segunda-feira, 11 de março de 2019

Missiva Pré-Primaveril ainda que tardia de Janeiro Alves

Caro Doutor Mara,
É com enorme satisfação que recebo a sua carta, apresentando desde já as minhas desculpas pelo atraso na resposta. Devo dizer-lhe que os últimos dias têm sido conturbados, devido a determinados acontecimentos que se sucederam inapelavelmente e à vista do meu olhar incrédulo. Pois imagine o Doutor que fui convidado para o Certame das Piores Obras Literárias Europeias, que este ano aconteceu em Saint Tropez. O Doutor Mara sabe como aqueles porcos chauvinistas gostam do freak show, mas eu não me importei nada. Hotel pago, pensão completa, passagens de pullman incluídas, champanhe no quarto, banhos na Côte D’Azur, oh la la… Foi caso para voltar a escovar o meu fato asas de grilo e reafirmar a categoria dos meus sapatos italianos de cetim afivelados. Para banhos reservei a minha melhor tanga, monocromática, robusta e confortável. Saímos de Lisboa rumo a França, com algumas paragens. A última seria em Perpignan, uma simpática localidade no litoral Sul. Tínhamos cerca de meia hora, e acabei por me perder. De repente dei por falta da carteira, e tentei sem sucesso voltar aos sítios por onde tinha passado. Corri para a praça central, e o autocarro já tinha partido sem mim. Vi-me assim sem dinheiro, sem mala, sem nada. Lembrei-me então que Victor Klaus estava a viver em Rivesaltes, uma zona de vinhas perto dali, e pus-me à boleia. Lá chegado, não demorei a encontrá-lo. O Doutor Mara não imagina a fama que Klaus tem em Rivesaltes! Mas concluirei rapidamente. Fiquei então uns dias por cá, em casa de Klaus, e tenho estado a trabalhar na apanha do tomate. O objectivo inicial era conseguir algum dinheiro para regressar a Lisboa, mas neste momento o local já me é aprazível. O meu caro amigo sabe como gosto de andar a pé, e Lisboa está um inferno com os trotineteiros e ciclistas. Cada vez mais o peão é um alvo a abater, e isso deixa-me furioso! Comecei a atirar-lhes com pedras da calçada, mas o Doutor imaginará a dificuldade em acertar em alvos em movimento…
Relativamente a Felício, compreendo a sua angústia, é efectivamente uma péssima ideia querer interrogá-lo. A última vez que o vi foi há uns quinze anos. Passei pela sua rua, e vi uma silhueta por detrás das cortinas da sua sala de jantar. Imagino que fosse ele, tendo em conta que não tem por hábito receber visitas, à excepção do contador do gás. Imagino portanto que, como abrilhantador de entrevistas e perguntador de alto gabarito, o Doutor Mara encare este como o maior desafio da sua já longa (porém curta) carreira. É caso para lhe desejar sorte, e lhe dizer que, dado o meu paradeiro, assistirei ao longe áquilo que poderá ser a sua consagração ou quem sabe, o seu categórico declínio.
Com elevada expectativa e a ancestral admiração,
Janeiro Alves