terça-feira, 15 de outubro de 2024

Pif-Paf de Millor Fernandes

O Independente, 2004 
Antologia Organizada por 
João Pereira Coutinho
 

  



    "E o velho músico já tocava há tantos anos naquele mesmo piano que, quando ele entrava na sala, o piano balançava a cauda."

Poeminha sobre a vitória psicológica do robô

Quem me dera resistir 
à tirania 
do telefone. Tocava, tocava
e eu não atendia.
Mas o problema
é o resto do dia,
o pensamento constante:
«Quem seria?»

Millor Fernandes, in Pif-Paf, Independente, Lisboa 2004.

Da Salvação

 "Um país que precisa de um salvador não merece ser salvo."
Millor Fernandes 

Confissão de Naná da Ribeira

Confessamos todos os dias 
a vida é breve e é dura
a poesia é o farol e a chama
a arte do encontro 
ainda que a habitação 
-que palavra insuportável!
não caiba na quotidiana existência 
de uma libélula!

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O Que Vai Acontecer? de José Alberto Oliveira

 


A Delicadeza de Serem Póstumos, os Diários

Anos de bebedeiras impenitentes e desmandos 
físicos (já o brilho que as recordações
da juventude conserva, lhe parece 
insultuoso), para não falar dos contratempos
que supostamente formam um carácter.

até que a a convicção de incrédulos 
e discípulos, por caminhos em que a lama
lhes garanta o desenho das pegadas,
resumindo tudo e mais o que é propriamente
a vida à invocação de um nome

em linhas de indice remissivo, 
mais demoradas que o escárnio prometido 
por todos que escarneceu. O amor
que esqueceu ou se esforçou por esquecer,
os locais mais pequenos resistem,
a crença de não ser a vida supérflua,
nem a arte irrepetível e outras
páginas de um diário,
que só a morte liberta, como liberta a alma. 

José Alberto Oliveira in "O Que Vai Acontecer?", Assírio&Alvim, 1997.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Baloiço de Naná da Ribeira

O que fazer com o pêndulo?
O término do seu balanço
 anuncia já em catadupa
uma semente atirada ao ar 
as folhas secas do Outono 
os renitentes e cansados ramos 
inseguros

Guardamos no vento a torrente 
a promessa e a homenagem
talvez uma dança delicada 
o silêncio e a espera 
de quem se estima.

domingo, 29 de setembro de 2024

Encontros Sonoros do Atlântico: "Flores" no Arquipélago!

Francisco de Lacerda em viagem
       Terminou recentemente, com espectáculos por todo o arquipélago, os “Encontros Sonoros Atlânticos”, um programa de concertos alicerçados/inspirados na obra do compositor e maestro, natural da Ilha de São Jorge, Francisco de Lacerda. 
      Faz, por isso, agora uma semana que assistimos  ao concerto do guitarrista Nuno Costa e do pianista Óscar Graça na blackbox do Arquipélago, Centro de Artes Contemporâneas. Ambos os músicos tiveram a incumbência de fazer a banda sonora para o filme Flores de Jorge Jácome. Foi, sem dúvida, um belo fim de tarde inspirado com composições bem respiradas e soltas, até dissonantes, que tinham como compromisso embelezar a propagação da espécie das hidrângeas pelo território. Na verdade, são devaneios sonoros aprimorados e convincentes, ainda que arriscados, para um filme que vai conquistando cada vez mais adeptos, sobretudo, pelo seu desenrolar inusitado e final feliz com que nos devolve a espontaneidade e beleza natural do verde de que estamos rodeados.

Ontem, escrito numa parede da cidade

 Isto são favas cantadas

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Equinócio de Naná da Ribeira

Acordei sobressaltado pela madrugada adentro 
cogitei passeios em praias vazias, imaculadas, quase desertas 
o seu acesso pela escadaria, madeiros firmes, degraus seguros,
avistei negras areias em espumas incandescentes,
danças de sombras festivas em corpos pré-outonais 
ainda que indecisos. 

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Pré-estória de Urbano Bettencourt

     "Em Setembro dois corpos cobertos de búzios e de escamas vieram dar à costa, provavelemente na sequência de um dos muitos ciclones que por essa altura ocorriam a noroeste do arquipélago: direi acaso a surpresa o fascínio as escapadelas furtivas dos adolescentes que vinham de todos os cantos desvendar a anatomia marinha das mulheres trazidas pelo mar? E o velho solitário que habitava de Verão e de Inverno a casa da vinha sobre a costa, e perscutava constantemente o horizonte e o andamennto das nuvens, vaticinando o futuro pelo que sabia do passado, afirmou então que teríamos um ano de fome."
in Antes que o Mar se Retire, Companhia das Ilhas, 2023.