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domingo, 29 de março de 2015

“Que bom é partir, que triste é ficar.”

     Eram cinco da tarde neste início de Primavera, uma pessoa decide aventurar-se pelo interior adentro de um Teatro antigo. Escondido, escuto os sons que saem das colunas. Ao fundo no palco está um homem de cabelo e barba branca rodeado de músicos a disfarçar que tocam os seus instrumentos. Um outro homem de carapinha e bigode filma-os enquanto o cantor baloiça na cadeira como se fosse capitão de um barco agitado em pleno mar alto, rasgando a onda, cavando a vaga, agarrado ao leme, sem nunca o largar. Sente-se ali uma vaidade contida, inconfessável, gente que soube continuamente pertencer à ribalta, por muito que estime o silêncio e o recolhimento. É a segunda vez que presencio aquele cantor ao vivo, por certo naquele mesmo lugar. Os músicos repetem em playback as vezes que forem necessárias para filmar um videoclip daquela canção. O realizador solicita mais luz ao técnico e os músicos perderam já o travão da entrega emocional. Os jovens músicos cavalgam a encenação proposta pelo realizador do vídeo. Deito-me, entretanto, por terra. Não me contenho de tamanha agitação marítima e abandono por instantes a sala do teatro. Parto em direcção ao porto, ao lugar onde atracam os barcos e marinheiros. Parto à procura de outros homens que me devolvam esse olhar desprendido, uma mirada solta, um fitada que me leve, também eu, a querer partir. Há tempos conheci marinheiros que traziam esse ímpeto de errância, aventura, partida. Demorei alguns meses a esquecê-los. Homens que não conseguem ficar muito tempo parados no mesmo sítio. É desse desejo inconfessável de partida que partilhei sob a forma de palavras e interrogação horas depois à saída do concerto. Não sei se algum dia chegarei a perceber o porquê de tanta inquietação, somente a certeza de que é essa ideia de beleza que nos move, que produz este impulso de mudança, alterar, enfim, partir. Enquanto aquela voz  ecoa dentro do mais fundo da leveza e da esperança:“Que bom é partir, que triste é ficar"

terça-feira, 5 de março de 2013

Mineral Esperança


       Daquele dia em diante nada havia de ser igual. Era um azul marinho que se me avizinhava sempre de cada vez que me aproximava da janela. No entanto, estava escrito no céu que eu podia repousar os pés na calçada da vetusta e patrimonial cidade. Sopram os primeiros ventos de outono e com eles deixarei esta terra carregada de sal e de memória. Não olharei para trás. Senti-me gasto, dormente. Os dias deixariam para trás essa secreta claridade estival. Reforçavam a miserável capa do manto cinzento que recaía sobre aquela dupla árvore em braços estendida. E nada voltou a ser como alguma vez tinha sido, o céu permanecia escondido e assim haveria de permanecer, cobrindo um memória carregada e triste. Talvez nos tivéssemos gasto, é verdade. Talvez fosse a altura certa de nos retemperarmos e abrirmos ao sal envolvente até que dentro de nós saísse uma alma com fogo, em chamas, renascida. Não olhemos mais para trás, não há certeza de que a dormência se instale, nem que aquilo que nos invada possa equivaler ao vazio das conversas e da vida. Há um horizonte pela frente para avistar. O vento amansa em vontade mineral e o salitre invade por instantes a minha alma carregada de memórias. Eu sei agora, talvez eu tivesse sabido sempre que amanhã a minha vida, as nossas vidas, encarregar-se-ão de ser completamente diferentes. Haja esperança.

PS-Com o mote inicial dado pelo E.C, digno representante da Old School.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Homem dos Cabelos Compridos

Ilustração de Pedro Valim

Quem é aquele velho ali sentado com cabelos compridos e roupa que mais parecem trapos? Interrogou-se a minha colega de profissão que adora passar horas que junto do computador a elaborar grelhas e gráficos. Uma profissional das estatísticas, sem qualquer dúvida, acredito. Comecei entretanto a discorrer sobre o homem com respeito e admiração o que lhe parecia estranho. Disse-lhe que o homem era uma mente livre e profundo de liberdade, apesar do seu ar pobre, solitário e de anacoreta. Contei-lhe que homens daqueles invulgarmente encontram cabimento nestas sociedades da produção e do consumo. A minha colega ouvia e ria como uma criança para toda a esplanada ouvir, exclamando que tudo o que eu dizia não passava de tontices da cartilha esquerdista aprendida na adolescência, que eu era profundamente romântico na minha visão de homens daquela estirpe. Acrescentei que o homem dos cabelos compridos era um escritor de qual eu tinha lido alguns poemas, um verdadeiro outsider, um daqueles puros que amavam a vida ao ar livre, gostava de ir aos estádio ver jogos de futebol e que não podia deixar de viver junto dos outros através de conversas que vai tendo com os vizinhos, com a leitura de muitos livros e de jornais. E, mesmo assim, ela continuava impassível, metida consigo e disposta a passar para mim o seu ar blasé, mantendo o ar jocoso, interrogativo sobre como eu era capaz de encontrar referência e admiração em personalidades assim. Assim como? Referi mais uma vez que aquele homem era para mim um Fernando Pessoa do nosso tempo, desconfiando apenas que ele fosse casto, dado que o tinha avistado com duas mulheres feitas, ao qual nunca saberei se seriam mãe e filha, ainda que estas se tratassem de forma terna e afectuosa. Não sei. Pagámos a conta e cada um foi à sua vida.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Os Flanilhas

Ilustração de Pedro Valim

Cultivavam esse amor antigo pela história ensinada nos bancos de escola que falavam do continente e das ilhas adjacentes. Sabiam desde sempre que o que tinham aprendido era importante mas não era certamente tudo aquilo que precisariam na medida certa para viver. Havia dentro deles um espírito marinheiro, errante, para além de serem amantes do oceano e das profundezas dos mares que rodeavam as ilhas atlânticas. Navegavam com inquietude pelos mistérios das ilhas como os antigos exploradores, absorvendo  o espectáculo e a simplicidade da vida  insular, absorvendo o rito e a passagem humana por esses antigos montes, vulcões e vales de solidão. No interior das ilhas era comum avistarem-se Flanihas em pleno acção, a flanar, muitas vezes a caminhar pelos seus próprios meios, longe de recusarem a rapidez das máquinas e dos avanços tecnológicos,  preferindo, no entanto, o movimento das solas e dos sapatos, das rodas das bicicletas, ainda o vagar lento dos transportes públicos, quando os havia. Há muito que sabiam que a espécie humana nem sempre era bondosa, sendo por vezes ressentida, fechada, dada a visões curtas e circunstanciais, mesquinhices, dependendo muito dos estímulos e cultura em redor e, talvez por isso, os Flanilhas despojaram-se de bens materiais, adquirindo apenas o que a terra e o mar lhes davam, afastando-se o mais que podiam dos bens materiais, ou pelo menos tentavam fazer por isso, retirando máscaras e fingimentos ao quotidiano. Os Flanilhas quiseram ser pele, osso e  tráfico desse dom humano que era o corpo aberto ao movimento, à experiência do vento e do sol, da vida ao ar livre, exposta ao coração da mãe natureza. Veneravam dessa forma os traços e os gestos das obras terrenas da vida e da passagem do Homem nas ilhas, os seus sinais de um desejo insaciável e vontade inquieta que se concentravam nas casas, edifícios, arquitectura e jardins. Amavam também as músicas celestiais que das suas vilas e freguesias ecoavam em dias de festa, romaria ou religiosidade. Os Flanilhas ficaram conhecidos por lançar garrafas ao mar carregadas de mensagens secretas que nunca ninguém seria capaz de decifrar, dado que eles há muito diziam desconfiar do valor das palavras. Preferiam a poesia do movimento, do corpo em fuga e sentido ambulante dada pelo  nomadismo dos primeiros viajantes. De ilha em ilha, o gosto, o prazer, o amor pela viagem.