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domingo, 21 de maio de 2017

O Porquê dos Interrogatórios...

     É com moderado optimismo e um sobrolho franzido que se apresenta o ciclo de interrogatórios trazido ao convívio dos apartamentos e vivendas portuguesas por intermédio de dois conceituados entrevistadores, DM e Alberto Ai, que alternadamente trarão à discussão e ao escrutínio tendencioso dos entrevistados temas da actualidade política, filosófica, artística e sociológica do século XXI, ficando de parte temas como electrodomésticos, jardinagem e artes marciais (já bastante consolidados nos finais do século XX). Será evitada a utilização excessiva de aliterações, prosopopeias ou estrangeirismos (sobretudo na sua vertente idiotista), promovendo-se ao invés um discurso directo puro e duro, contributo que se espera profícuo às novas gerações e outras.
Os entrevistadores de alterne dispensam apresentações. Ao som de “For Once In My Life” de Stevie Wonder, DM aparece em fato de banho vermelho, depois do seu habitual mergulho no pesqueiro de Ponta Delgada. Faz-nos um sorriso aberto, ainda ofegante, e dá-nos a indicação com o polegar de que está tudo impecável. Das ilhas para a capital do império português, avistamos Alberto Ai, a estacionar o seu clássico Citroen DS. Com um blazer verde e óculos escuros de massa, dirige-se agora ao seu apartamento, lançando-nos um piscar de olhos categórico de quem não gosta de facilitar.


A redacção do “Interrogatório”

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Interrogatório II

Encontrei Giorgio delle Mare numa esplanada duma ilha atlântica que, por razões de sigilo profissional, jamais poderei revelar o nome. É sim senhor, bem lá no meio do Oceano Atlântico onde se avistam jangadas de cagarros, posição estratégica propícia a longas e demoradas conversas. Foi aí, portanto, que avistei Giorgio mais a sua cigarrilha de tabaco ilhéu, camisa às flores, muito garridas e berrantes, por sinal, mais o seu chapéu de panamá feito por artesãos locais. Soube, entretanto, que “Gigio”, tal como é conhecido pelos amigos mais próximos, somente trabalha três horas pela manhã, dedicando-se ao “acto conversatório” durante boa parte da tarde e concretiza uma vida um tanto ou nada dissipada q.b. pela noitinha.
Giorgio é, sem qualquer dúvida, um personagem riquíssimo em narrativas contemporâneas e que, após tantas viagens em veleiro em modo solitário, ainda uma vida de ramboia faustosa e derramada na juventude, encontra-se hoje retirado junto de uma lagoa insular, dedicando-se assim à plantação de camélias junto do enxofre mas com uns desvios à mistura. Não seremos nós que iremos fazer a sua biografia não autorizada, no entanto aconselhamos vivamente que estamos na presença de uma história pessoal longa e digna de acontecimentos de registo de figurar em qualquer livraria ou rede social avançada.

          Doutor Mara: A que se dedica concretamente, pois há todo um mistério à volta disso. Não nos diga que também tem uma plantação de camélias sinensis?
         Giorgio Delle Mare: Doutor Mara, admiro os seus métodos de persuasão. Nem sei como me encontrou. Vamos lá a isto então, que ainda tenho de ir ali abaixo, e depois voltar para cima. Tenho estado dedicado à construção de uma nova embarcação para regressar ao mar e deixar as ilhas. Tem sido um trabalho solitário de força bruta quase animal, pelo que tento equilibrar com o sensível estudo da botânica, de forma a não me tornar num ser rude e acéfalo. É por isso que me dedico à fascinante complexidade das camélias, que por vezes me leva à comoção em lágrimas.
        DM: Giorgio delle Mare, sendo assim o que é feito de si, ou melhor, o que é feito do seu antigo chapéu de palha feito da planta Carludovica Palmata, confecionado em trama fechada, visível apenas em países como o Equador e demais vizinhança?
        GDM: Nunca mais o usei por duas razões: primeiro porque esse chapéu relaciona-se com um tempo passado, e não sou dado a saudosismos. Em segundo lugar porque a minha aparatosa queda de cabelo transforma o chapéu num apetrecho de ocultação da calvície, e eu gosto de assumir as transformações que o tempo vai operando em mim. Está bem guardado numa caixa de papelão, introduzida dentro de um baú de madeira, guardado na arrecadação do sótão, por sua vez fechado à chave, chave essa que desapareceu há uns meses. Há-de aparecer… Mas se quer saber, já cumpriu a sua missão. É um efectivo apetrecho de categoria e elegância quando utilizado em determinadas circunstâncias sociais ou políticas. É um chapéu que tanto pode ser usado na praia, como numa festa de smoking, transmitindo ao seu portador uma sensação ilusória de confiança na penetração em determinados circuitos de elite.
        DM: Sabemos que abomina as redes sociais ainda que gostasse de saber sobre o que é feito dos seus velhos amigos de longas e intermináveis noites de boémia, bem como das suas amigas predilectas com quem se enamorou ou percorreu com elas os recantos mais belos das capitais europeias ou mesmo as mais afamadas marinas mundiais. Não tem qualquer curiosidade em saber o que é feito de toda esta gente?
        GDM: Não. Ou melhor, tenho alguma curiosidade, mas não quero saber. Tendo em conta a vida desregrada que levávamos nesses loucos anos, temo que os meus amigos sobreviventes possam ser hoje em dia seres estropiados ou dementes, com marcas indeléveis de uma vida de perdição. Reencontrá-los seria como a cena do filme “Intervista” de Fellini onde o realizador e companhia visitam Anita Ekberg na sua moradia, e esta, já desfigurada pela impiedosa acção do tempo, recorda com Marcelo os tempos do La Dolce Vita, numa ode à beleza efémera da jovialidade.
     DM: Giorgio delle Mare, refreie esta minha curiosidade, mas para quem vivia nos altos mares e agora se muda para o interior de uma lagoa, será caso para perguntar: que tempestade ou nortada atravessou a sua cabeça?
       GDM: Após alguns dias de lucidez mental ilusória resultante do ambiente atmosférico favorável, resolvi parar nesta ilha para me abastecer, vindo do Panamá. Queria uma noite de civilização, queria beber vinho e estar com mulheres. Acabei por me juntar a um grupo de estrangeiros vindos de um país também ele estrangeiro, que praticavam turismo. Bebemos muito, e sem saber como, viemos parar a esta lagoa, talvez numa boleia de caixa aberta às tantas da manhã. Não me lembro de mais nada. No dia seguinte acordei, estava sozinho em cuecas de elástico junto à lagoa. Tinha sido roubado pelos turistas. Algumas pessoas olhavam-me ao longe, curiosas, e ouvia-se um burburinho de reprovação colectiva. Tinha de deixar a ilha rapidamente. Mais tarde, um lavrador ajudou-me a chegar ao porto. À chegada, não avistei o meu barco. Tinha sido levado. Isto foi há 7 anos, ali ao fundo, naquela baía. Vê-se daqui…
          DM: Giorgio, imagino que depois de conhecer as mulheres mais lindas do universo nessas cidades portuárias, vulgo marinas, julgo que essa sua dedicação às camélias, como dizem por aqui, é um tudo ou nada metafórica. O que nos tem a dizer sobre isso?
         GDM: A vida é ela própria uma metáfora. As mulheres são neste momento uma alegoria. As camélias poderão efectivamente ser uma personificação, e a ilha… uma hipérbole.  
          DM: Dizem que por aqui encontrou a alegria e que deixou de procurar a felicidade? Qual é a diferença, meu caro amigo?
       GDM: Jamais em tempo algum fiz tal afirmação! Não acredite no que dizem por aí a meu respeito, Doutor - É o diz-que-disse corriqueiro! Já me chamaram curandeiro, alquimista e bruxo, dizem que vivo no luxo em cama de diamantes e elefantes africanos. Deixe-se de enganos! Até já me chamaram poeta maldito, não dá para acreditar! E vai-se consolidando o mito, só porque em certas circunstâncias digo coisas a rimar.
       DM:O Giorgio delle Mare foi também um grande actor de cinema e praticante de badmigton. De quê, em concreto, o meu caro amigo, tem saudades?
           GDM: Sinto saudades de Emma e Anna, duas irmãs polacas com corpos esculturais de ringue de patinagem artística, com caras de bonecas russas em pele renascentista e olhos esverdeados, seios em forma de pera rocha e traseiros desenhados por mestres da ergonomia divina. Conheci-as em Barbados numa filmagem, e fizemos longos serões a jogar xadrez no meu barco.
         DM: O que é que o meu caro amigo gostaria dizer aos seus grandes amigos e amigas de longa data e que já não sabem de si desde que o avistaram em manifestações contra a incineração? 
         GDM: Não me procurem. Se por acaso me encontrarem mesmo sem me procurarem, finjam que não me conhecem. Mas não venham meter conversa comigo, pois eu sei que estão a fingir que não me conhecem, só para meterem conversa. Percebe-se logo quando as pessoas fingem que não nos conhecem. Conheço bem esse fingimento, pois já houve situações em que perante velhos conhecidos, eu próprio tive de fingir que não os conhecia. Mais vale preservarmos o imaginário do que foram, pois o que foram geralmente já não são. Prefiro as gentes da ilha, ou até mesmo a solidão. Mas uma coisa não mudou: Abaixo a incineração!

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Interrogatório I (Alberto Ai interroga Dr. Álvaro Bruma no Ramiro em Lisboa)

Dr. Álvaro Bruma é um conceituado meteorologista insular, que ficou famoso pelas suas polémicas teorias sobre o clima, de onde resultaram sentenças como “O clima de suspeição que se vive em Portugal é mais elevado no Inverno devido a factores psicológicos” ou “Altas concentrações de actividade sexual contribuem decisivamente para o aquecimento global”. Depois de várias tentativas falhadas por parte da nossa redacção, eis que conseguimos um exclusivo com Dr. Álvaro Bruma, que assentiu a conversar um pouco com Alberto Ai, desde que o fossemos buscar a casa e lhe pagássemos a viagem e o almoço. Apesar dos parcos recursos desta redacção, achámos que valeria a pena o esforço financeiro. Alberto Ai e Dr. Bruma almoçaram santola no Ramiro, e o resultado foi este:
Alberto Ai: Antes de começar a nossa entrevista, queria-lhe agradecer o convite que me fez para ir visitar a sua colecção de répteis. Começaria por lhe perguntar de onde vem esta paixão?
Dr. Álvaro Bruma: Não diria bem paixão, mas uma volúpia de trazer por casa. Uma inolvidável volúpia por tudo que tenhas asas ou capacidade de trepar (os nossos irmãos brasileiros estão já escandalizados com este meu arrojo linguístico) mas é, sobretudo, isso. É um prazer vetusto, com muitos anos, sem dúvida, mas convirá dizer que foi muito tempo depois do surgimento da anestesia.
AA: Conhecidas que são as suas ideias sobre o clima de suspeição em Portugal, considera que o clima económico desfavorável é um céu carregado de nuvens negras, ou apenas neblinas e nevoeiros matinais de um dia radioso de sol?
DAB: Creio que a suspeição num país de justiça lenta faz parte do ambiente geral. É parte integrante do estado do tempo e, com frequência somos apanhados, não pela justiça, mas sim pela instabilidade climatérica e pelas temperaturas moderadas. Precisaríamos de justiça como de água no vinho mas a malta só tem sede de justiça na esplanada. Depois, essa mesma malta bebe dois copos de tinto, vê e assiste a um comentador desportivo e a coisa passa. 
AA: Há quem o chame de “eremita de Santa Maria”, que resulta do facto de viver isolado no interior da ilha, não criando laços de afinidade com a população local. Vive como quer, ou vive como pode?
DAB: Vivo como quero e como quando posso, evidentemente, pois nasci no meio daquela terra barrenta com odor a vaca por todos os lados. Actualmente, não há nada nem ninguém que me consiga dar ordens. Produzo aquilo que bebo e como aquilo que planto, sou mesmo auto-suficiente. De vez em quando, vou às grandes superfícies ver as oscilações do preço das sementes e começo de imediato a barafustar com os empregados, o que não é nada saudável. O meu nome já deve constar das altas esferas da conspiração e espionagem internacional. 
AA: Qual foi a coisa mais surpreendente que viu na sua actividade de observação de fenómenos atmosféricos?
DAB: Foram as auroras boreais em Tromsø, ali na Noruega. Estava com a minha companheira, a Celeste, uma minhota de olhos cor de amêndoa, estávamos na presença de 230 cm de neve e a média da temperatura daquele Janeiro rondava os-4 °C. Estávamos completamente gelados, a pingar do nariz e os ossos petrificados, mas felizes. Não me lembro de mais nada assim.
AA: Dr. Álvaro, o que faz nos seus tempos livres?
DAB: Tenho sempre comigo um nefoscópio de reflexão onde vejo a direção e meço a velocidade das nuvens. Passo horas com picos de ansiedade e quase me esqueço de jantar. Há dias telefonaram-me para ir dar uma conferência sobre altas e baixas pressões e eu não ouvi, pois encontrava-me a seguir uma nuvem denominada de Altocumullus que ia em direção à Ilhéu de Vila Franca mas com um pendor desviante para o ilhéu das Formigas. 
AA: O que levou o Dr. Álvaro a seguir esta actividade? Corrobora da ideia generalizada de que para abraçar a profissão de meteorologista é necessário ser-se um pouco apanhado do clima ou andar com a cabeça nas nuvens?
DAB: Sim, é um facto. Eu fiquei conhecido na faculdade pelo Professor Doutor Nefelibata. Cheguei mesmo a criar um conjunto musical intitulado “Bardos & Nefelibatas”. Nunca ensaiamos na vida, mas fomos capazes de dar doze concertos, já que havia a premissa de que só tocaríamos quando fizesse bom tempo. Curiosamente a banda terminou num concerto em que fomos atingidos todos por um raio e sua respectiva trovoada que deu cabo da mesa de mistura e dos instrumentos. É uma sorte estarmos vivos, é um facto. Mais sorte tivemos quando soubemos que um dos nossos fãs decidiu pagar os estragos com uma herança de um bisavó, o que não foi pouco. 
AA: O que pensa da dispensa de meteorologistas da televisão portuguesa, e da sua substituição por mulheres bem delineadas de roupas leves, que ditam a previsão do estado do tempo lendo o teleponto ao som de música erótica?
DAB: Não vejo televisão desde o furacão Alex, achei que aquele embuste foi demais. Quanto às roupas leves é uma das consequências das alterações climáticas, pois vamos sendo despojados do essencial e qualquer dia teremos que andar com aquilo com que viemos ao mundo. Quanto à música erótica, afianço-vos, meus amigos, que esta já teve também melhores dias.
AA: Por fim, e agradecendo desde já esta sua entrevista ao Interrogatório, pedia-lhe que nos desse a previsão do estado do tempo para os próximos dias.
             DAB: Alguma chuva, boas abertas, claro. E para vocês também.