quarta-feira, 2 de julho de 2025

Crepúsculo na Ilha de Marcolino Candeias

 I
O dia morre como se adormecessem vozes 
nas bocas dos animais 
tecidas
num esvoaçar de sons 


II
O lavrador vestido de suor
planta no bater da estaca 
o gesto último
de querer prender à terra toda a sua vida
 

III
No cheiro a erva 
um sonoro subtil soar do silêncio 
brota um crepúsculo de flores esmagadas 


IV
No ar
paira um odor calado a maresia
in  The Sea Within, Gávea-Brown, 1983.

Ciclo Imaginário de Cinema ao Ar Livre (1)

       Todos os anos, quando a permanência no interior das casas se torna insustentável, dou por mim a imaginar a programação de sessões de cinema ao ar livre, isto é, a propor à minha freguesia de bairro uma selecção de filmes que primem pela qualidade narrativa, uma banda sonora irrepreensível, boa cadência e ritmo cinematográfico. É claro que não posso descurar que haja uma boa amplificação do som e que estejamos todos bem sentados. Assim, será uma boa sessão de cinema ao ar livre em que nada possa ficar de fora. Então, a sessão inaugural teria o filme de Emir Kusturica, Gato Preto, Gato Branco, realizado em 1998. Pela película andam ciganos que habitam nas margens do Danúbio, os seus negócios mal afamados com os russos, desvios de comboios com gasolina de Belgrado com destino à Turquia, uma atiradora furtiva que atira aos barcos sobre as águas e ainda Dadan, o patriarca da comunidade que possui um harém. Enfim, a desbunda típica dos filmes de Kusturica com muita música e charangas à mistura.

domingo, 29 de junho de 2025

Verso de Maia Friedman

 I would sense you there, but you wouldn´t care 

Da Saúde

        "O problema não é a escassez de camas ou profissionais. É a ausência de políticas públicas com rosto humano. Falta-nos saúde de proximidade, apoio social continuado, articulação entre as instituições. As autarquias sabem quem são, onde vivem, o que precisam, mas não têm meios para intervir. O Estado empurra para o terceiro sector, que responde como pode, muitas vezes com boa vontade, mas com meios limitados e serviços inconsistentes. A caridade não pode substituir o que é - deve ser - público."

João Mendes Coelho, médico-psiquiatra, in Açoriano Oriental,  dia 29 de Junho de 2025. 

terça-feira, 24 de junho de 2025

Verso de Nicola di Bari

 Il mondo è grigio, il mondo è blu 

Projecto de Rui Costa

Fernando comprou um livro de poesia com oitocentas páginas
mas só conseguiu ler quinhentas

António sonhou com o Evereste na magnitude
mas só precisava de mudar uma lâmpada 

Rita imaginou um poema para Fernando 
mas só tinha que aceitar o jantar de quinta 

A lâmpada pensou que era um poema
e fundiu-se sem iluminar a sala 

Luís aproveitou a escuridão da sala
para dizer a Rita um poema com montanhas 

Trezentas páginas que nunca foram lidas 
arquitectam com a lâmpada a salvação do mundo

in A Nuvem Prateada das Pessoas Graves, Quasi Edições, Março de 2005. 

Queixa de um Utente de José Miguel Silva

Pago os meus impostos, separo
o lixo, já. não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.
Já não me lembro se o médico
me disse ser esta a receita indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for, 
não estou a ver resultado nenhum.

in Ulisses Já Não Mora Aqui, &etc Edições Culturais do Subterrâneo, 2002.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Um Poema de Mário Cesariny

Dicen?
Olvidan.
No dícen?
Envídian.  

Hacen?
Fatal
No hacen?
Igual.

Para que 
`Sforzar?
Todo es 
Hurgar. 

in O Virgem Negra, Assírio&Alvim, 1989

Sagres de Jorge Sousa Braga

Só tenho uma ponta de
cigarro para fumar
E para apagá-la:
todo o mar.

in  O Poeta Nu, 2014. 

domingo, 22 de junho de 2025

O Que Faz Falta...

      "O que faz falta é reconhecer que o outro pode ter a sua verdade, embora discordemos dela. Sem calçar os sapatos do outro não há diálogo ou negociação possível, nem nas sociedades nem no casamentos. A polarização não responde a argumentos lógicos, racionais; é um problema de emoções. Porque as discussões estão condicionadas pelo filtro do medo, do ódio, do preconceito, assentam na ideia de que o outro é um inimigo, com quem não podemos chegar a nenhum tipo de acordo. A polarização é também ela uma guerra, com a sua violência específica. Clausewitz definia a guerra como imposição da nossa vontade ao inimigo."

Antonio Monegal, in "As Guerras Começam na Linguagem", A Revista do Expressso, 30 de Maio de 2025.  

sábado, 21 de junho de 2025

Timoneiro: Um Postal Antibelicista!

         
Cartaz daqui: http://www.cinemadg.com
    Actualmente há
 bombas a cair e aviões nos ares do Médio Oriente, um desassossego que não cessa, no entanto há sempre quem pense que a vida bem poderia ser outra coisa. Outra coisa certamente muito melhor do que guerras, fome, desespero e caos. Já passaram, no entanto, dez anos da estreia de Timoneiro, um filme de Majid Esmaeli-Parsa, rodado no Irão em  2015. Filme visto na sala de cinema do Teatro Ribeiragrandense, esta adaptação cinematográfica de um original do escritor norte americano Philip Roth,  narra a história de uma criança de onze anos que, após o desaparecimento do pai, depara-se com a possibilidade de recuperar o navio famíliar para o aniversario paterno, onde à sua frente se encontra o Lago de Urmia enxuto. Não tarda nada e outras crianças seguirão os passos de Hassan e com a sua amizade erguerão aquele projecto em marcha.
       O realizador Majid Esmaeli-Parsa filma, portanto, o seu pequeno herói Hassan naquela paisagem árida, onde a ausência da água, a seiva da vida, condena o futuro de quem ali vive ao fracasso. A esperança reside, pois, nas crianças, na aprendizagem escolar do quotidiano, são elas que nos dão a uma nova visão poética do mundo. A poesia surge aqui sob a forma de acções quotidianas comuns - a pintura do navio, a dança em conjunto, o conto das histórias, a beleza de uma paisagem em ruínas. Timoneiro é um retrato duro, cruel, expressa na ansiedade de quem espera por algo que quer muito e de que vive dos seus pequenos detalhes, da música que aparece e desparece, daquele teatro de sombras e dos gestos e  feições que nos vão eternecendo. Mesmo com algumas fragilidades narrativas, Timoneiro é um belíssimo postal poético e propositivo de um novo mundo antibelicista.

É oficial: Começou o Verão!

Garajau Rosado, Andorinha-do-mar-rósea 
Nome Científico: Sterna Dougali 
Fotografia:
Ricardo Guerreiro
in Avifauna no litoral dos Açores
(Amigo dos Açores) 
 

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Avenida Marginal: Contos à Beira-Mar!

      
     Saiu em Abril do ano passado e tem na capa a ilustração Rapaz do Calhau, de João Amado, numa edição que conta com a coordenação de Maria Helena Frias e, da sua casa editora, a Artes e Letras. A publicação Avenida Marginal vai, assim, no seu número cinco  e esta edição contou com um conjunto de narrativas em torno das ilhas e dos ilhéus. Esta súmula de contos/ficções apresenta diferentes autores, quase todos eles relacionados com este território insular: Alexandre Borges, Carlos Bessa, Carolina Bettencourt, Catarina Ferreira de Almeida, Herberto Gomes, Judite Canha Fernandes, Leonardo Sousa, Luiz António Assis Brasil, Maria Brandão, Maria das Mercês Pacheco, Marta Ávila e Teresa Canto Noronha.
      A leitura de Avenida Marginal abre com o conto Demónios à Tua Beira-Mar, de Alexandre Borges, onde é retratado um ambiente sui generis de conferências, bebidas brancas e psicólogas, com diabretes à mistura. Segue-se Aurea Mediocritas, do poeta Carlos Bessa, numa descrição de uma relação longínqua e prolongada no tempo, marcada pelo desgaste e pela rutura. A presença do futebol na ilha, a força deste desporto e das suas paixões, pressente-se em Capitão de Equipa, de Carolina Bettencourt. A autora Catarina Ferreira de Almeida compõe um retrato de uma mulher virada para o mar, com uma história intitulada Memória de uma Onda. O conto Enganos e Desenganos de Desidério Domingos traz-nos a primeira ficção de Herberto Gomes, jornalista de profissão, que nos conta a história de um soldado que falha na sua missão, no entanto cumpre o seu  traumático regresso a casa carregado de aventuras. Em Carta de um Vulcão para o Mundo, Judite Canha Fernandes, expõe na ficção a presença e influência do Vulcão dos Capelinhos na vida insular aquando da sua erupção, a partir de alguém que hoje lhe envia uma carta. Whatever People Say I Am, de Leonardo, é uma narrativa ficcionada e autobiográfica de uma improvável personagem, de seu nome  Biografia. Curiosa é também a conversa que o brasileiro Luiz António de Assis Brasil, mantém com a ilha, com este espaço e, mais concretamente, com escritor José Martins Garcia, neste caso em modo Grapefruit. Embuste é a proposta de Maria Brandão, autora micaelense que ironiza por aqui a sua relação com a editora da casa, evitando as "divagações íntimas", mas onde ambas têm muitas cumplicidades passadas. Daqui do Alto, de Maria das Mercês Pacheco, é um conto vivenciado no passado em que este "é um vulcão adormecido sob lençóis de cinza e musgo; o futuro, a promessa de incandescência". Um cheirinho da natureza extrema que, por vezes aqui se vive, é contada em Há Anos que Não Ne Lembrava de um Dia Assim, por  Marta Ávila. Esta rica e variada plêiade de autores e narrativas termina com o texto A Touca Branca, de Teresa Canto Noronha, num mergulho singular à sua infância insular com sabor a “salada de atum, com maionese, rosbife, e gelados da carrinha que apita ao pé do bar”. 
      É, sem qualquer dúvida, uma boa leitura de estio e, com páginas suficientes, sobretudo para que estas se possam encher de areia negra e fina, para lá da Avenida Marginal!