sexta-feira, 17 de abril de 2020

O que o viajante vê nas bicicletas da Holanda?

“Os outros povos do planeta consideram a bicicleta um aparelho destinado ao jogo e ao desporto. Permite uma velocidade extraordinária com meios simples, exige algum esforço e, ao mesmo tempo, o seu uso implica um certo risco. Todas estas características confinam o velocípede ao âmbito das actividades desportivas e, entre elas, às que requerem juventude.
            Apesar disso, verificamos que por todo o lado aumenta o seu uso em serviços meramente úteis. O operário que vive em distantes subúrbios vai para o trabalho e regressa dele de bicicleta. O distribuidor de certo tipo de mercadorias e o estafeta também recorrem a ela. Mas é precisamente esta generalização utilitária, que por todo o lado se verifica, que sublinha a consciência predominante de que não é esse o adequado objectivo da bicicleta, mas outro. Isso é sublinhado pelo facto de este aproveitamento secundário está reduzido ao estritamente inevitável: só a ele se recorre quando não há outro remédio ou quando a hulmidade dos meios económicos o impõe como uma triste necessidade. É por isso que não estranhamos: o operário mal vestido que pedala para ir para casa proclama tacitamente que preferia outro meio transporte e que usa esse precisamente não por ser o desejável mas por uma triste imposição. E com isso fica resolvida a incongruência, vemo-la explicada e não sentimos estranheza.
            Mas na Holanda toda a gente anda de bicicleta, qualquer que seja a sua idade, sexo, volume, posses. E agita as pernas sobre pedais, ia dizer que cinicamente, isto é, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se fosse o que é preciso fazer. Pois bem, é isso que irrita o viajante, que causa estranheza e incompreensão: considerar-se natural e perfeito o que lhe parece inadequado e erróneo.
            Ao chegar aqui, o nosso intelecto, lutando dialecticamente consigo mesmo, faz a seguinte objecção: não será que considero natural e correcto simplesmente o que me é habitual, o que vi noutros povos? Porque não há-de ser a Holanda o povo eleito pelo deus das bicicletas, aquele a quem foi revelado o seu mais autêntico destino.”

Ortega y Gasset in “De Bicicleta – Antologia de Textos”, Relógio D´Água, 2018.

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