em funcionamento há seis anos. No passado dia 23 de Outubro inaugurou-se ali uma exposição intitulada “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, do artista açoriano João Amado - aberta ao público até ao dia 16 de Janeiro. O criativo esclarece, através das suas 36 colagens em madeira, a razão porque se tornou um “colagista” ascendente em tão curto espaço de tempo, fazendo das suas “narrativas policromáticas” os elementos pictóricos essenciais da sua composição plástica. O seu modus operandi caracteriza-se pelo seu arreigado trabalho de bisturi, cirúrgico, revelador de processos ousados de figuração misturados com signos e símbolos da natureza primordial. Um momento de felicidade partilhamos nesta sua primeira exposição. No interior do Arquipélago constam ainda diversos lugares expositivos, no espaço central está patente “Lugares de Fractura” de Maria José Cavaco e noutro dos espaços inferiores, e em forma de pequenos estúdios, encontra-se a colectiva “Quatro Quatro”. Uma clara ideia de exposição criativa que lançou para exposição 20 artistas num ciclo expositivo de 4 artistas X 5 momentos de exposição (cada 4 artistas convidavam 4 artistas para o momento seguinte). O resultado, uma diversidade e riqueza de propostas artísticas expostas num hino à camaradagem e companheirismo. Ainda no mês de Outubro foi possível assistir à apresentação de mais uma edição do “Fuso-Insular”, evento marcado pela perspetiva divulgadora e formadora da videoarte, sendo o Arquipélago o centro de apresentação e visualização de seis propostas de videoarte pelos formandos de Susana de Sousa Dias, com a acompanhamento de André Laranjinha. Durante o evento, assistimos aos filmes “Natureza Morta” (2005) e “48”, (2008), de Susana de Sousa Dias, nesse encontro duro e arriscado com a memória coletiva do passado ditatorial, assente essencialmente nas fotografias do arquivo da PIDE guardadas na Torre do Tombo e demais registos fílmicos de arquivo ou mesmo pessoais. Pena apenas por ambos os filmes terem sido mostrados na mesma altura, todavia o facto não retirasse o vigor presente nas imagens e narrativas explicitadas. As sextas-feiras tem vindo também a ser ocupadas pelos novos sons e ritmos propostos pela recém-criada editora de nome singular: Marca Pistola! Desde o concerto de “PS.Lucas” - um encontro com a guitarra deambulante e melancólica de Pedro Lucas, ou a bateria amplificada e potente de Ricardo Martins, até à apresentação do novo disco dos ribeiragrandenses WE SEA, no fim deste mês - abriu-se a contenda das novas sonoridades também neste local. Para além de tudo isso, ressalte-se ainda a marca arquitectónica deste edifício que merece uma visita pela força da sua memória, pela sua beleza e harmonia estética, pela sólida imponência das suas linhas de desenho, hoje pontuada por uma intervenção contemporânea de estrutura sóbria com os seus diferentes dispositivos codificados e bem definidos.
    Por fim e, agora que este espaço parece, finalmente, aberto à comunidade artística local e, não só, seria de bom tom receber diferentes tipos e modalidades da arte contemporânea presentes nas restantes ilhas do Arquipélago, bem como de Portugal Continental, tal como continuar esse esforço de formação e convivialidade entre os artistas locais e os que se encontram em residência. Sugere-se, por isso, a valorização da sua biblioteca cada vez mais renovada e especializada, o provimento de um serviço educativo dinâmico e inclusivo e uma programação dinâmica, diversa e abrangente.
    Estamos, pois, na presença de um espaço pluridisciplinar que tem sido capaz de se reinventar, finalmente, exercitando as suas múltiplas valências e propenso à ocorrência de diversa e prolífica atividade artística contemporânea. Certa também, é a proximidade e integração do edifício com o mar e a luz da cidade, a necessitar, por isso, de fazer parte do mapa diário de todos habitantes insulares, permanentes e nómadas.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

"Avec le Temps" de Ana Hatherly

 Com o tempo

tudo passa

do possível ao improvável

 

Com o tempo

desabitamos

as condições do corpo

a sua assinatura

 

Com o tempo

descobrimos o sentido fractal –

na face do Banquete

as coisas conhecidas

tornam-se sussurro

 

O futuro é um despiste amargo

um vértice truncado

que se esfuma

 

Divorciados do acaso

afastamo-nos calados


No deserto

surdamente gritamos

 

in “Itinerários”, Quasi Edições, Março de 2003