sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Isto não é um poema sobre o verde

Isto não é um poema sobre o verde
dos campos do meu avó por onde
correu a minha infância.
Isto não é um poema sobre o amor
da minha mãe. Um amor tão grande
que lhe deu forças para me levar
em braços para o hospital só para eu não
morrer daquela vez.
-E morremos tantas vezes nesta vida!
Isto não é um poema sobre a língua do
animal que me lambe as feridas nem sobre
as mãos do homem que me sustenta o coração.
Isto não é um poema sobre o mar grande
que rodeia a ilha nem sobre os peixes
os corais as baleias e os barcos que
habitam esse mar.
Isto não é um poema sobre danças
insanas movidas a raiva e etanol.
Isto não é um poema sobre o arrepio
das canções do Jeff nem sobre a luz
de “Laughing Heart” de Bukowski.
Isto não é um poema sobre as veredas
que atravessei ladeadas por cardos
que castigam as pernas nuas e
nos enchem a boca de palavrões.
-Às vezes é preciso dizer porra!
Isto não é um poema sobre o meu medo
o medo do lobo mau o medo de Al Berto
o medo de Rosselini e o medo de Martins Garcia
Isto não é um poema sobre o palito na boca
do Ryan Gosling nem sobre o sorriso sádico
da esteticista a arrancar bandas de cera.
Isto não é um poema sobre a alegria concreta
de um prato de chicharros fritos com
batata doce para o almoço.
Isto não é um poema sobre o sossego do gato 
que dorme em cima das minhas coxas
nem sobre as inquietações do funcionário da repartição.
Isto não é um poema sobre a vaca sagrada
da ilha nem sobre a vaca profana do Caetano.
Isto não é um poema sobre jardins marinhos
nem sobre o brilho de prata de água pura.
Isto não é um poema sobre a pomba do
Espírito Santo nem sobre a fé mal amanhada
dos homens.
Isto não é um poema com foguetes e roqueiras
e fogo de artificio no final
Isto não é um poema. Mas podia ser.

Gina Ávila Macedo, in Grotta-arquipélago de escritores, Letras Lavadas, 2015.