sábado, 26 de abril de 2025

Jan Palach de Urbano Bettencourt

 para Onésimo Teotónio de Almeida
Nunca soube a escala 
que mede os terramotos íntimos 
de quem vê devastado o lar dos seus, esventrada a cama
onde pais e avós inventaram a festa gloriosa 
dos sentidos
 
Não posso, por isso, medir-te a raiva
em Janeiro  de sessenta e nove, quando o fogo 
te consumia o corpo na Praça Venceslau 
e nos teus olhos já baços passava ainda 
a névoa de Praga ocupada pelos tanques do império 

em suspeitares quão incómodos os teus ossos
se tornariam,
removidos do espaço público
e forçados à clandestinidade,
porque há mortos cujas vidas assombram a noite 
dos abutres 
muito para lá do seu termo.

Lembrei-me de ti, Jan Palach, tantos anos depois
dos teus e meus vinte anos, tão longe dessa Primavera 
de Praga 
agora que nesta Primavera de chumbo 
o fóssil moscovita soltou os ventos e as bestas 
do Kremlin  sobre os prados da Ucrânia,
enquanto repetia o brado
de um velho avô peninsular: «Viva la muerte!»

in Antes que o Mar se Retire, Companhia das Ilhas, 2023. 

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