domingo, 4 de maio de 2025

Songs for Drella

 O cabelo caiu, os pés afligiram-se de gota,
as veias endureceram;
notícias irrepetíveis - chulos que vendem crack
e mastigam chop-suey nos salvados 
de edifícios devolutos.

Lixo, doenças incuráveis
como a filaríase ou a desestima, a respiração
do efémero nas latas de sopa Campbell
e o major Alvega, glamoroso
e luso-britânico, nos quadradinhos Condor
derruba pilotos nazis.

Corpos perfeitos de períneos vagabundos
-um ideal tão ático quanto qualquer existência 
silabada de professor de canto coral,
devoto dos cínicos, por virtude
da miséria. Também os pobres 

se divertem. Comem baratas, 
mascam tabaco, perdem apostas
em corridas de cavalo, decoram
a traço grosso e tons de surrabeque 
telas espúrias de expressionistas. 

José Alberto Oliveira, in O que Vai Acontecer?, Assírio&Alvim, Setembro de 1997. 

sábado, 3 de maio de 2025

O Livro Grande de Tebas Navio Mariana de Mário de Carvalho

       "O Mar dos Sargaços, entre Bahamas e Açores é assinalado por um recife de quartzo translúcido, contorcido e mui levantado. Ao bater do sol, pela hora que é, meio-dia, o recife refulge uma poalha de cores fátuas, que pontilham os ares em volta. Nas raras ocasiões em que aí passa o vento, dizem os marinheiros velhos ouvir harpejos longos pelo recife vibrados. Já isto será conto de maujada, adrede imaginoso como outros ditos dele. 
     Para lá do recife, é o mar esmeralda de sargaços brilhante. É lúcido e quente. Para cá, bancos de nevoeiro turvam o astro em compacta massa opala."
in O Livro Grande de Tebas Navio Mariana, Vega, Dezembro de 1982.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Os Beijos de Manuel Vilas

        "Acredito no erotismo, uma força que não advém do azar e sim da ordem com que a natureza ou a própria insaciabilidade da natureza quis vir até nós. Porque, àquela parte que não compreendemos da natureza, o melhor seria chamar-lhe Obscuridade. 
      Contemplar o rosto de um ser humano pela primeira vez, em teoria, e pensar que esse rosto estava à nossa espera desde sempre, eis o que parece ser uma das leis da Obscuridade.
          E é maravilhoso, é o enamoramento: ver o rosto de outro ser humano e encher-se de esperança, pensando que atrás desse rosto respira uma vida a dois, respira um grande amor. 
          Foi para isso que viemos ao mundo, para nos apaixonarmos e morrermos de loucura. Mas as coisas nunca acontecem assim, morremos de várias coisas, e nunca de amor."
in Os Beijos, Alfaguara, 2021.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Música de Maio Aberto

-Hey Vini - sem palavras / cem palavras, 2020 - Homem em Catarse

-Milagre na Ótica do Utilizador - Leveza, 2023 - André Henriques

-The Shipbuilding - Punch the Clock, 1983 - Elvis Costelo and The Attractions

-Villa Sacchetti - A Study of Losses, 2025 - Beirut

-The Ignoramus Love - Dan's Boogie, 2025 - Destroyer

-Ressentidos e Ressabiados - Viva La Muerte, 2025 - Mão Morta

-The Price I Pay - Workers Playtime, 2006 - Billy Bragg

-O Peso do Meu Coração - O Peso do Meu Coração, 2025 - Castello Branco e Garota Não

-Fartos de Sol - Desta Vez para Sempre, 1989 - Entes Queridos

-Amerikanska skatter - Sex, 2024 - Anna Järvinen

-Year of the Snake - Pink Elephant, 2025  - Arcade Fire

-Triskel -Triskel, 2022 - André Rosinha Trio

Escuta, Zé Ninguém! de Wilhelm Reich

   "És o «homem médio», o «homem comum». Repara bem no significado destas palavras: «médio» e «comum». 
Não fujas. Tem ânimo e contempla-te. «Que direito tem este tipo de dizer-me o que quer que seja?» Leio esta pergunta nos teus olhos amedrontados. Ouço-a na sua impertinência, Zé Ninguém. Tens medo de olhar para ti próprio, tens medo da crítica, tal como tens medo do poder que te prometem e que não saberias usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente: livre em vez de deprimido, directo em vez de cauteloso, amando às claras e não mais como um ladrão na noite."

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Do Mal Estar

    “A obra “O Mal-Estar da Civilização” termina com a seguinte ideia:«As pessoas chegaram a um ponto de domínio tal sobre as forças da natureza que, recorrendo à sua ajuda, não terão dificuldade em se exterminarem mutuamente, até ao último ser humano. O Homem tem consciência disso, o que explica uma boa parte da sua inquietação atual, da sua infelicidade, do ambiente de medo.”

Hans - Martin Lohmann, in Sigmund Freud, Coleção “ A Minha Vida Deu um Livro”, 1998.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

domingo, 27 de abril de 2025

Haikai de Masaoka Shiki

Todos os ventos
são frescos 
para os olhos que vêem.

Saúde Mental

           "Pode haver uma grande crise de saúde mental nos próximos anos, depois deste confinamento. Tal como acontece a seguir a guerras. Acho que o próximo passo, talvez até ao próximo século, vai ser sobre formas de alcançar bem-estar. Tenho uma afiliação com o Centro para a Música no Cérebro, em Orus, na Dinamarca. Colaboro com psicólogos, músicos, que pensam em terapias alternativas. Coisas como a música, a leitura, a poesia podem ajudar a aliviar este stresse que as pessoas estão a viver, sem ser necessariamente com recurso a medicamentos e formas artificiais." 

Joana Cabral, in "Os Filhos da Madrugada", Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2021. 

Verso de Caetano Veloso

 É o que pode lançar mundos no mundo. 

Primavera Geradora de Temperaturas Aleatórias

       Os dias primaveris estão maiores mas ainda pouco dados a mergulhos no mar. As flores dão sinais do seu despertar após tantos dias de intensidade líquida. O verde começa a pintar a paisagem e o nosso olhar serena perante o seu esplendor. Os filmes mais pertinentes e interessantes, na televisão pública, passaram sempre a altas horas da noite e é de questionar que público se pretende alcançar. Daí que fomos assistindo, madrugada adentro, a "Cerrar los Ojos" de Vitor Erice ou a "Licorice Pizza" de Paul Thomas Anderson. A horas mais convenientes, assistimos, no Cineclube Octopus, a "No Other Land", de Basel Adra, Hamdam Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor. E, que falta nos faz, em todo o lado e em qualquer lugar público, cinema na tela grande, acompanhados por outros tantos dispostos ao convívio, à conversa e à partilha da paixão pela sétima arte. 
     Comeram-se, entretanto,  as primeiras sardinhas do ano, longe ainda de serem gordurosas com o óleo a cair no pão, mas para lá caminham. Abril irá findar e é o mês das flores que aguardamos com alegria. Que se abram as portas para Maio entrar!

sábado, 26 de abril de 2025

Jan Palach de Urbano Bettencourt

 para Onésimo Teotónio de Almeida
Nunca soube a escala 
que mede os terramotos íntimos 
de quem vê devastado o lar dos seus, esventrada a cama
onde pais e avós inventaram a festa gloriosa 
dos sentidos
 
Não posso, por isso, medir-te a raiva
em Janeiro  de sessenta e nove, quando o fogo 
te consumia o corpo na Praça Venceslau 
e nos teus olhos já baços passava ainda 
a névoa de Praga ocupada pelos tanques do império 

em suspeitares quão incómodos os teus ossos
se tornariam,
removidos do espaço público
e forçados à clandestinidade,
porque há mortos cujas vidas assombram a noite 
dos abutres 
muito para lá do seu termo.

Lembrei-me de ti, Jan Palach, tantos anos depois
dos teus e meus vinte anos, tão longe dessa Primavera 
de Praga 
agora que nesta Primavera de chumbo 
o fóssil moscovita soltou os ventos e as bestas 
do Kremlin  sobre os prados da Ucrânia,
enquanto repetia o brado
de um velho avô peninsular: «Viva la muerte!»

in Antes que o Mar se Retire, Companhia das Ilhas, 2023. 

Insondável Claridade de Paulo Ramalho

Em memória da minha avó Guida 
Vejo-os demorarem-se no último cais. 
Uma insondável claridade 
repousa entre as mãos dos que partem.

Morrer é uma corda tensa de silêncios,
um hálito frio no lábio dos amantes.

Vejo-os embarcarem ao anoitecer
Um súbito vento lhes seca as lágrimas,
A transparência dos vultos breves no convés,
o pêndulo do inexorável, os lenços do adeus,
a espada de fogo do último beijo.

Falam mas já as palavras apodrecem entre os lábios.
Aguardam na luz derradeira a primeira estrela
e depois partem para a  ilha do esquecimento.
Gaivotas intensas sobrevoam o cais deserto.

in A Mar Arte Revista, Inverno/Primavera, 1998.