quinta-feira, 14 de março de 2013

Enomatria

   Algumas semanas depois da invernia ter começado, eis o Doutor Mara num tugúrio citadino mal-afamado, ainda por cima com uma bandeira nacional sobre os ombros e, acreditamos dizê-lo sem qualquer tipo de ofensa ou má criação, que o digníssimo se encontra encharcado em vinho tinto da cooperativa. Debaixo do braço do doutor Mara, o livro de Willy Helpach, “Geopsiché – l´ame humaine sous l´influence du temps, du climat, du sol et du paysage”, numa tradução francesa muito velhinha da editora Payot, de Paris. Doutor Mara, sem querer imiscuir-nos na sua vida pessoal, celebra-se alguma coisa por estes lados nesta noite chuvosa?
Doutor Mara: O fim do tinto. Tenho saudades do tempo em que se bebia bom vinho tinto e barato. A sério. A sociedade actual é baseada na trapaça da garrafa, o enfeitiçamento do invólucro, mas olhem, meus caros amigos, isto nem sempre foi assim. Hoje é impossível beber um bom vinho sem a garantia da garrafa e do nome do enólogo/a estampado nas traseiras do rótulo. Sou ainda do tempo em que as tascas, tabernas e casas de pasto deste país se orgulhavam de ter o melhor vinho produzido na cooperativa das suas regiões demarcadas. E muito baratinho, por sinal. Não sou saudosista, mas tenho francas saudades de um tinto digno desse nome servido em qualquer botequim citadino por alguém que sabia o que estava a dar aos seus clientes.
DM: Há alguma razão para trazer a bandeira portuguesa aos ombros, Doutor Mara?
Doutor Mara:  Alguma lata e algum descaramento, pois claro.  Mais concretamente a bandeira serve para eu me poder encostar com segurança ao balcão. Aqui o taberneiro, o meu amigo, Gonçalo Pratas, um homem de armas como vocês podem ver, não pode ver nada sujo e está sempre a deitar detergente e líxivia para cima do balcão. Com esta sua atitude, já me deu cabo de umas quantas camisas de cor compradas nas melhores boutiques de ocasião. Já se sabe, a bandeira protege das nódoas e esta foi comprada por alturas do Europeu e já está um pouco desbotada…as manchas não ofendem a pátria, pelo menos não tanto como aqueles que andam agora com um pin na lapela.
DM: Doutor Mara, há muita gente que gostaria de transmitir respostas e anseios ou então apenas devaneios chamados de torrente de ideias sobre o que vão lendo das suas charlas quotidianas. Tem noção do impacto que cada charla do Doutor Mara tem na nossa sociedade?
Doutor Mara: Deixem-se de bajulices, já vos tenho dito, qualquer dia deixo de conversar convosco e então será o fim do mundo. Pensar, reflectir e escrever são partes de um processo longo e do qual não tenho feito outra coisa ao longo da vida. O importante seria que cada cidadão pensasse e agisse por si próprio, que fosse aquilo que a sociedade ilustrada do século das luzes sempre sonhou: um cidadão atento, activo e participante nas decisões da polis. O meu grande amigo George Orwell tinha uma posição mais crítica sobre o que se publica por aí, pois este dizia que “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique” e que “o resto é publicidade”.
DM: Constatamos também que o Doutor Mara não consegue viver, para além do tinto, da palavra escrita, isto é, sem escrever nem ler, parece-nos. De onde vem este seu gosto pelas palavras?
Doutor Mara: As palavras ajudam-nos a definir e a organizar o mundo em que vivemos ao mesmo tempo que nos ajudam a situar e a perspectivar o lugar de onde queremos vê-lo. O mundo está permanentemente a ser recriado pelas palavras, pois são estas que permitem novas significações. As grandes ditaduras e as sociedades capitalistas usam diferentes formas de manipulação das opiniões públicas, mas tocam-se no essencial: a propaganda e a publicidade. Podia ter sido pescador, mas fiquei em terra, a tecer redes de palavras...
DM: A conversa já vai longa. O que é que gostaria de transmitir aos portugueses, Doutor Mara.
Doutor Mara: Em primeiro lugar, que bebam vinho de qualidade. Que sejam exigentes e que leiam sobre os novos vinhos que tem vindo a ser feitos nas diferentes regiões vitivinícolas. Depois, não devem ter medo de oferecer às  namoradas/os, amigos e amigas  caixas de vinho ou mesmo garrafões de cinco litros de vinho, desde que sejam de qualidade, claro. Pode ser que, entretanto, baixem o preço das garrafas. Haja saúde.

Acreditar

Acreditar na perpetuidade colorida do sangue.

Cézanne