segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

De que é Feito o Passado

       
Imagem daqui:www.filmaffinity.com
 "O Amarcord é uma reflexão sobre  a incapacidade de observarmos criticamente o nosso passado fascista, um passado que recusamos, mas do qual nunca nos poderíamos separar: o que faz parte do passado de cada um de nós forma inalteravelmente uma parte íntima de si próprio. Por isso o Amarcord é mais um exame do presente do que uma nostalgia. Na realidade, quando foi estreado o Satyricon, muitos viram o filme como um comentário sobre o Maio de 68. Creio que filmes como Casanova ou O Navio podem ser interpretados como reflexos de uma certa actualidade, como o jornal da noite. (...) Muitas vezes simplifiquei o sentido cabalístico da palavra amarcord, dizendo que é um termo romagnolo e que significa "Lembro-me". Mas não é bem verdade. Penso que a ideia original me ocorreu depois de ter lido qualquer coisa sobre o sueco defensor do aborto Hammercord, e que a sonoridade do seu nome o ponto de partida. Se se juntarem as palavras amare (amar), cuore (coração), ricordare (lembrar) e amaro (amargo) obtém-se Amarcord."

Federico Fellini -"Sou Um Grande Mentiroso - Uma Conversa com Damian   Pettigrew",Tradução de Miguel Serras Pereira, Fim de Século, 2008.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Relógios

          "Toda a gente sabe que o tempo é a morte, que a morte se esconde nos relógios. Apesar de tudo, se impusermos um outro tempo, que é alimentado pelo relógio da imaginação, podemos rejeitar a sua lei. Aí, livres da foice do triste ceifeiro, aprendemos que a dor é conhecimento e que todo o conhecimento é dor."

Federico Fellini -"Sou Um Grande Mentiroso - Uma Conversa com Damian Pettigrew",Tradução de Miguel Serras Pereira, Fim de Século, 2008.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Ontem, escrito numa parede da cidade

As minhas amigas Sinónimas têm razão. Eu devia deixar de incomodá-las durante a noite.

(Pára-me de Repente…)

Pára-me de repente o pensamento…
-Como se de repente sofreado
Na Douda Correria…em que, levado…
-Anda em Busca…da Paz…do Esquecimento.

-Pára Surpreso…Escrutador…Atento
Como para…um Cavalo Alucinado
Ante um Abismo…ante seus pés rasgado…
-Pára…e Fica…e Demora-se um Momento…

Vem Trazido na Douda Correria
Pára à beira do Abismo e se demora

E Mergulha na Noute, Escura e Fria
Um olhar d´Aço, que na Noute explora…

-Mas a Espora da dor seu flanco estria…
-E ele Galga…e Prossegue…sob a Espora!

Ângelo de Lima

Sob o Lado Esquerdo

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinais, dos cristais. Então, das duas uma: partem ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa:“o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo os peso do sangue sobre a metade gasta do meu corpo, esmagar o coração.”

Carlos de Oliveira

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Carta a Janeiro Alves no Findar de Fevereiro

Caro amigo Janeiro Alves,

Gostaria de dizer-lhe o quanto venerei a sua missiva em meados de Fevereiro, talvez porque há muito não lia um escrito em língua portuguesa tão livre e serenamente escorreito. Os meus sinceros encómios para si e para os seus mestres de longa data, obviamente, pois tenho a certeza que esta epístola amiga será guardada secretamente debaixo de um colchão de uma cama setecentista, à semelhança do que realizava na infância com os maços de notas do monopólio, após várias vitórias consecutivas. Ando, portanto, há alguns dias impaciente para lhe responder, mas, como o meu caro amigo bem sabe, as minhas austeras e vigorosas rotinas, deixam-me sem tempo nem espaço para fazer seja o que for. Escrevo-lhe, por isso, agorinha mesmo, antes de me recolher no meu leito de Morpheu, logo após comer as minhas papas de flor de aveia e efectuar somente dois sopros no narguilé.
Tenho levado, nos tempos mais recentes, uma vida demasiado frugal e tranquila, longe evidentemente dos tempos de apostas em casinos e demais investimentos obscuros nos concursos de tiro ao alvo, ou partidas de columbofilia, procurando nesses momentos de estúrdia e evasão a necessária ataraxia que a vida moderna exige. Estou mais calmo, é certo, mas acumulo picos de angustia e euforia, sendo este período marcado por uma felicidade incrível, no entanto pouco ou nada criativa da minha existência.
Há dias, fui pago a peso de cortiça para apresentar uma exposição de fotografia de um jovem altamente promissor, um artista obcecado em fixar manequins existentes nas montras das cidades e os seus mais que desinteressantes olhares e posicionamentos verticais. Agradou-me sobretudo ver que há artistas para tudo bem como a forma como croquete e bolinho de bacalhau invadiu os salões e as vernissages da actualidade. Sem mais, fiquei estupefacto, estarrecido e algo enfartado.
Estou quase a adormecer, amigo Janeiro Alves. Sinto que vou sonhar com a fatia de salmão que comerei bem cedo pela manhã. Da janela do meu quarto vejo um jardim resplandecente, na rua não há vivalma, e a vida por aqui sabe-me a estrelícias em flor e araucárias solitárias! A Primavera ameaça, mas fica-se por aí…à espera que as suas novidades sejam uma evidência, despeço-me…

com elevada estima e reconhecimento,
este seu eterno amigo,


       Doutor Mara 

Somos a Língua que Falamos

          “Todo o grupo que seja objecto de preconceito tem isto a dizer: somos a língua em que somos falados, somos as imagens em que somos reconhecidos, somos a história que estamos condenados a recordar porque fomos impedidos de ter um papel activo no presente. Mas somos também a língua em que questionamos estas suposições, as imagens com que invalidamos os estereótipos. E somos também o tempo em que vivemos, um tempo do qual não podemos estar ausentes. Temos uma existência própria e já não queremos continuar imaginários.”
Alberto Manguel

Diminuição da Espessura Afectiva dos Laços

          Há uma maior quantidade de traços de psicose, narcisismo, borderline. Porque há uma menor intimidade entre as pessoas. As relações são mais superficiais, menos íntimas, menos vinculadas, mais anónimas. De maneira que não há familiaridade. Deixou de haver confiança, a colaboração mútua. (…)  Hoje as pessoas só são íntimas entre dois ou três amigos. No meu tempo, era íntimo de todas as pessoas da aldeia. Mesmo nas cidades, havia aquela coisa de bairro, as pessoas iam a casa uns dos outros. Hoje temos mais conhecidos do que amigos. Há uma diminuição da espessura afectiva dos laços.”


                             Entrevista de Carlos Vaz Marques a Coimbra de Matos, in Jornal Público, dia 21 de Fevereiro, 2016.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

...

sabes
conta-se que depois do inverno
a memória
treme nos interiores das chuvas caídas
alguns candeeiros deslizam para os mistérios de uma sombra
e deixam algumas pegadas
para quem sabe que nascer ou morrer agora
passa ao lado das ponderações gerais
ou dos decretos cósmicos

diz-se ainda
que alguns homens partem por esses vestígios de liquidez
cantam dentro de um corpo invertido e desfocado
ao longe
onde sentado à soleira da casa de alguém os vejo passar
sem calendário que não seja obrigatório
ou as calças mais banais
e burocráticas

Sei lá – daqui parece que caminham
sobre as ruas fluídas
como se caminhassem por cima de uma miragem
interessa-lhes pouco o que de facto nada interessa
como ajoelharem-se
encostarem o ouvido à chuva por desaparecer
procurarem naquele reflexo ingrato uma pulsação
onde uma abelha pouse e de lá traga
o princípio de outra flor

enfim
é isto que escrevo sussurradamente
sentado em sítios que não me pertencem
sabendo
que se não me levantar destas estações sensíveis
toda a minha irrefutável e inútil vida será
ver os outros partir

Leonardo, in Âmbula, Companhia das Ilhas, 2015.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Tipografia Micaelense: A Aventura Continua


         
Ilustração de Mário Roberto
A Tipografia Micaelense está situada na Rua do Castilho, com o número 33B, em pleno centro histórico da cidade de Ponta Delgada. À passagem pela sua porta, o seu reclamo sugere de imediato curiosidade a quem sempre nutriu gosto e encanto pelo mundo das artes gráficas. Ao entrar, respira-se um ambiente de papel e máquinas que se assemelha a um repositório de vivências e memórias que não somos capazes de decifrar à primeira. É preciso, por isso, dar tempo ao tempo e dois passos em frente para nos abeirarmos da recepção e absorver o cheiro das máquinas e objectos ali presente. Num expositor do lado esquerdo estão, de forma ordenada, algumas das relíquias gráficas que a designer Júlia Garcia, tem desenhado e composto por ali com a ajuda do pessoal da casa. É esta designer quem irá discorrer, algumas horas depois, sobre esse universo tipográfico, os mistérios e encantamentos de cada gaveta, a revelação de antigas técnicas de impressão nos tipos ali guardados, bem como do trabalho manual que é necessário para cumprir cada tarefa ou a vontade que é partilhar esses conhecimentos ancestrais com diferentes pessoas que ali aportam. E o que é um facto é que cada vez mais gente nova ligada às artes gráficas e outros curiosos passam por ali e assistem espantados ao imaginário de subtilezas que importa conhecer e voltar a (re)descobrir. A porta, pelo menos, está aberta a quem decida aventurar-se naquela "catedral de conhecimento gráfico".
       Fundada em 1947, a Tipografia Micaelense faz parte desse património vivo que urge ser recuperado e novamente valorizado, sendo actualmente pertença de alguém que, com cuidado, orgulho e dedicação, tem sabido que este é de novo o tempo de misturar e voltar a dar: Dinis Botelho. É, sobretudo, ele, um homem que trabalha há muitos anos em tipografias, quem conta como agarrou em mãos esta antiga casa, em estado de pausa e desuso, e com a sua direcção e labor, irá completar este ano duas décadas de funcionamento contínuo e abertura ao público. A seu lado, está o seu companheiro de ofício de longa data - Eduardo Furtado. Dinis Botelho conta também que os primeiros dez anos não foram fáceis, já que serviram essencialmente para pagar o investimento e manutenção, sendo um período de muito empenho e esforço, algo que pertence a muitos dias e noites de entrega às canseiras e dificuldades. Hoje, a Tipografia Micaelense funciona apenas em offset, ainda que esteja por ali uma Heidelberg muito antiga e demais máquinas de outros tempos, e foi dessas subtilezas relacionadas com as artes gráficas do passado, que saíram recentemente a capa do livro “Os Caminhos do Chá”, um extraordinário catálogo de divulgação da exposição organizada pelo Museu Machado de Castro, ainda em exibição, a bonita "Agenda Luz de 2016", trabalho realizado na íntegra no espaço da Tipografia por um grupo alargado de pessoas, com Júlia Garcia à cabeça, recorrendo também ao offset,  mantendo técnicas de impressão antigas na capa e nas artes finais. Curiosamente, na última sexta-feira, assistimos ao lançamento de “Haikus de Passage”, da francesa, Elga Martin, que nos ajudou também a compreender e confirmar o que já todos sabíamos: a Tipografia Micaelense está viva, vivinha e, por sinal, bem “requinha”!

Tipografia Micaelense: A Aventura Continua


         
Ilustração de Mário Roberto
A Tipografia Micaelense está situada na Rua do Castilho, com o número 33B, em pleno centro histórico da cidade de Ponta Delgada. À passagem pela sua porta, o seu reclamo sugere de imediato curiosidade a quem sempre nutriu gosto e encanto pelo mundo das artes gráficas. Ao entrar, respira-se um ambiente de papel e máquinas que se assemelha a um repositório de vivências e memórias que não somos capazes de decifrar à primeira. É preciso, por isso, dar tempo ao tempo e dois passos em frente para nos abeirarmos da recepção e absorver o cheiro das máquinas e objectos ali presente. Num expositor do lado esquerdo estão, de forma ordenada, algumas das relíquias gráficas que a designer Júlia Garcia, tem desenhado e composto por ali com a ajuda do pessoal da casa. É esta designer quem irá discorrer, algumas horas depois, sobre esse universo tipográfico, os mistérios e encantamentos de cada gaveta, a revelação de antigas técnicas de impressão nos tipos ali guardados, bem como do trabalho manual que é necessário para cumprir cada tarefa ou a vontade que é partilhar esses conhecimentos ancestrais com diferentes pessoas que ali aportam. E o que é um facto é que cada vez mais gente nova ligada às artes gráficas e outros curiosos passam por ali e assistem espantados ao imaginário de subtilezas que importa conhecer e voltar a (re)descobrir. A porta, pelo menos, está aberta a quem decida aventurar-se naquela "catedral de conhecimento gráfico".
       Fundada em 1947, a Tipografia Micaelense faz parte desse património vivo que urge ser recuperado e novamente valorizado, sendo actualmente pertença de alguém que, com cuidado, orgulho e dedicação, tem sabido que este é de novo o tempo de misturar e voltar a dar: Dinis Botelho. É, sobretudo, ele, um homem que trabalha há muitos anos em tipografias, quem conta como agarrou em mãos esta antiga casa, em estado de pausa e desuso, e com a sua direcção e labor, irá completar este ano duas décadas de funcionamento contínuo e abertura ao público. A seu lado, está o seu companheiro de ofício de longa data - Eduardo Furtado. Dinis Botelho conta também que os primeiros dez anos não foram fáceis, já que serviram essencialmente para pagar o investimento e manutenção, sendo um período de muito empenho e esforço, algo que pertence a muitos dias e noites de entrega às canseiras e dificuldades. Hoje, a Tipografia Micaelense funciona apenas em offset, ainda que esteja por ali uma Heidelberg muito antiga e demais máquinas de outros tempos, e foi dessas subtilezas relacionadas com as artes gráficas do passado, que saíram recentemente a capa do livro “Os Caminhos do Chá”, um extraordinário catálogo de divulgação da exposição organizada pelo Museu Machado de Castro, ainda em exibição, a bonita "Agenda Luz de 2016", trabalho realizado na íntegra no espaço da Tipografia por um grupo alargado de pessoas, com Júlia Garcia à cabeça, recorrendo também ao offset,  mantendo técnicas de impressão antigas na capa e nas artes finais. Curiosamente, na última sexta-feira, assistimos ao lançamento de “Haikus de Passage”, da francesa, Elga Martin, que nos ajudou também a compreender e confirmar o que já todos sabíamos: a Tipografia Micaelense está viva, vivinha e, por sinal, bem “requinha”!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Uma Missiva de Janeiro Alves no Cair do Pano

Caro Dr. Mara,
            Espero que esta carta de Fevereiro esteja à altura da sua magnífica intelectualidade e superior interesse, para que não a leia na diagonal como é habitual, e não deixe assim escapar os pequenos detalhes das entrelinhas, decisivos para que perceba que nem tudo espelha o que à partida aparenta.
            No Vislumbre está o erro.
            Imagino-o bem, na sua vida pacata, entre a casa, a biblioteca, e o café. Em casa descansa, na biblioteca trabalha e no café convive, embora também conviva em casa, trabalhe no café e descanse na biblioteca. Poderá também trabalhar em casa, conviver na biblioteca (baixinho) e descansar no café, desde que tenha boas poltronas para se recostar. Este seu triângulo é já uma rotina, e quem disser que não precisa de uma rotina fá-lo por inócua rebeldia, ou por manifesta incompetência. É essa rotina que lhe permite por em prática o seu método de trabalho, a sua nobre missão de compor palavras através de letras, frases por junção de palavras, textos como compilação de frases, e ideias por intermédio de textos. Expresso portanto um sentimento de ampla satisfação por ver o Dr. Mara, na plenitude de todas as suas capacidades físicas e mentais, e sempre com os olhos postos na construção do universo futurista, a produzir matéria literária relevante para as gerações futuras. Agrada-me sobretudo ver que abandonou, num definitivo provisório, os seus comportamentos pouco ortodoxos que tão lamentavelmente abalaram os pilares da sua idoneidade social e dignidade pessoal. O dia em que largou o degredo e a luxúria e decidiu regressar à sua promissora carreira, deveria ser feriado nacional! Longe vai o tempo dos clubes nocturnos e dos negócios obscuros. Faça-se luz nas suas ideias
          Mas já chega de falar de si, Dr. Mara, pois daqui a pouco, de tão inchado rebenta. E se rebentar pelos ares, milhões de palavras desordenadas se soltarão e serão arrastadas pelo vento para parte incerta, como pequenos murmúrios eternos espalhados pela cidade à procura de bocas.
            Este seu admirador por aqui vai andando e observando. Andando pelo jogo da cidade, observando transeuntes a arrastarem-se por entre os destroços da sua própria existência, chorando mil lágrimas vazias no culto permanente da sua impotência de amar. Na avenida passam autocarros repletos de amargura disposta em filas de rostos adormecidos de olhos abertos. As pessoas andam tão cabisbaixas que parecem tentar encontrar a lente de contacto que perderam no chão, e por cima das nossas cabeças cai uma chuva torrencial de depressão e angústia.
            Estava a brincar, Dr. Mara. Apenas senti que esta minha carta estava a necessitar de um momento de tensão. A cidade está resplandecente, as pessoas caminham com um sorriso aberto pelas ruas, e a vida por cá é um grande festim!
           Aguardo notícias suas em breve, se não for antes.
Com consideração e auto-estima,
Janeiro Alves

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Do Teatro

As Charlas Quotidianas do Doutor Mara

         "O teatro é uma forma social que depende, mais do que qualquer outra da sua eventual manifestação pública e por isso, de condições culturais gerais. Pode-se teoricamente conceber um filme rodado com intenção de posterioridade, o teatro, esse existe no presente, ou não existe."


Vaclav Havel in jornal "Expresso", Dezembro de 1990.

Dois Poemas Fevereiros

Se possuísse por instantes
o futuro todo pela frente
e lograsse escapar perplexo
pela copiosa chuva da manhã
talvez fosse provável abraçar
dez minutos mais tarde
a Primavera por cumprir
com robustas árvores e troncos em flor

Sem qualquer escusa
sairia em Fevereiro pela rua fora
com uma folha de hortelã ao ombro
directo à tigela da sopa
sabendo por entre dentes 
o quanto solitariamente escrevo
esse teu olhar
de intencionalidade pura.
(...)

Aproximar os ramos das árvores e escrever
sem querer saber de cheiros e de seiva
passear-se sobre ruas inexactas
lugares inócuos de ciência e clareira
o têmpero de líquidos no Inverno
expostas máscaras sem mistério
ao mágico espelho do tempo
enquanto as fábricas laboram sem cessar
e as pobres mães à espera de intervalo
em contínuo recreio, quase febril,
-que infância protelaremos em Fevereiro?

Quanto sangue escorre derretido
sobre vítimas indefesas da frieza
tal e qual caudais de gente revolta
somos transatlânticos sem destino
um manto de nuvens num abandono fugidio.

Ontem escrito numa parede da cidade

A kora não é popular em Portugal pois os músicos evitam ser conhecidos por coristas.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

FACA: Extensão à Ilha de São Miguel


A FACA (Festa de Antropologia Cinema e Arte) abriu portas ontem, dia 16, no Centro de Actividades  Culturais do Nordeste, na Ilha de São Miguel e irá até ao dia 20 de Fevereiro. O certame abriu com a sala cheia do edifício inaugurado pela Câmara Municipal do Nordeste a 30 de Novembro de 1997 e andará espalhado por vários locais da Ilha (Rabo de Peixe, Ponta Delgada, Maia e Sete Cidades) nos próximos três dias. Um iniciativa de cinema e arte associada à disciplina dedicada à Antropologia Visual, promovida pelo CRIA-Centro em Rede de Investigação em Antropologia, sediada em Lisboa, e que se foi assim entendendo ao arquipélago dos Açores. Deste modo, abre caminho para uma maior divulgação e implantação nas ilhas açorianas contando a ilha de São Miguel com a colaboração da AJECTA (Agência para a Coesão Territorial) e do Museu Carlos Machado, parcerias que desta feita promovem e alargam a mostra a novos filmes e temáticas insulares, como são os casos de "Pão", de André Laranjinha e "Xailes Negros", de Zeca Medeiros.
          Sendo assim, os alunos da Escola Secundária do Nordeste puderam assistir em primeiro lugar a “Inoperável”, de Carolina Val-do-Rio, filme em formato muito curto sob a forma de manifesto relacionado com a operacionalidade do corpo na sua existência indefinível e respectivas representações sociais que cada cultura impõe, nem sempre fáceis de aceitar. Seguiu-se o filme "Wawata Topu", incursão de David Palazón e Enrique Alonso pelas "mulheres sereias timorenses", uma curiosa e atribulada viagem pelas pescadoras que vivem em Belois, na ilha de Timor Leste, dedicando-se estas, conjuntamente com os seus maridos e filhos, à luta pela sobrevivência e demais estratégias de como existir em meio hostil, permitindo este documentário atender à simples respiração de como os lugares nos condicionam e moldam a nossa humanidade e existência. A simples necessidade de troca dos peixes pescados por outros alimentos, essencialmente por arroz e café, bens essenciais à sobrevivência no mercado local, originam por isso uma luta quotidiana com a natureza de forma feroz e contínua.   
        Por último, esta pequena mostra terminou com um filme deveras inspirador sobre esse alimento do dia-a-dia e que tem, sem dúvida, uma importância primordial na nossa existência: o pão.  Sem carácter narrativo ou referencial, aborda todos os percursos que vai desde a semente ao forno, sobretudo todo o percurso até chegar às mesas, preocupado que está desde o início com a situação da chegada dos cereais – excelente plano inicial dos cargueiros que entram e fazem a descarga de cereais no porto de Ponta Delgada dirigidos à Moaçor, interrogando assim as razões que o tempo presente modificou, destinados que estamos a aceitar o momento em que estamos a viver, ignorando a possibilidade de uma catástrofe ou cataclismo. André Laranjinha realizou um filme em que arrisca tudo através da via do silêncio e da poesia, são poucos os depoimentos, não dá pistas sobre os intervenientes e lugares, sendo que é através das imagens de forma poética que nos introduz naquele universo, permitindo que observemos e contemplemos as suas linhas de orientação na consumação deste propósito. “Pão” é um belíssimo filme, elaborado sob diferentes camadas e sucessivos ingredientes até percebermos de forma clarividente o conteúdo e o miolo dos processos inerentes à chegada deste precioso alimento à mesa das nossas refeições ou casas. É bem provável que seja necessária uma padaria por perto após o visionamento deste filme tão sugestivo.

Dois Poemas de João Paulo Esteves da Silva

A tocar piano
aprende-se a deixar o paraíso

Pelo artificio de uma boa marca
e 88 pôr-de-sóis ao alcance dos dedos
faz-se caminho da pedra que cai,
o caminho do homem que cai


na geração imensa do outono.

Rompe-se a noite, explodem sóis
a cada nota martelada
mostra a pessoa original
(aliás duas pessoas e ambas primeiras)
deglutindo-se em queda
no inferno ao longe do jardim de aqui

Tesouros imaturos,
corpos  devorados
que se adivinham por morrer o som de cada nota,
levam lágrimas e letras
à escola dos milagres
onde se ensinam maravilhas simples
(tão simples que o pianista quase enlouquece)

...

(de rascunho para uma carta)
Talvez um dia as armas voltem a ser beijos
talvez que as ilhas digam sim ao mar
e sem se transformarem logo em peixes
digam o porque sim de dizer não…
talvez…as ondas voltem a ser mansas
e a maior vaga azul da tempestade
nos leve em caravelas para a lua
finalmente subindo e não de rastos.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Um Dia Não Muito Longe Não Muito Perto

Às vezes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer-me que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada para te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?

Ruy Belo

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O Obséquio de Comprar Produtos da Terra e do Mar

            O Mercado da Graça, em Ponta Delgada, abre portas muito cedo, por volta das sete horas da manhã, repetindo o mesmo horário até quinta-feira, encerrando nestes dias às seis da tarde. Nos dias de sexta e sábado este lugar de comércio é apenas reservado às manhãs, pois fecha às duas da tarde e, como encerra aos domingos, tem essa particularidade de concentrar as compras numa parte do dia. O melhor é começar as compras bem cedo.

"Mercado do Peixe" - Ilustração de Mário Roberto

            Logo à entrada do mercado, devemos exercitar o sentido do olfacto, já que acreditamos não ser possível usar o paladar, exercitemos, portanto, o exalar de aromas e cheiros dos produtos da terra que lá se encontram, provenientes dos mais diferentes lugares da ilha verde. Esse sentido deve vir, portanto, muito antes da visão, já que muitas vezes a aparência e colorido dos respectivos víveres, não é atributo de odor exuberante e frescura, por isso convirá meter a mão e o nariz onde se é chamado, sem abusar, claro.  A verdade é que muitos de nós acordamos com ansias e desejos de artigos frescos, coisas boas e tenras, sobretudo deliciosas para comer ou ter por perto, se possível, muito, muito saborosas. É, sem dúvida, zeloso e bastante cuidadoso da nossa parte ir ao encontro das delícias e paladares que a nossa terra e mar dão, a exigência obrigatória de qualidade alimentar, bem longe dos plásticos e demais embalagens poluentes, ainda com a vantagem de se poder aprender sobre o tempo das colheitas e abordar a meteorologia de forma provisória e descomprometida, à boa maneira açoriana.
           É ali, na freguesia de São Pedro, num edifício que remonta a meados do século XIX, que se concentram os vendedores habituais, as pessoas que fazem e vivem aquele quotidiano enquanto comerciantes e vendedores de produtos locais. Por vezes, simpáticos, muitas vezes cansados com as agruras de um dia-a-dia árduo e nem sempre dispostos a tolerar clientes inquisitivos e impacientes. No entanto, por vezes, é deveras surpreendente a alegria permanente que se vislumbra num lugar como este, sabendo nós de histórias de sacrifício e obstáculos que existem por detrás daquelas existências. O sítio é, pois, propício à policromia em qualquer altura do ano, com uma pletora de cores que os frutos, vegetais e flores lhe confere.  Na visita a realizar não podemos descurar a compra dos produtos que a terra açoriana nos dá: inhame, pimenta da terra, batata doce, anonas, araçás, goiabas (quando é o tempo delas, claro), ainda o famoso ananás e, claro, há também por lá um cantinho dedicado aos queijos oriundos de todo o arquipélago que, como podem imaginar, são um verdadeiro comprazimento. Bem lá no fundo do mercado, há também a peixaria, sendo razão de sobra para aí encontrar e indagar a origem dos peixes do mar profundo do Atlântico, deparar-nos assim com o peixão, veja, boca negra, espadarte, alfonsim, imperador, bodião, bonito, congro, chicharro (no continente, o jaquinzinho) e ainda o polvo, que dali passarão a ser as verdadeiras atracções da restauração local.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Três Poemas Sobre a Negligência do Fio de Cabelo

O Teu Negligé oblige

A luz irrompeu limpa pela manhã
afastou lentamente o pesadelo,
inclemente grito logo desmanchado
cindiu um coração de esfinge imaculada
acusada de desleixe percorre agora
as espúrias veredas do desalinho
e desavinda toca o precipício na
falsa serenidade em retrocesso
as ruínas de um éden já traçado.

 A Oscilante Tocha Requer

A oscilante tocha requer
colo estirado pela tardinha
o recolher do copo em desamparo
alvo fio branco do desaforo
Daquele tempo enfermo foi reboliço
guarda no bolso o ténue presente
daquela falsa Incúria acometida.

 Da Tua Alba Obstinação  Possuo

Da tua alba obstinação possuo
a transferência em prato quente
acato urgências e vitupérios
a robustez frágil das intenções
teço loas ao cargo e desempenho
é carente de amplexo a incerteza
o meu abandono de aparência e alvoroço.

Jazz no Arco 8



         O que fazem três músicos Michael Ross (contrabaixista americano), Michael Smith (saxofonista sueco) e Michael Wimberly (baterista americano) na cidade portuária de Ponta Delgada? Fazem certamente um trio de Jazz, ensaiam e dão concertos para espectadores e melómanos atentos. A noite de sexta-feira, dia 12 de Fevereiro, na Galeria Arco 8, está reservada para escutar este trio de músicos conhecidos pelo seu virtuosismo e despojamento, sendo que são raros estes encontros, estamos perante um bom momento para participarmos de forma activa nessa sessão insular dedicada ao projecto DOGGONE JAZZ.

Só a Noite Me Atraiçoa

Não sei se os pássaros estranham haver eu e tu
e nunca nos terem visto

murchou aquela rosa que me enchia o quarto
e já olhei tanto a cidade
que nunca a achei diferente

se a felicidade não é perfume de rosa
os dias são a cadeia que o sol me prendeu

menina do avental vermelho
(essa é a côr que trago por dentro)
Quando deixas as tardes p´ra me revelares amanhã?

Só a noite traz
traição
de almofada perfumada.


Rui Duarte Rodrigues

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

"A Sombra e a Luz nas Canções"

            O pianista João Paulo Esteves da Silva e o fadista Ricardo Ribeiro juntaram-se recentemente para tocar e cantar. O lugar desta curiosa junção foi na Sala Luís de Freitas Branco, no passado dia 25 de Abril, no auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Com o título de “A Sombra e a Luz nas Canções”, João Paulo Esteves da Silva tocou e acompanhou pela primeira vez a voz de Ricardo Ribeiro, que interpretou temas de Amália Rodrigues (“O Mal Aventurado" – música de Alain Oulman e letra de Bernardim Ribeiro”), Sérgio Godinho (“Demónios de Alcácer-Quibir”), Popular Alentejano (“As Mondadeiras Cantando”), José Carlos Ary dos Santos ("Canto Franciscano" e “Cavalo à Solta” - com letra de Fernando Tordo), João Paulo Esteves da Silva (“Sítio” e “Duas Cores”), Vinícius de Moraes ("Serenata do Adeus") e Carlos Paredes ("Verdes Anos"). Desta reunião aguardam-se mais acontecimentos e canções, entretanto está disponível nos concertos da Antena1 uma audição desse bonito espectáculo ao vivo, a requerer, certamente, uma escuta dedicada e atenta.