sexta-feira, 12 de maio de 2017

A Terra Vista do Mar de Davide Enia

          
            "Tinha cinco anos. Era a primeira vez que nadava sozinho dentro dele. Eu. Dentro do mar. E ele. O mar: acolhia-me. Um abraço quente. E carinhoso. Estava tão contente eu. Tinha cinco anos. E depois. Eu mijei dentro do mar. Com todo o meu ser mijei dentro dele. Tudo estava tranquilo. À minha volta. Dentro de mim...que já perdi tantas memórias. Demasiadas. Mas ainda me lembro de quando tinha cinco anos. Eu. Estava a nadar pela primeira vez sozinho dentro do abraço quente do mar em Agosto. E mijei dentro dele, eu. Enquanto ele, o mar, nunca me pediu nada em troca, nem perguntou porquê, só o seu murmúrio sedutor e leve, as ondas delicadas, às vezes suspensas às vezes rebentadas, que murmuravam languidamente ao meu ouvido de miúdo: mija...mija...mija"

excerto de "A Terra Vista do Mar", Davide Enia, tradução de Letízia Russo edição Livrinhos de Teatro dos Artistas Unidos.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Tabacaria Açoreana

É esta a minha rua – decidi
eu, por razão nenhuma.
Um grupo local, já velho, discute
diariamente política nacional.
Indiferente, e não menos assíduo,
o cão branco ladra (ou pede afagos?)
na varanda por caiar da casa em frente.

E há tabacos, jornais, revistas,
uma espécie de jardim
onde os fantasmas se riem
da nossa rude e descrente democracia.

De quando em quando, um vulto
suspeito pede-me lume, light,
algo que já não «bruxuleia firme»
– ou os rigorosos vinte cêntimos
que prefiro recusar, num sorriso coxo.

O cão recolhe-se. Não se lembra
do tempo em que a Casa das Palmeiras
trazia fausto e povo rico a esta rua
que se tornou tão minha.

Mesmo que não regresse.

Manuel de Freitas, Portas do mar, edição do Autor, 2011, com capa e ilustração de Urbano.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

A Periferia da Periférica

“Neste sentido, é importante investir em iniciativas que façam a ponte entre quem aqui trabalha e que, no âmbito de uma residência artística, um workshop, uma formação técnica, ou simples conferência, partilhe conhecimento com quem está mais longe dos centros, onde este tipo de experiência é mais regular, está disseminada de forma mais abrangente e não se encontra reduzida a uma cadência pontual e para uma público circunscrito, como é o nosso caso.”


Alexandre Pascoal, in Açoriano Oriental, 8 de Maio de 2017 

domingo, 7 de maio de 2017

Chuvadas de Maio

Fotografia de Carlos Olyveira

A Ilha em Imagens

       
Francisco Afonso Chaves
Colecção Museu Carlos Machado
       Hoje é sábado e nem sombra dos volantes pés de Tatiana Grenkova no palco do Teatro Micaelense. Decidimos por isso esclarecer arrumações, asseio e demais organização de tudo aquilo que nos está em redor. Uma certeza: amanhã é domingo e, se não for para mapear e nutrir para dentro, isto é, desencantar e desarrumar o abecedário, alimentar memórias  e puxar o lustro às palavras pois não terá valido a pena a passagem das horas, ai esse tempo ceifeiro que em nós habita. Aqui mesmo ao lado, há também e, sobretudo, no Núcleo de Santa Bárbara, as fotografias de Francisco Afonso Chaves para (re) ver. É uma pequena parte das sete mil imagens do eminente naturalista que adorava fotografar, algum tempo após ter deixado Lisboa e se ter fixado no arquipélago,  residindo aqui a maior parte da sua vida. A exposição dá pelo nome de “A Imagem Paradoxal” e é uma experiência sensorial e visual riquíssima, essencialmente, quem desconhece ou até mesmo para quem conhece estas paragens. 

sábado, 6 de maio de 2017

As Mãos da Pianista

Concerto de Carla Bley, Steve Swallow e Andy Sheppard em Angra do Heroísmo 
Fotografia de Margarida Quinteiro (Festival AngraJazz 2013)

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Diogo Fonseca expõe no Hostel Out of Blue

   Diogo Fonseca inaugurou ontem a sua primeira exposição de fotografia no “Hostel Out of Blue”. Num corredor contíguo à sala de estar deste alojamento local estão expostas sete fotografias com o título conjunto “A Viagem”. As imagens exploram a ideia de périplo no perímetro insular, onde o grão adensa o mistério e a dúvida, marcados pelas intensidade e a textura das paisagens locais, evidenciando a pujança e tonalidade de formas e cores. Este trabalho fotográfico revela cuidado e intencionalidade prévias, visível nos suportes e disposição, sendo prenúncio de bons augúrios para promissoras propostas futuras. 

PS-As fotografias da inauguração desta exposição foram realizadas pelo fotógrafo Carlos Olyveira.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

"Amarcord" o filme da vida de Zeca Medeiros

Amarcord será exibido dia 27 de Maio
no Teatro Micaelense
Este filme de Federico Fellini foi realizado em 1973 e retrata Itália dos anos 30, a vida na cidade de Rimini e de um adolescente daquela altura. Num misto de ficção e realidade, pois trata-se das recordações do realizador, Amarcord é um quadro pitoresco e fantasmagórico  pré-segunda Guerra Mundial e onde se anuncia já a presença de Il Duce
Federico Fellini convocou para este filme a sua galeria de personagens extravagantes, dando assim a conhecer os tempos da sua juventude e a sua visão da Itália daquele período, contando para isso com a música evocativa, plena de imagens, de Nino Rota. O realizador explicaria alguns anos mais tarde, numa conversa com Damian Pettigrew, as razões que o levaram a realizar tal filme: "O Amarcord é uma reflexão sobre a incapacidade de observarmos criticamente o nosso passado fascista, um passado que recusamos, mas do qual nunca nos poderíamos separar: o que faz parte do passado de cada um de nós forma inalteravelmente uma parte íntima de si próprio. Por isso o Amarcord é mais um exame do presente do que uma nostalgia. Na realidade, quando foi estreado o Satyricon, muitos viram o filme como um comentário sobre o Maio de 68. Creio que filmes como Casanova ou O Navio podem ser interpretados como reflexos de uma certa actualidade, como o jornal da noite. (...) Muitas vezes simplifiquei o sentido cabalístico da palavra amarcord, dizendo que é um termo romagnolo e que significa "Lembro-me". Mas não é bem verdade. Penso que a ideia original me ocorreu depois de ter lido qualquer coisa sobre o sueco defensor do aborto Hammercord, e que a sonoridade do seu nome o ponto de partida. Se se juntarem as palavras amare (amar), cuore (coração), ricordare (lembrar) e amaro (amargo) obtém-se Amarcord."

"Car ma vie, car mes joies"*

*versos de "Je ne regrette rien" de Edith Piaf

domingo, 30 de abril de 2017

Do Fausto

Entendamo-nos bem. não ponho eu mira
na posse do que o mundo alcunha gozos,
   O que eu preciso e quero, é atordoar-me
Quero a embriaguez de incomportáveis dores,
a volúpia do ódio, o arroubamento
das sumas aflições. Estou curado
das sedes do saber; ora em diante 
às dores todas escancaro est´alma.
As sensações da espécie humana em peso.
quero-as eu dentro em mim; se entranhem
aqui onde à vontade a mente minha
os abrace, os tateie; assim me torno
eu próprio humanidade; e se ela ao cabo
perdida for, me perderei com ela.

in Fausto, Goethe. 

sábado, 29 de abril de 2017

Do Inventor do Nefoscópio de Reflexão

Edição do Instituto Açoriano de Cultura
Angra do Heroísmo, 2017
(Fotografia do livro sobre o banco-Carlos Olyveira)

        “Os passageiros da classe turística são quase todos gregos. Há de tudo, desde o janota com pretensões a gentleman até aos vaqueiros da Califórnia. Poucos interessam. Uma rapariga, alta e esguia, tem todo o tipo das mulheres gregas antigas, e parece tirada de um friso, mas falta-lhe vida. Uma americana loura corre o navio de um lado para o outro em calções, com umas pernas queimadíssimas do sol. Uma húngara, entrada em Lisboa, de reputação duvidosa, tem os cabelos de linho e ares de Dama das Camélias. Diz o meu companheiro que um meu amigo de outrora, J.R., gastou com ela umas dezenas de contos de reis! A americana estouvada entrevistou-a e veio-me pedir para lhe servir de intérprete, porque a húngara só fala francês!! Vaidade ou ingenuidade. Já estou velho para servir de intérprete a damas daquele quilate.
    Depois do jantar foi uma desolação. Os gregos desapareceram cedo. Comeram quase todos na primeira mesa e deitaram-se logo a seguir. Os passageiros melhores foram ouvir o concerto da 1ªclasse. Eu assentei-me sozinho, num grande salão, a ouvi-lo num pick-up. Um belo barítono cantou qualquer coisa que me agradou muito. Disseram-me hoje que é um cantor de certa fama, que viaja na 1ªclasse. A orquestra – uma orquestra muito mais completa do que aquela que toca no nosso salão – executou com decência o 1812 de Tchaikovsky. A maior parte dos músicos são criados de câmara. Mas os italianos são assim, qualquer coisa sempre e mais músicos.” 

in "Primeira Parte - Lisboa-Argel-Nápoles-Roma-Bolonha 
22/08/1937: 05/09/1937"- Coordenação Carlos Guilherme Riley.

Os Volantes Pés de Tatiana Grenkova

Nada tolherá esta insuficiência
mácula e decepção à partida
tal absorto e atento espectador
examina céptico em pose deslumbrado
o suave e clássico discernimento
dos pés em riste e dos tiques de cisne
assiste e acusa gravidade
sopro, silêncio e voo
na aguardada retoma dos gestos
alento do baile na poltrona de abrigo
as mãos que ondulam e vogam
à deriva de vagas com sentido
antes da superfície frontal oclusa.

27 de Abril, Tascá.

Doutor Mara

Doutor Mara por Diogo Fonseca