segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Missiva à laia de 31 pelo Janeiro Alves em Moimenta da Beira

 Ilustre Doutor Mara,
Ou muito me engano, ou esta carta com vista para dois mil e vinte encontrará um Doutor Mara ainda inebriado pela quadra natalícia, envergando a sua habitual camisola de lã com renas e o respectivo gorro vermelho com pompom, e cantando aqui e ali pequenos trechos do Gingle Bells. Ainda esta semana obtive a informação de que fulano o viu assim numa casa de pasto insular, tendo-me contactado logo de seguida. Disse-lhe telefonicamente, e depois de um longo bocejo, que de nada de preocupante se tratava, e que era apenas uma forma de o Doutor Mara chamar a atenção. 
Registado este pequeno apontamento, e porque hoje é o último dia do ano, escrevo-lhe de Moimenta da Beira, localidade pitoresca do interior do país. Foi aqui que muita da história de Portugal aconteceu,  e que o gasóleo da auto-caravana acabou. Acabei por vendê-la a um estrangeiro, para pagar dívidas de mercearia. Estou hospedado na estalagem central, preparando-me já para a grande noite de Reveillon. Para além do habitual caldo verde e das passas, a estalagem apresenta mais logo um espectáculo de música ao vivo com o incontornável Tó Organista. Como se deve recordar, conheci o Tó Organista numa feira de gado há uns anos atrás e ficámos muito amigos. Espero que ele ainda se lembre de mim, pois é certo que me convidará para subir ao palco e cantar um ou dois temas. Pelo sim pelo não já comecei a beber Macieira, que como o próprio nome indica, amacia a voz.
Assim, e apesar de não me ter convidado, não me vai ser possível passar o Reveillon deste ano consigo, com muita pena sua. Mas a vida é assim. Como dizem os franceses, “parfois ensemble pour le Reveillon, parfois non…”. Acabo esta carta com uma boa notícia para si. Lembra-se daqueles cem euros que lhe emprestei há uns anos atrás para o Doutor Mara fazer face àquela situação constrangedora que por zelo não nomearei nesta carta? Para além de não lhe pedir qualquer juro, ainda lhe reduzo a dívida para oitenta euros. No envelope encontrará um pequeno papel com o meu nib, e rapidamente o assunto ficará esquecido para sempre.
Despeço-me com um olhar fascinado e comovido sobre dois mil e vinte e a promessa de voltar em Fevereiro com todo o fulgor que a química moderna me permitir, desejando ao meu amigo um novo ano melhor do que o presente, que já não foi mau, mas que poderia ter sido melhor, como aliás todos os anos acontece, à excepção de alguns onde se verifica precisamente o contrário. 

Cumprimentos reveillonistas,
Janeiro Alves

"A Construção Moderna" (1900-1919)

          "A história e a colecção completa desta revista que durou 542 números, publicados ao ritmo quinzenal, e depois trimestral, até Julho de 1919, estão agora no portal de "Revistas de Ideias e Cultura (RIC), à atenção dos historiadores, investigadores e demiais interessado na arquitectura portuguesa do início do século XX."
Sérgio C. Andrade, in Jornal Público, 26 de Novembro de 2019.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Sem Mar

Dizes-me:
nunca há mar nos teus poemas

Pois não. O mar que conheço é baço
e o que nunca vi é estranho
insondável como poço, afoga-nos num lento abraço

Dizes-me depois:
nunca há mar, mas há aldeias

Pois há. E há mulheres, há sempre mulheres.
Umas a chegar, outras a partir.
Gosto de encontros, gosto de despedidas - Há sempre mulheres,
                                                                     (algumas despidas
Não me atrai as ondas 
o modo magnético de nos prenderem o olhar.
Prefiro-o à solta pelas aldeias 
é que tudo que há nelas me dá ideias
mesmo um triste poço, mesmo um monte baço

João Habitualmente, in "Um dia tudo isto e será meu (uma antologia)", Porto Editora, 2019. 

sábado, 14 de dezembro de 2019

O Olhar de Uma Inatingível Ternura

Desenho de Daniel Lopes 

Busto e Costas

Sei que gostas
de vestidos sem costas

e de grandes decotes nas blusas
sei que os vestes e usas 
Toda essa conspiração 
de tecidos que te despem
se destina à minha derrota:
vergas-me ao teu busto ardente
aniquilado pelo decote que te rasga o peito

Sei que gostas 
de blusas sem ombros
e de vestidos sem costas

sei que os vestes e mostras

e sei que usas 
finas rendas que te desvendam o busto 
e me reduzem a escombros

si que te olho 
e me assusto:
gosto de ti

com vestidos sem costas 
gosto eu e sei que gostas 
mas gosto mormente de blusas sem alças 
e de vestidos sem frente

João Habitualmente, in "Um dia tudo isto será meu (uma antologia)", Porto Editora, 2019. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Missiva Natalícia para Janeiro Alves

Ilhas Atlânticas, dia 9 de Dezembro de 2019
Caro Janeiro Alves,

Reestabeleço contacto com o amigo Janeiro, nesta tarde outonal, na esperança de descobri-lo moço e ambicioso. Sim, é verdade, a sua última missiva tresandava a desencanto e abandono. Inesperado, para não dizer surreal, este retorno às raízes do amigo Janeiro. Soa a ranço, para não dizer nostálgico, este professar dum adeus à antiga capital do império para refugiar-se no pinhal rodeado de vegetais e salchichas. Isso só pode simbolizar rendição à gentrificação, melhor, cedência ao “modus operandi turisticus” a que muitos dos nossos concidadãos foram submetidos.
Aproveito, assim, para comunicar-lhe que me tornei economicamente viável, já que acabei de participar num encontro literário com a preleção “E Rimbaud…gostava de Ramboia?”, com a assistência a rejubilar com tamanha agudeza e assertividade, não podendo deixar de soltar uma lágrima aquando da ovação de pé durante cerca de onze minutos. Nesta minha magnífica palestra não me esqueci de exaltar a paciência dos editores e livreiros que, ainda assim, continuam a convidar-me para estar presente nestes eventos de grande gabarito.
Desta feita, volto a referir que as suas mais recentes missivas revelam um Janeiro Alves cada vez mais eremita e misantropo. Por isso, não sei se irei aceitar o seu convite já que tenho receio de me distrair com o que terão para dizer figurões e personagens como Victor Klaus, Alberto Ai, Andar Carrasco, Fausto, Giorgio Delle Mare ou, imagine, soube da presença, este Natal, do curassário, Nikos Falácia Cautela, que me afiançou estar ansioso por degustar as iguarias e néctares dos deuses da sua mesa natalícia. Desconfio que serão muitos os artistas presentes mas, confesso-lhe, que o Movimento Alarvista está perdido, descamba a toda hora com tanta opacidade e nulidade criativa. A colocação de ananases em telas douradas não é bastante para renovar a arte hodierna.
Assim, despeço-me, já que estou atrasado e os correios estão a abarrotar de gente neste período. Aguardo, por isso, novidades suas apenas em Fevereiro…ou será que terei alguma surpresa pelo caminho?
Com a estima mais do que devida,
Doutor Mara

Ece Canli na Galeria Brui

Concerto de Ece Canli na Galeria Brui,
(7 de Dezembro 2019)

(Fotografia de Carlos Olyveira)

Agenda Amor 2020

Agenda Amor 2020 (Agendas da Tipografia Michaelense)
Fotografia de Carlos Olyveira

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Cinema Trindade, Porto. (Até dia 11-16h00 e 18h00)


“Aqui salienta-se a estreia, esta semana, de “Hálito Azul” de Rodrigo Areias. O cineasta e produtor de Guimarães partiu para os Açores e centrou-se em Ribeira Quente, povoação do sudeste de São Miguel. Areias faz um retrato abrangente daquela aldeia piscatória, usando como mote, ou contraponto, “Os Pescadores”, de Raul Brandão, texto que está a ser encenado, de forma experimental, pelo professor da escola local, com habitantes da aldeia. O filme destaca-se, em primeiro lugar, pela magnífica qualidade fotográfica, a cargo de Jorge Quintela, um dos mais talentosos diretores de fotografia da nova geração. Há uma riqueza tonal e de enquadramentos, que inclui filmagens em alto-mar e até sub-aquáticas. Depois, vale pelo sentido de proximidade. O realizador consegue dar-nos uma sensação de intimidade com aquelas pessoas, mais própria da ficção, como se a conhecesse desde sempre. Por fim, há um lado transgressor, experimental, de fronteira do género, que resulta muito bem, sobretudo através da força da interpretação de Zeca Medeiros. Um belíssimo documentário.”
Manuel Halpern, Revista Visão, 28 de Novembro de 2019

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Ladrões de Bicicletas

“Tinha curiosidade em saber o que fazem os ladrões, como passam os dias quando não estão a roubar. Passam-nos talvez a estudar, instruindo-se uns aos outros, entregando-se com paixão, com um zelo infinito, aos golpes que planeiam, interessando-se, nas tabernas, pelas proezas realizadas pelos seus parceiros, tendo ciúmes uns dos outros, como nós, os poetas, os artistas, que não fazemos outra coisa senão criticarmo-nos e atacarmo-nos uns aos outros, para grande divertimento – e para edificação – do público."
Luigi Bartolini, Ladri di Biciclete, in “De Bicicleta, Antologia de Textos, Relógio D´Água, 2019.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Das Bicicletas


"Enquanto discípulo da energia respiratória, o ciclismo relaciona-se directamente com tudo o que existe em nós de verdadeiramente espiritual e espacial. Exigindo um equilíbrio físico e psíquico da concentração, a actividade motora repetitiva, contínua e profunda, funciona como uma equivalência física matizada do equilíbrio psíquico, da concentração, da harmonia e do ritmo de que falam inúmeros sistemas religiosos e filosóficos. Os mais antigos e os mais venerados destes sistemas pressupõe sempre que não se pode agir sobre o espírito sem se agir sobre o corpo.
Em resumo, a bicicleta pode representar, na longa história dos artefactos humanos, uma dos mais raros exemplos de uma interacção totalmente benéfica e ecologicamente irrepreensível entre tecnologia e arte, entre matéria e espírito. Se, como diz William Blake, a energia é uma fascinação perpétua, então a bicicleta é uma energia. Porque o facto de andarmos de maneira disciplinada numa bicicleta, que é leve e que tem várias velocidades, pode ser psicotrópico, pode mudar o nosso espírito e o nosso coração. Uma corrida prolongada e concentrada tem efeitos no modo de focalizarmos a percepção de definirmos os contornos, as cores e os sons do mundo físico. Andar de bicicleta é alargar  e intensificar o nosso campo visual. Esta espantosa invenção tem, de uma maneira muito simples, o poder de mudar a natureza da nossa relação com o mundo."
Peter Cummings, extraído de Bicycle Consciousness; poems and prose, antologia de textos, Relógio D´Água,2019.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Uma Missiva de Pré-Natal de Janeiro Alves

Caro Doutor Mara,
Abro aqui mais uma página da nossa já longa e solitária correspondência, com a mais profunda curiosidade em saber se ainda se encontra vivo, se ainda não foi raptado por traficantes de órgãos, ou adoptado por uma velha baronesa sedenta de diversão. Dados os últimos acontecimentos, temo ainda que tenha fugido para o Brasil ou que se encontre numa casa de saúde algures no meio da floresta Laurissilva (apenas por prudência). Apesar desta minha perversa curiosidade, mantenho a confiança de que o Doutor se mantém indexado aos cânones estabelecidos pela sociologia moderna, e que a sua farta cabeleira permanece bem armada, pois sei que nela guarda alguns objectos pessoais de valor inestimável e outros de uso mais diário.
Quero pô-lo ao corrente da vida de Lisboa, mas ficará para outra oportunidade, pois não me encontro lá. Estou neste momento no meio do pinhal, a respirar o ar puro e cristalino da natureza, e a grelhar umas salsichas tipo Frankfurt para o almoço. Perguntará nesta altura o Doutor Mara aos seus colegas de quarto: “o que estará Janeiro a fazer no meio do pinhal?”. Trata-se de uma desatenção da sua parte, caro Doutor. Acabei de lhe dizer que estou a grelhar salsichas para o almoço.
Mas o que o Doutor Mara não imagina, e que, se estiver acompanhado, encenará um enorme interesse em saber, é que decidi vender a minha sub-cave urbana e comprar uma autocaravana. Aventuro-me agora independente pelas sinuosas estradas do desconhecido, com dois faróis iluministas, uma cama, um frigorífico e um velho rádio a passar cassetes nostálgicas. Será neste escritório móvel e ao som de Swing e Yé-Yé que começarei em breve a redacção da minha nova obra – Compêndio Geral de Compêndios. Após este meu périplo por pinhais do interior de Portugal, conto chegar a Penedono pelo Natal, onde pretendo estacionar temporariamente para a tradicional celebração da época festiva. Para este ano conto assar meio cabrito. É neste ponto que justifico esta minha missiva. Quero convidar oficialmente o Doutor Mara para passar o dia de Natal com este seu velho amigo, e para me ajudar a comer os restos do cabrito da noite anterior. Obviamente que o repasto será bem regado com vinho a jarro de produção local, uma categoria.
Aguardo, portanto, o seu sinal relativamente a este convite. O sinal é de apenas 15 euros, e os restantes 25 euros poder-me-ão ser entregues em mão no dia do almoço.
Com elevadíssima estima e magnífica impressão,
Janeiro Alves

Devagar de Howard Barker

Teatro de Giz, Ilha do Faial

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Dos Casais

         "Há muitos casais que se destroem na filmografia de Bergman, é mesmo se calhar o tema mais presente em toda a sua obra, o desamor que sucede sempre à paixão, a amargura que a devoção deixa no peito, tema que dura mesmo até ao fim, a esse “Saraband” terminal com que, cinematograficamente, o realizador se despediu de nós em 2013. Mas nenhum tem a turbulência essencial que “Mónica…”ressuma, como um suor amargo na refrega das febres, materializando nesse plano último em que Harriet Andersson olha para a câmara, olha para nós, a interpelar as nossas convicções e juízos. Quando a vida é madrasta, por quem nos tomamos para nos pormos a fazer julgamentos?"
Jorge Leitão Ramos, in E, Revista do Expresso, 1 de Dezembro de 2018

É só inquietação...

José Mário Branco (1942-2019)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Obrigado, Manuel Jorge Veloso! (1937-2019)

Manuel Jorge Veloso realizou a banda sonora do filme "Belarmino",
 de Fernando Lopes, 1964.

Do Sentido

      “Ter alguém à nossa espera é o único sentido da nossa existência. Alguém que te espera, que te quer bem, o amor é o único sentido da existência.

Manuel Villas, autor do livro Em Tudo Havia Beleza, ao entrevistador Luís Caetano, Antena 2.

sábado, 19 de outubro de 2019

Sempre aos Domingos

Aos domingos enquanto abrias a porta do quarto
perfuravas uma desarrumação que dilacerava
fixavas o poster com o Rui Jordão ou
apontavas no globo o corno de África
as notas rasgadas do monopólio atrás da arca
o suor das fotografias os rostos enxugados
naquela descida de rolamentos acelerada
até ao fim da curva

Aos domingos nessas ruas com nome de infância 
sabias de imediato não poder atravessar 
aquela ruína cerrada ao fundo do quintal
o medo acumulado para observar distante
num verde baralhado da partida 
embarcavas quase secretamente sem pensar
no desacordo da lua e do vento instável
falsas promessas de um prometido paraíso.

O Homem do Saco no TIPOS

Fotografia de Carlos Olyveira

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Girassóis

São horas dolentes à janela retendo
A luz da tensa espera em prumo claro
Jangadas de esperança em fina ardência
Que da torrente se anunciam fulgurantes
Acelerada combustão

Trazem com elas sal à memória
Luminosos dias que se apagaram
O vento que soprava a favor amainou
A carga dos cargueiros ao cair da tarde
E a cadeira infantil em pleno porto

Baloiçando

Tantas vezes denunciam as horas
A infinita tristeza dos girassóis
Daqueles que se inclinam à noite
Ou dos que raramente se escondem
Expondo-se de forma desdenhosa
À claridade

Um Verso de Luís Severo

Ou se te esqueço para lembrar o Verão

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Poesia pelo Clima na Tascá


Ler poesia em voz alta é um acto que comporta alguma seriedade, clarividência e justeza. É nestes momentos de leitura de poemas em público que o clima pode sair a ganhar. Os poetas sempre souberam que o significado de poesia é fazer, criar algo novo, mudar a realidade. O clima é melhor quando há pessoas à volta dos poemas, dos poetas e dos leitores que os lêem.
É justo pensar que cada poema tem a sua organicidade, o seu próprio funcionamento interno. O clima global não está nada famoso, afirma Greta Thunberg. Ler poesia pode salvar, acreditamos nós. Hoje, quinta-feira, iremos ler poesia pelo clima, pelo planeta, pela casa em que habitamos.

Verso dos Linda Martini

O chão que pisas sou eu

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Fim da Tarde

Fotografia de Carlos Olyveira 

Ainda o Burning Summer Festival

Tcheka e Mário Laginha


O “Burning Summer Festival” é, cada vez mais, um festival que conjuga a ecologia com a diversidade musical num território particular como é a freguesia de Porto Formoso, na Ilha de São Miguel. Aqui alia-se a beleza da paisagem com uma paleta de sonoridades díspares que continua a ter uma boa recepção por parte dos festivaleiros e melómanos à mistura. A edição deste ano não foi diferente e foi então momento para ouvir a excelente dupla: Tcheka e Márilo Laginha. Estes abriram uma frente musical que primou assim pela diferença, tendo ficado na retina e nos ouvidos uma canção crioula de grande melodia e intensidade - "Rosadi Rezadu". Coisa linda para audição constante. 




Fui ao Mar Buscar Laranjas de Pedro da Silveira

A poesia reunida de Pedro da Silveira

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Dos Sonhos

"Os sonhos são as manifestações não falsificadas da actividade criativa inconsciente."
Carl Jung

terça-feira, 10 de setembro de 2019

das palavras finais de um homem

         "A primeira palavra dita em Citizen Kane, de Orson Wells, é também a última palavra de um protagonista que morre: «Rosebud». No ano seguinte - 1942 - sai Casablanca, tendo como protagonista Humphrey Bogart, que só morrerá na década seguinte, logo após afirmar:« Nunca devia ter trocado o Scotch pelo Martini.» 
        Nesse mesmo dia morre um velho escocês, um bêbado, cujas últimas palavras se dirigem à filha mais velha: «Passas tu pela lavandaria?»
        Uma milionária muda o testamento, privando os netos de tudo, e deixa o seu vasto império ao gato Tobias. Nomeio o irmão como cuidador, a quem deixa alguns milhões. Deixa-se morrer em silêncio, regozijando com a imagem de assombro na cara dos netos quando descobrissem.
        «O papel de parede ou eu!» Terá dito Oscar Wilde em 1900. Não muito longe morre uma octogenária junto ao marido desolado. Ela diz-lhe com doçura: «Estes sessenta e três anos de casamento vivia-os todos outra vez...», e morre de olhos abertos.
        «Mais luz!», terá bradado Goethe em 1832.«Estou farto!», terá confessado Winston Churchil antes de cair num coma. «Tenho de ir, o nevoeiro adensa-se», terá sido o verso final de Emily Dickinson em 1886.«Preparem o figurino de cisne», as palavras que pontuaram a vida da bailarina Anna Pavlova,  e «o Teodósio não é teu filho», as palavras que mudaram a vida do Adalberto. 
         «I Know not  what tomorrow will bring» terá sido a última frase escrita por Fernando Pessoa, um antes da morte em 1935. O biógrafo João Gaspar Simões, no entanto, assegura que as palavras finais do poeta terão sido: «Dá-me os óculos.»
        O som preferido por milhares e milhares de homens e mulheres nos instantes antes de partir terá sido um gemido. Muitos terão  dito «Adeus», tantos quantos «Não quero morrer». Um número considerável pediu perdão, um número menor que cuidassem da sorte de um animal de estimação, e um número ainda menor agradeceu.
         Um número considerável de mulheres e homens prestes a morrer confessam um segredo, um pecado, libertam-se de um peso que não querem ter de carregar. Muitos rezam, em todos os idiomas e todas as fés, a diferentes deuses. Alguns perguntam: «Porquê?»"

Joana Bértholo, in Ecologia, Editorial Caminho, 2019.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Da Respiração

"Continua-se a respirar. No fundo é respirar, respirar a sua respiração."

Lourdes Castro, entrevista de João Pacheco na Revista Expresso, 31 de Agosto de 2019.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Agosto: Celebração do Cinema Europeu


O cinema europeu continua a obter a visibilidade e atenção necessárias junto das sessões dos cineclubes, e são muitos os que insistem em manter uma programação activa durante os meses de estio. O Cineclube Octopus, com lugar na Póvoa de Varzim, mantém a sua actividade há trinta e seis anos de forma consecutiva, uma vez por semana, junta os seus sócios e espectadores que dessa forma participam nas sessões, encontrando-se este num momento de grande entusiasmo e aposta na diversidade e interesse pela sétima arte.
A primeira sessão, a que tive oportunidade de assistir, deu-se com um filme francês “Os Combatentes”, primeira obra do realizador Thomas Cailley, numa sessão ao ar livre. O filme retrata a vida de um par de jovens, a luta pela chegada à idade adulta, o questionar das convenções sociais, o problema da natureza humana com as óbvias dificuldades de comunicação, sob o pano de fundo de uma paixão entre o casal de protagonistas. 
           Seguiu-se depois “A Face”, de Malgorzata Szumowska, uma narrativa que pretende retratar o momento actual da sociedade polaca contemporânea, sobretudo o espaço onde esta se revela mais conservadora, xenófoba e contraditória. O filme levanta questões profundas sobre a diferença e aceitação, revelando desequilíbrios nas representações, mas com uma vitalidade e ousadia sempre presentes.  Depois, houve o “momento Jarmusch”, com o filme “Os Mortos Não Morrem”, um cineasta que parece viver um momento de redefinição cinematográfica, já que parecia resolvido a comemorar a vida, pois a longa metragem gira em torno de mortos que retomam à vida com as suas antigas paixões, errando pela pequena cidade, sendo que a partir de determinado momento, à semelhança dos navios sem rumo, somos invadidos pelo cansaço e excessos da falta de originalidade, redimindo-se com a narração soberba da voz de Tom Waits. Por outras razões e noutra sessão de Agosto, assistiu-se à longa-metragem “Culpado”, de Gustav Möller, um triller psicológico sobre um polícia suspenso, agora confinado a um departamento onde recebe chamadas de emergência, lutando assim consigo próprio e a culpa de um crime, numa narrativa que dá forte presença ao corpo e à inquietação deste, como se estivesse encurralado e nós com ele. Por esse motivo, vemos a angustia do personagem que não se sente nada bem no novo lugar que ocupa, espreitamos a fragilidade humana, pressentimos ali o triz do precipício, numa descida aos infernos travada pelo instante final da redenção. Tanto alarido sobre as fragilidades da narrativa que já se ouve falar de remake em versão hollywoodesca. Curioso, não é?
Fora da actividade cineclubística, houve tempo também para ver o filme “Variações” que já que é um sucesso enorme de bilheteira nacional, permanecendo há várias semanas nas salas, batendo recordes de assistências. Trata-se de uma biografia musical, sendo aqui o registo cinematográfico de importância documental, ao mesmo tempo que comporta uma dimensão de sonho que agarra o espectador de principio até ao fim, desperta ainda o ensejo necessário de qualquer jovem nascido num lugar pequeno a partir e a conhecer outras realidades diferentes da sua. “Variações” tem esse condão de apelar a não ficarmos circunscritos às circunstâncias e aos limites, obriga-nos a olhar o exemplo de alguém que arriscou sair, lutou pelos seus sonhos e anseios, lançou-se em horizontes alargados. Venceu? O importante era atingir o seu sonho. E que belíssima interpretação de Sérgio Praia na personagem de António Variações.
Assim, aproveitou-se da melhor maneira o momento estival para ver diferentes cinematografias oriundas do continente europeu que, ao contrário do que se papagueia por aí, continua vivo e atinente no que toca à sétima arte.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Açores: Atlântico Azul

No “Inverno Quente” deste Agosto chegam boas notícias sobre objetos artísticos que tem como tema central o mar e os pescadores. Raul Brandão, autor de “Os Pescadores” e "As Ilhas Desconhecidas”, “pintou” como só ele soube o azul do atlântico no seu bulício e transformação. O escritor, natural da foz do Douro, narrou a vida dos homens do mar de norte a sul do país ao mesmo tempo que descobria as ilhas atlânticas que, aos seus olhos, lhe eram desconhecidas.
              Deste modo, as obras atrás referidas de Raul Brandão serviram de mote e inspiração para o documentário “Hálito Azul”, realizado por Rodrigo Areias com argumento de Eduardo Brito, rodado junto da comunidade de pescadores da Ribeira Quente, Ilha de São Miguel, com estreia marcada nos Açores no dia 20 de Setembro, pelas 21h00, na Igreja daquela freguesia. Recorde-se que o filme teve uma primeira exibição no Festival de Locarno, na Suíça, tendo sido a sua primeira apresentação pública na edição do festival Porto/Post/Doc em Novembro último, seguindo-se vária exibições em concurso dos mais diversos festivais, onde obteve aí dois curiosos prémios: Prémio Especial do Júri (Ismaília Film Festival, no Egipto) e o Prémio Melhor Documentário (Pristina Film Festival, no Kosovo).  
               Atente-se, assim, a outro projecto relacionado com mar, as ilhas e os pescadores, denominado de “Atlântico”, pertença do artista multimédia, Helder Luís, actualmente em residência artística na cidade de Póvoa de Varzim.  O resultado deste labor documental surge no seguimento da instalação MAR que esteve em Serralves e que dará lugar à publicação de vários livros e demais exposições. Actualmente encontra-se em exibição "Atlântico", numa das salas do museu municipal, um conjunto de fotografias e vídeo que documentam uma viagem começou na Póvoa de Varzim e terminou em Ponta Delgada, tendo depois existido uma outra saída para a pesca. Helder Luís acompanhou a tripulação da embarcação açoriana “Íris do Mar”, documentando a actividade piscatória nos seus gestos, vivência e modos, servindo-se da fotografia, do vídeo e ainda da música. Desta feita, “Atlântico” evidencia uma vontade de dar a conhecer as artes de pesca praticadas no arquipélago, registando a energia e a vitalidade da força de trabalho de um grupo de pescadores, curiosamente oriundos de diferentes comunidades e nacionalidades, reflexo de um mundo laboral em transformação.
Celebre-se, pois, quase um século depois da publicação destas duas obras de Raul Brandão, o empenho e esforço dos criativos portugueses em colocar a centelha piscatória e do mar na ordem do dia, atribuindo o destaque e atenção mais do que merecidas.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Resposta Urgente de Janeiro Alves com a Humidade nos 90%

Lisboa, Octogésimo Primeiro dia a contar do Treze de Maio
Caro Doutor Mara,

Enceto esta carta com um veemente pedido de desculpas pela minha prolongada ausência, desejando que a mesma o encontre de boa saúde e dentro dos percentis estipulados pela ciência moderna. De facto, ao se aventurar a redigir bojardas sobre a minha pessoa, o Doutor Mara tem em parte razão, perdendo-a logo de seguida. Fui efectivamente alcançado pela máquina demolidora da turistificação. Fui expulso do meu apartamento em Campo de Ourique, e acabei numa sub-cave desagradável e residual, onde mal tenho espaço para a minha colecção de insectos embalsamados. Compreendo também o seu ímpeto provocador ao se referir a uma tal barbearia (que é apenas uma fantasia da sua cabeça e dos seus amigos intelectuais de trazer por casa), e começo a pensar que o Doutor Mara sente inveja desta barba bem lavrada, pois é conhecido o seu desejo de vir a ser aceite pela nossa Confraria dos Barbudos só para poder usufruir das excursões que organizamos às melhores casas de pasto nacionais. Relativamente a este assunto, deixe que lhe diga que a fotografia que há uns dias enviou juntamente com a ficha de inscrição de sócio, onde envergava nitidamente uma barba postiça foi no mínimo constrangedor. Quando os meus camaradas me perguntaram se o conhecia, afirmei “O nome dele não me é estranho…”, mas o Deodato que é cego sentiu a minha voz um pouco trémula. Este episódio não belisca em nada a nossa já longa amizade, apesar de não poder dizer com segurança que esta frase seja de uma autenticidade imaculada.
Posto isto, gostaria de lhe dar uma vaga noção dos meus tempos recentes, mas nada de relevante me ocorre. Os dias seguem o seu curso, as árvores preparam-se para caducar, as gentes movem-se em vagas que se precipitam sobre os areais, e os pombos assumem-se cada vez mais como espécie reinante, olhando sobranceiros e circunspectos os transeuntes foto-génios entediados pelo turismo. Recentemente arranjei trabalho numa biblioteca, e a minha função é limpar o pó dos livros. Tiro um livro, limpo o pó, meto no lugar. Tiro outro livro, limpo o pó, e meto no lugar. E assim sucessivamente. Tenho lido excelentes capas e contracapas. Já as lombadas dispenso, uma vez que me obriga a flectir o pescoço, e o Doutor Mara sabe em que estado fiquei quando me precipitei para salvar o Bobi de ser atropelado. Aproveito para lhe comunicar que o cão morreu engasgado na semana passada.
Acabo esta breve carta com uma nota de encorajamento e motivação, e uma outra de prudência. Sei que está motivado com o seu mergulho às profundezas do oceano, e que se de lá conseguir sair terá um ou outro episódio curioso para partilhar. Digo-lhe que tenho a profunda convicção que dado o seu considerável peso em quilogramas, rapidamente alcançará o fundo. A nota de prudência prende-se com os Alarvistas. O Doutor Mara afaste-se dessa gente, se não quer ficar como eles. Se ao invés quiser ficar como eles, não se afaste. Nesse caso aproxime-se, ou mantenha-se apenas por perto, caso a aproximação já esteja no limiar da “distância pessoal” tal como definida pelo Grande Livro da Ergonomia.
                                    Duma sub-cave Lisboeta, despeço-me com uma Vénia de Milo desnuda.
Janeiro Alves

Missiva para Janeiro Alves no Mês dos Grilos

Ponta Delgada, quadragésimo segundo dia após o início do Estio Açoriano.

Caro amigo Janeiro Alves,

Escrevo-lhe esta missiva com alguma urgência dado que daqui a instantes tenho que fazer as malas de viagem e ainda aconchegar o estômago com um repasto no Baptista, uma casa de pasto à moda antiga que descobri a semana passada a oito quilómetros do lugar onde durmo. Foi no Batista que provei as melhores asinhas de frango, com muito molho e vinagre, mas, confesso-lhe, o mais importante foi o convívio com outros elementos do Movimento Alarvista. Os Alarvistas são, de facto, imprevisíveis e originalmente fecundos. Imagine só, que um dos seus mais reputados e afamados elementos do Alarvismo, um tal de Alberto Ai, replicou que apesar do seu nome, nunca ninguém o viu desesperado.
Aproveito, assim, para desejar-lhe um Agosto incrível, que seja um oitavo mês repleto de peixe graúdo e fresco, sobretudo bem lá do fundo, com vinho branco das castas Arinto ou Malvasia, sem esquecer a sobremesa de melancias bem rubras e adocicadas. Felizmente, para mim, Agosto é altura de muito trabalho. Este é o mês onde, por norma, labuto 24 sobre 24, já que me espera um batíscafo onde conto fazer um mergulho às fossas marianas. Imagine que fui convidado para visitar as respectivas fossas (há quem jure a pés juntos serem estas minha propriedade) e assim concretizar um mergulho de 11 mil metros de profundidade. Ainda hoje partirei para as Filipinas onde farei os aprestos iniciais após uma década de preparação. O amigo Janeiro Alves poderá constatar que quase não terei muito tempo para respirar (mesmo que eu quisesse lá no fundo, não poderia, já que tenho que suster o pouco ar em disputa). O mergulho é apenas de quatro horas dentro das fossas, no entanto serão precisas muitas horas de treino para ser o quarto a bater mais este recorde.
            E, caro amigo Janeiro, como decorre o Estio? Dentro de uma normalidade esperada ou a debandada geral para o litoral? Nada sei de si de viva voz…mas soube através de uma amiga longa data, que espero não seja das más línguas, que também foi interceptado nas malhas da turistificação ao criar mais um empreendimento dedicado ao alojamento local, em pleno centro histórico da capital. Corre por aqui a notícia que o meu amigo transformou as águas furtadas onde residia numa barbearia tipo gourmet onde vende experiências e sonhos a jovens famosos de todo o planeta que queiram dormir numa cadeira de barbeiro e acordar duas horas mais tarde com a barba feita e o cabelo cortado. Curioso é o nome do empreendimento/barbearia - “AL/FAMA”…caso para dizer que quem fama cria deita-se na barbearia.
                Despeço-me, esperando que Agosto seja fresco e acutilante.
Com estima e descomunal admiração

Doutor Mara

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Fotografia de Carlos Olyveira

segunda-feira, 29 de julho de 2019

FALTA #2: Há Folia no Ar?

         Depois da apresentação da FALTA#2, com direito a um memorável concerto de Joana Gama e Jacinto Neves na Igreja do Colégio, pronunciemo-nos, entretanto, sobre o conteúdo que vos chegou às mãos. É possível que quem ainda não adquiriu a FALTA#2 tenha que dar corda ao sapato para ver se ainda é possível pôr a vista em cima e, assim, poder foliar à sua vontade.
Desta feita, o número dois da FALTA/Folia tem uma diversidade de colaboradores que quis conferir uma abordagem estimulante e vibrante ao tópico proposto. Há, por isso, oposição conceptual, inclusive, probidade vocabular e até mesmo contraditório à folia reinante de enfiar a cabeça num balde, isto é, estamos na presença de múltiplas perspectivas e derivas etimológicas da palavra face a distintos registos idiomáticos. Nestas páginas da FALTA há, portanto, de tudo e para todos os gostos. O grafismo e paginação, pertença de Júlia Garcia, resultam sempre numa novidade, apresentando, por isso, uma colorida unidade formal, pontuando o diálogo das páginas de acordo com o conteúdo formal proposto. O desenho final arrisca, não só do ponto de vista cromático, já que promove a junção de diferentes disciplinas artísticas, afinando assim o tom e o contraste, mantendo a junção e a coerência entre as múltiplas vozes ali expressas. E nessa derivação gráfica bem foliona, destacam-se os poemas de Judite Fernandes, Marco Evo, Rui Anselmo, Felix Blanco, Pedro de Mendonza, Mayank Maheshwari, ainda a prosa esdrúxula de João Pedro Porto, o desfile erótico-marxista do Colectivo do Homem do Saco, o apelo à sensualidade de Alberto Ai, as desovas comediantes de Igor Boyer, a auto-ironia de Greg La Lays ou o delírio galináceo-fóbico de Vítor Bernardo Almeida. Na fotografia, as sugestões festivas de cariz insular das perspetivas de Guilherme Figueiredo e Pepe Brix, o ioga matinal na Índia por Briana Blasko ou a imagem crítica e atenta sobre a cidade de Jorge Kol de Carvalho. Nas letras, a curiosa narrativa marítima-epopeica à volta da família do escritor-velejador, Knud Andersen, através da pena de Elísio Marques, pautada pela belíssima estampa de André Chiote. Ainda sobre a imagem ilustrada, acrescente-se a bd pessoana de Edgar Pêra, o fandango urbano-skateano de Nuno Lemos, o empreendimento bibliográfico de Luís Brum ou mesmo a plasticidade pueril de João Miguel Ramos. Nesta edição, houve também lugar para diferentes abordagens na colagem, desta vez com dois dos seus maiores cultores a nível local – Mr. Wolf e a artista plástica, Paula Mota. Por último, uma referência ao espírito filosófico com um texto cavo e incisivo de Vítor Bilhete sobre a existência de folia neste pedaço a meio do atlântico, intitulado “Filhos de Pangeia”, para lá da insanidade das páginas centrais em modo operante através de um Interrogatório a Felício Chanfra, psicoterapeuta de ocasião. Que tolice, dirão vocês!
PS - Uma coincidência sem precedentes, invulgar e deliciosa, o que torna a publicação ainda mais apelativa, foi saber que três criadores presentes nesta edição venceram três prémios relevantes recentemente – Vítor Bernardo Almeida, com o Prémio de Pintura António Dacosta, Açores 2018, José Loureiro, Prémio AICA (relativo à Associação Internacional de Críticos de Arte, Ministério da Cultura e Millennium bcp) e André Chiote, com o Prémio Asiago 2018, pelo selo dos CTT, "Europa, 2018", dedicado às pontes de Portugal Continental, Açores e Madeira. Os respetivos parabéns aos premiados e votos de um itinerário artístico repleto de êxitos.

Uma biografia de Mário Cesariny

          
              "Aceder aos bastidores de um poeta é como visitar as caves dum grande museu. Arrumadas a um canto estão lá algumas tábuas esquecidas que as paredes já não comportam. Em ocasiões especiais vêem a luz do dia e nós então olhamo-las como tesouros que emprestam novo sentido ao que as rodeia. Assim a bagagem secreta dum poeta recompõe as suas letras e põe um raio de luz no que antes era só escuridão. Temos a sorte de possuir  a chave que nos permite abrir a porta da antecâmara onde o jovem Mário guardou parte dos seus segredos. Há alturas em que não bastam os poemas dum poeta; é preciso conhecer o que se lhe associou, as leituras que fez, as notas que tomou, as reflexões que cogitou, os autores que correu e que amou, e até as ruas por onde andou e divagou para se perceber como se deu a sua evolução e se processou a génese da sua idade madura."


António Cândido Franco, in "O Triângulo Mágico - Uma biografia de Mário Cesariny", edições Quetzal, 2019. 

sábado, 27 de julho de 2019

Um Verso de Márcia

Tenho este olhar assim

O Banco de Antero

dois pedaços de madeira
batido por uma luz amarga

o dia soube da tua ida ao armeiro,
e ordenou aos pássaros que recolhessem
mais cedo.

estrelas, no Céu, ninguém deixou dito se vieram,
e tu não estaria com elas
mesmo que olhasses para cima
quando o cano te tocou o palato,

sentaste-te porque querias ir embora,
farto de forçar o labirinto,
exausto de dizer ao norte
que a bússola, é, só, um adereço.

as coisas são como são,
não vale a pena dar-lhes debrum de rosas bravas, 
ou colheres de água quente
com três pitadas de açucar,

foi em Setembro, como podia ter sido em Janeiro,
aguentaste, como um felino,
o coice da solidão,
e disparaste dois tiros
para marcar o regresso,

quem te fechou os olhos
ouviu-te agradecer.

Emanuel Jorge Botelho, in "Ossos Dentro da Cinza", Averno, 2017.